Guilherme Cardoso Leite

A 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu, na sessão de julgamento realizada em 12/2/2020, que a correção monetária sobre o ressarcimento de valores recolhidos a maior por contribuintes somente incide após o transcurso do prazo de 360 dias, estabelecido na Lei n. 11.457/2007, para que a Administração Tributária apreciasse o pedido administrativo.
Esse entendimento, adotado por apertada maioria, com diferença de um voto, foi capitaneado por voto do ministro Sérgio Kukina no âmbito do julgamento de três recurso especiais (Resp 1.767.945, Resp 1.768.060 e Resp 1.768.415), e culminou com a fixação da seguinte tese: “O termo inicial da correção monetária de ressarcimento de crédito escritural excedente de tributo sujeito a regime não cumulativo ocorre comente após escoado o prazo de 360 dias para análise do pedido administrativo pelo Fisco”.
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Não nos interessa, para a presente reflexão, a origem do crédito alegado e requerido pelo contribuinte. O relevo considerado diz com (i) a conhecida demora da Administração Tributária para analisar e responder aos pedidos de compensação ou de restituição tributárias formulados pelos contribuintes para com os Fiscos (entenda-se, nas três esferas da Administração Pública); (ii) a patente violação do direito de propriedade, notadamente a produtiva, em decorrência da não atualização dos valores que, recolhidos indevidamente, estão sob os cuidados da Administração Tributária; e (iii) a inequívoca violação do direito de igualdade material, considerado o tratamento jurisdicional que, no Estado democrático de direito, impõe severa distinção entre os entes políticos e os contribuintes.
Casos como esses recentemente julgados pelo STJ (Resp 1.767.945, Resp 1.768.060 e Resp 1.768.415) evidenciam um problema relacionado com a política pública que definiu a estrutura da atuação tributária do Estado brasileiro, em especial no que se refere aos impostos incidentes sobre a cadeia de produção (ou de consumo<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>): os contribuintes que possuem créditos de tributos em face dos entes políticos enfrentam severas dificuldades para receber o montante escriturado contabilmente ou recolhido indevidamente, dentre as quais se destaca, exatamente, o excessivo transcurso do tempo para análise dos pedidos administrativos de compensação e de restituição.
Consequências assim acarretam um relativo “congelamento” da posição do sujeito de direito em face do conjunto de suas relações contratuais, o que se reflete, por exemplo, na impossibilidade de contar com capital de giro em volumes convenientes, ou mesmo na sua impossibilidade de investir recursos proporcionais aos créditos tributários indevidamente confiscados e não restituídos em tempo razoável — em verdade, sequer analisados em tempo razoável.
Essa típica hipótese de déficit na eficácia da Administração Tributária não passou despercebida pela ministra Regina Helena por ocasião dos julgamentos aqui considerados. Para ela, que divergiu do relator, a ausência de decisão administrativa no prazo de 360 dias, pelo sim ou pelo não a respeito dos pedidos de restituição do indébito tributário, configuraria uma resistência ilegítima do Fisco e permitiria a imediata incidência da atualização monetária.
Com efeito, a duração desarrazoada do processo administrativo que traz requerimento de restituição do indébito tributário — ou mesmo que versa sobre aproveitamento de créditos, nas hipóteses legais — implica imediatos impactos nas conexões monetárias que são afetadas pela política pública tributária, em especial o efeito que se convenciona denominar “monetary relay” ou “deflexão monetária” <a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
É por isso que se deve considerar que “embora sinais de preços específicos possam afetar alguns portfólios, e não outros, o preço do dinheiro e de ativos financeiros (taxas de juros) se espalham rápida e amplamente através das redes contratuais”<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. Considerada a experiência dos contribuintes que não experimentam a devolução dos recursos financeiros de sua propriedade que estão em poder do Fisco, a tendência é que os preços das mercadorias sejam elevados e as necessidades de capital sejam supridas pelo mercado financeiro a taxas comparativamente elevadas.
Daí porque “é importante entender que os movimentos de preços podem acontecer como resposta a mudanças em estratégias de investimento privado, mas podem também resultar de decisões no âmbito de políticas públicas”<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>, como é o caso das definições relacionadas às políticas com repercussão na área tributária.
<blockquote class="jota-article__eye">Neste ponto, há de se observar que, em casos como os analisados, os contribuintes que recorrem ao mercado financeiro para obter acesso a recursos que poderiam já estar em seu poder ficam suscetíveis também às políticas públicas que adotam por instrumento as taxas públicas de juros e que expõem o “risco-Brasil” às avaliações de instituições privadas que carimbam os bons receptores de investimentos.<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a></blockquote>
A indireta imposição de encargos financeiros decorrentes da deflexão monetária — ou seja, dos reflexos monetários advindos do não acesso imediato ao dinheiro e da necessidade de capitalização da atividade empresarial — tende à configuração de verdadeiras práticas ilícitas por parte do Estado-Fiscal brasileiro e dos seus agentes, comparável ao enriquecimento ilícito e à apropriação indébita estatais. Situações como essas não são novas no Brasil. Basta recordar episódios não muito longínquos de “calote” estatal, como serve de exemplo o caso dos empréstimos compulsórios da Eletrobrás<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>.
Não se olvide de que os valores reconhecidamente devidos pelo Fisco aos contribuintes, considerado o indébito tributário, não devem ser considerados como integrantes do patrimônio dos entes políticos. Há um reconhecimento legal, no âmbito de uma política pública tributária erigida em bases legais, de que o Estado deve devolver a um particular o que lhe foi indevidamente confiscado.
Todavia, na atual prática, a União, os Estados e os Municípios permanecem com os valores à sua disposição por um longo e indevido período, gerando-lhes benefícios financeiros em detrimento do direito de propriedade daqueles que foram vítimas do confisco indevidamente realizado por tempo prolongado e a quem os valores deveriam ser, sem demora, devolvidos, e em prejuízo da implementação de uma gestão tributária mais eficiente em seus procedimentos, pois permanece sem estímulo a tanto.
As implicações decorrentes da indisponibilidade financeira imediata não são mitigadas pelo reconhecimento, em regra também custoso, da possibilidade de atualização monetária do saldo creditício. De fato, o STJ já havia reconhecido no Resp 1.035.847, julgado em sede de recursos repetitivos<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>, a possibilidade de atualização monetária do montante do crédito que não encontra na atuação do Fisco o obstáculo ao efetivo aproveitamento pelo contribuinte e que necessita intervenção do Poder Judiciário. Tampouco deve ser desprezado o enunciado 411 da Súmula do STJ, segundo o qual “é devida a correção monetária ao creditamento do IPI quando há oposição ao seu aproveitamento decorrente de resistência ilegítima do Fisco”.<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>
O fato é que, independente da garantia à atualização monetária, o confisco patrimonial persiste por um período indefinido e coloca em xeque a atividade empresarial do contribuinte que faz jus à restituição. Não é o mero reconhecimento de um determinado direito que implica a sua real fruição; esta somente ocorre concretamente, de forma empírica, quando o direito representado em termos financeiros — caso da propriedade comercial — estiver liquidado e em poder do seu destinatário, e não de terceiros.
Os obstáculos que dificultam o efetivo e célere aproveitamento dos créditos de tributos indiretos plurifásicos não cumulativos acarretam considerável violação da garantia à propriedade comercial na medida que ocasionam a falta de dinheiro no caixa do contribuinte e a necessidade de adoção de estratégias outras para a manutenção das suas atividades, como é o caso da obtenção de empréstimo no mercado financeiro.
Essa contratação emergencial de empréstimos bancários quando existente crédito em favor do contribuinte nos cofres dos entes políticos não se afigura razoável, quer sob o ponto de vista jurídico, quer sob o espectro econômico. Em verdade, a situação é comparável à de crime de apropriação indébita ou, quando menos, enriquecimento ilícito por parte do ente político.
Há um movimento de estrangulamento econômico que repercutirá nos contratos celebrados pelos contribuintes que não conseguem gozar do mecanismo da não cumulatividade do tributo. Não raro, esse estrangulamento estimulará a sonegação e a alteração de informações fiscais, em um imediato benefício ao contribuinte sonegador, mas com um potencial prejuízo para toda a sociedade, que deverá experimentar novas políticas econômico-fiscais com viés de operação tapa-buraco.
Não é despiciendo considerar que, em uma pesquisa anterior que realizamos sobre tema semelhante, foi possível constatar um importante documento emitido pela Receita Federal do Brasil (RFB) acerca da quantidade de pedidos de compensação e de restituição de créditos tributários.<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>
Trata-se da Nota RFB/Suara/Corec n. 7/2015, que traz indicadores estratégicos identificados internamente à RFB como “índice de redução do valor de estoques de compensações pendentes” (ICP) e “índice de tempo médio de estoque de restituições pendentes” (IRP). Duas tabelas informativas chamam especial atenção na Nota RFB/Suara/Corec nº 7/2015.
A Tabela 8 informa o ICP em valores monetários, e o número é impressionante: considerado nacionalmente e sem distinção da classificação tributária ou da situação do pedido apresentado, havia, em 2014, um estoque superior a R$ 118 bilhões pendente de compensação com pedidos já apresentados administrativamente via DCOMP. A segunda (ver Tabela 9) informa o histórico dos prazos que o Fisco demanda para a análise dos pedidos de restituição apresentados via PER.
O julgamento do recurso especiais retratado neste ensaio carrega tempero à discussão. Na medida em que se está a considerar os graves impactos da demora na devolução dos recursos financeiros ao seu real proprietário, é absolutamente abusiva a não remuneração do contribuinte mediante atualização monetária iniciada já a partir da apresentação do pedido de restituição. Na verdade, pode-se falar em decisão de todo inconstitucional, considerado os direitos de propriedade privada e de igualdade.
Considerar um cenário benéfico aos entes políticos, de modo que somente tenham de arcar com o pagamento de atualização monetária após o transcurso do prazo de 360 dias do protocolo do requerimento administrativo, extirpa a fruição empírica do direito de propriedade e revela uma sensível desigualdade material no âmbito do que se pretende considerar como um Estado democrático de direito: os entes políticos gozam cada vez mais de prerrogativas que os cidadãos não gozam.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Marcus Faro de Castro alerta para diferenças entre “direitos de consumo” e “direitos de produção” — vide CASTRO, Marcus Faro de. Análise jurídica da política econômica. Revista da PGBC, Brasília, v. 3, n. 1, jun. 2009, p. 50. Disponível em &lt;https://www.bcb.gov.br/pgbcb/062009/revista_procur_geral_bc_vol3_num1.pdf&gt; Acesso em 12/2/2020.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> A noção é esclarecida por Marcus Faro de Castro: “Do ponto de vista contratual, impactos monetários são mudanças nos conteúdos monetários de um contrato ou portfólio, mediante deflexão interportfólio. Isto consiste no processo através do qual um impacto monetário recebido [por um portfólio] e que tenha sido originado a partir de mudanças de performance contratual em um portfólio “A”, com efeitos sobre um portfólio “B”, é defletido, resultando em mudanças nos conteúdos monetários de um terceiro portfólio (“C”). Então, por exemplo, se o preço da conta de energia do meu negócio aumentar, eu posso subir os preços das commodities que eu vendo.” Texto original: “In contractual terms, monetary impacts are changes in monetary contents of a contract or portfolio through interportfolio relay. This consists in the practice through which a received monetary impact originated from changed relational performance in portfolio “A” and effecting a contract of portfolio “B” is deflected in the form of changes in monetary contents of a third portfolio (“C”). Thus, for example, if the price of energy bill of my business goes up, I can rise the prices of commodities I sell.” CASTRO, Marcus Faro de. Monetary impacts and currency wars: a blind spot in the discourse about transnational legal orders? Revista brasileira de política internacional. Vol. 60, n. 1, Brasília, 2017.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Texto original: “although specific price signals may affect some portfolios, not others, the price of money and of financial assets (interest rates) spreads quickly and pervasively throughout contractual networks”. Ibidem, p. 25, tradução pelo autor.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Texto original: “it is important to understand that price movements may come as response to changes in private investment strategies, but they may also result from public policy decisions”. CASTRO, Marcus Faro de. Monetary impacts and currency wars: a blind spot in the discourse about transnational legal orders? Trabalho apresentado para o Second International Conference of the World Interdisciplinary Network for Institutional Research (WINIR). Rio de Janeiro, set. 2015, p. 25, traduzido pelo autor. Citado com expressa autorização do autor original.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Esta anotação tem lugar em vista de um cenário econômico recentemente vivenciado no Brasil: quadro de descontrole inflacionário, que não se mantém na meta estipulada pelo Governo Federal; constantes elevações da taxa pública de juros, conhecida como SELIC; descrédito quanto à confiabilidade do Brasil enquanto destinatário de investimentos internacionais, o que se pode ver nos downgrades das “agências de avaliação de risco”, que retiraram do Brasil o selo de investment grade.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> O empréstimo compulsório aqui referenciado como exemplo foi instituído em favor das Centrais Elétricas Brasileiras S.A. – Eletrobrás pela Lei 4.156, de 28/11/1962, regulamentada pelo Decreto-Lei 1.512, de 29/11/1976, e prorrogada pela Lei 7.181, de 20/12/1983. Com a vigência da Constituição brasileira de 1988, o STF reconheceu, por ocasião do julgamento do RE 146.615-4, que as normas instituidora, regulamentadora e prorrogadora do empréstimo compulsório foram recepcionadas pela nova estrutura normativa constitucional e que seria viável e legítima a devolução dos empréstimos mediante a conversão em ações preferenciais da Eletrobrás. Fato é que o valor das ações não correspondia monetariamente ao valor do empréstimo, o que acarretou os efeitos práticos de um calote generalizado. Várias são as discussões atualmente judicializadas que pretendem a incidência de correção monetária sobre o valor do empréstimo compulsório.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> “CIVIL. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ARTIGO 543-C, DO CPC. TRIBUTÁRIO. IPI. PRINCÍPIO DA NÃO CUMULATIVIDADE. EXERCÍCIO DO DIREITO DE CRÉDITO POSTERGADO PELO FISCO. NÃO CARACTERIZAÇÃO DE CRÉDITO ESCRITURAL. CORREÇÃO MONETÁRIA. INCIDÊNCIA. 1. A correção monetária não incide sobre os créditos de IPI decorrentes do princípio constitucional da não-cumulatividade (créditos escriturais), por ausência de previsão legal. 2. A oposição constante de ato estatal, administrativo ou normativo, impedindo a utilização do direito de crédito oriundo da aplicação do princípio da não-cumulatividade, descaracteriza referido crédito como escritural, assim considerado aquele oportunamente lançado pelo contribuinte em sua escrita contábil. 3. Destarte, a vedação legal ao aproveitamento do crédito impele o contribuinte a socorrer-se do Judiciário, circunstância que acarreta demora no reconhecimento do direito pleiteado, dada a tramitação normal dos feitos judiciais. 4. Consectariamente, ocorrendo a vedação ao aproveitamento desses créditos, com o consequente ingresso no Judiciário, posterga-se o reconhecimento do direito pleiteado, exsurgindo legítima a necessidade de atualizá-los monetariamente, sob pena de enriquecimento sem causa do Fisco (Precedentes da Primeira Seção: EREsp 490.547/PR, Rel. Ministro Luiz Fux, julgado em 28.09.2005, DJ 10.10.2005; EREsp 613.977/RS, Rel. Ministro José Delgado, julgado em 09.11.2005, DJ 05.12.2005; EREsp 495.953/PR, Rel. Ministra Denise Arruda, julgado em 27.09.2006, DJ 23.10.2006; EREsp 522.796/PR, Rel. Ministro  Herman Benjamin, julgado em 08.11.2006, DJ 24.09.2007; EREsp 430.498/RS, Rel. Ministro Humberto Martins, julgado em 26.03.2008, DJe 07.04.2008; e EREsp 605.921/RS, Rel. Ministro Teori Albino Zavascki, julgado em 12.11.2008, DJe 24.11.2008). 5. Recurso especial da Fazenda Nacional desprovido. Acórdão submetido ao regime do artigo 543-C, do CPC, e da Resolução STJ 08/2008.”
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Esse entendimento foi recentemente referendado pelo STF na oportunidade do julgamento dos embargos de declaração opostos ao acórdão proferido no RE 229.605, em julgamento realizado pelo seu Tribunal Pleno, entendeu o STF que incide correção monetária em mora injustificada na restituição de tribute ao contribuinte. A propósito, vide notícia divulgada no sítio do STF na Internet, disponível em &lt;http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=313747&gt; Acesso em 7/4/2016.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> O requerimento de acesso à informação pelos meios oficiais, que objetivava o acesso a informações mais específicas, foi indeferido ao argumento de que não haveria estrutura ou servidores suficientes para prestá-las.

Cobertor curto

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JOTA

Análise do recente posicionamento do STJ acerca do início da incidência de correção monetária

Cobertor curto: o STJ e a correção monetária do indébito tributário

Análise do recente posicionamento do STJ acerca do início da incidência de correção monetária