Maria Gabriela Lopes de Macedo

Numa festiva tarde de 1º de maio de 1943 era aprovado o texto da Consolidação das Leis do Trabalho (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/clt">CLT</a>) no Brasil, assinada pelo presidente Getúlio Vargas. Mas a CLT não é um fato isolado, ela é, na verdade, um fruto e um marco da história dos trabalhadores.
No século 19, com a revolução industrial, o trabalho fabril surge em condições degradantes, com horas excessivas de trabalho. Organizaram-se, então, em várias partes do mundo, movimentos reivindicando melhores condições de trabalho, surgindo para o direito problemas novos, em meio à crise industrial e a revolta operária, distintos dos conflitos de direito civil<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. Havia urgência de uma nova lei para harmonizar o trabalho e o capital<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
No debate nacional sobre a eventual inclusão das relações laborais no Código Civil, como uma “locação de serviços”, Evaristo de Morais, numa das primeiras obras sobre “direito operário”, questiona: como poderiam vir esses problemas sociais modernos resolvidos em leis de outrora, que refletiam outras instituições, outras aspirações, outras situações econômicas? Defende-se, então, a criação de um novo direito, estabelecendo preço, duração e qualidade do trabalho<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
O direito do trabalho surge para trazer igualdade material entre as partes, de forma distinta do direito civil, com o pilar de desigualdade entre empregador e empregado, devendo a lei servir como recurso eminentemente social de equilíbrio de forças<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
Sabe-se que o tardio fim da escravidão no Brasil atrasou o nascimento do nosso direito do trabalho. Mas, após as algumas legislações esparsas, num Dia do Trabalhador<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>, nasce a CLT, fazendo parte de um contexto geral de novos modos da empresa, do Estado e do trabalhador. Como disse Márcio Túlio Viana, a CLT é uma flor do cerrado, que cresceu em chão duro, pobre e difícil, resistindo ao tempo e sempre brotando de novo<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>.
Em editorial publicado no dia 2 de maio de 1943, o Jornal do Brasil afirmou que a CLT marcava “o começo de uma nova era... a cristalização do direito trabalhista brasileiro”<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>. A partir daquele ano, a CLT foi ganhando força e todos os dias, durante o programa de rádio Hora do Brasil, eram explicados os direitos e obrigações nela envolvidos, além da relevância dos sindicatos<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>.
Para além do simbolismo da CLT, ela consolidou diversos direitos trabalhistas que persistem até hoje, quando completa seus 80 anos. Contudo, o cenário da assinatura da CLT, anterior à Constituição de 1988, já não é mais o mesmo de outrora. O trabalhador médio já não é o do chão de fábrica, que executa atividades manuais exaustivas e tem pouca instrução, mas sim aquele munido de informação e tecnologia<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>. Passados 80 anos, os meios de produção, tecnologias e formas de trabalho sofreram alterações substanciais, de modo que o Decreto-lei 5.452/43 (dita CLT) se distancia a cada dia da versão original.
Em razão das novas prestações de serviços, foram editadas leis esparsas, regulando setores específicos da economia, como a lei dos motoristas (Lei 13.103/2015), lei dos trabalhadores domésticos (LC 150/2015), lei do trabalho temporário (Lei 6.019/74) etc. Além disso, houve leis que modificaram o próprio texto da CLT, acrescentando, revogando ou modificando dispositivos, como a lei da liberdade econômica (Lei 13.874/19) e a lei da reforma trabalhista (Lei 13.467/17).
O objetivo da CLT era ser uma verdadeira consolidação da legislação trabalhista à época, criando algumas previsões normativas, para articular, organizar e complementar a legislação laboral brasileira, com um bloco lógico e integrado de normas. Contudo, essa legislação sofreu inúmeras modificações, acabando por retirar a uniformidade da CLT. Essas muitas modificações conflituantes fazem com que a nossa flor do cerrado tenha se tornado uma colcha de retalhos, perdendo a própria natureza de consolidação.
Os dispositivos originários, que têm como base o trabalhador fabril, foram deixados “à deriva” para harmonizar com as modernizações acrescentadas, sem um exercício axiológico. A ausência de lógica integrativa de seus dispositivos, além de afastar a CLT da nova realidade laboral, deixa aos magistrados a interpretação de seus preceitos, surgindo as mais diversas decisões judiciais e uma grande insegurança jurídica.
Em meio à instabilidade da legislação laboral, o STF já interveio em algumas ocasiões, declarando inconstitucionais os posicionamentos de tribunais trabalhistas em temas como a terceirização. Na ADPF 324, com base na livre inciativa, o STF concluiu pela inconstitucionalidade do entendimento da Súmula 331 do TST, que entendia pela ilicitude da terceirização da atividade-fim.
A caracterização do vínculo de emprego também é tema sensível e de muita insegurança jurídica. Legislações comerciais apartadas, que regulam relações distintas do vínculo de emprego, já foram declaradas constitucionais pelo STF, afastando entendimentos de tribunais trabalhistas em sentido contrário (como a lei dos transportadores autônomos de carga – Lei 11.442/07 – declarada constitucional pelo STF na ADC 48).
Tal tema carece de uma presunção relativa de contrato de trabalho, com critérios objetivos, como ocorre no direito português (art. 12 do CT). Outro modelo de relevante inspiração é o conceito de “trabalhador autônomo economicamente dependente”, um meio termo entre trabalho autônomo e subordinado, com traços de autonomia e dependência econômica, fazendo jus a alguns direitos laborais específicos (como igualdade, segurança e saúde no trabalho, interrupção anual).<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>
Independente das críticas e soluções apontadas, fato é que a CLT há algum tempo perdeu sua natureza de consolidação. E a ideia inicial era mesmo ser uma consolidação, diferente de um código, com a função de organizar a legislação existente e criar alguns conceitos novos, deixando as portas abertas para mudanças futuras<a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a>. Mas, após tanto tempo de vigência, não estaria na hora de parar de “remendar” a CLT e criar um real código do trabalho (como em diversos países)?
A nossa flor do cerrado tem relevância indiscutível para assegurar os direitos dos trabalhadores, mas é incapaz de perdurar para sempre e acompanhar as expressivas mudanças nos modos de prestação de serviços (inclusive com a nova era digital). A exemplo da própria CLT, que foi marco do século 20, há a necessidade de uma nova codificação, uniforme e integrada, mantendo o núcleo essencial dos direitos conquistados (muitos inclusive constitucionais) e, ao mesmo tempo, marcando a nova realidade laboral do século 21, como novos conceitos, direitos e deveres laborais.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Os sindicatos, que de início eram como coalizões temporárias, ajudaram a criar tal Direito, pressionando pela elaboração de leis/negociando suas próprias normas com os patrões, bem como gerando respeito por elas, por meio das greves.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Moraes, Evaristo de, 1871-1939 - Apontamentos de direito operário - 3 ed - São Paulo: LTr, 1986. p. 20 - 28.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Ibidem. p. 11 - 25.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Ibidem. p. 16 - 20.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> A data de 1º de maio é internacionalmente reconhecida como o “dia do trabalhador” em razão de uma manifestação de 01/05/1886, em que cerca de 50 mil trabalhadores foram às ruas de Chicago, nos Estados Unidos, para reivindicar a redução da jornada de trabalho de 16 para 8 horas diárias. Ao fim de três dias, alguns manifestantes foram mortos e dezenas ficaram feridos em confronto com policiais.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Viana, Márcio Túlio. 70 anos de CLT, uma história de trabalhadores - Brasília, Tribunal Superior do Trabalho, 2013. p. 21; 61.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Jornal do Brasil, 2-5-1943 n. 00101, p 6. Hemeroteca digital brasileira. Fundação Biblioteca Nacional In: memoria.bn.br, acessado em 19-11-2013 in Viana, Márcio Túlio. 70 anos de CLT, uma história de trabalhadores - Brasília, Tribunal Superior do Trabalho, 2013. p. 21.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Viana, Márcio Túlio. op. cit. p. 54.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a>Bernardini, Mariana. A história do Direito do Trabalho e a evolução do Direito do Trabalho no Brasil. Disponível em: &lt;https://www.trt4.jus.br/portais/escola/modulos/noticias/415206&gt;. Acesso em: 25 abr. 2023.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> O art. 10 do Código do Trabalho Português e art. 11 do Estatuto del Trabajo Autónomo da Espanha.
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> Viana, Márcio Túlio. op. cit. p. 76.

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Independente das críticas e soluções, fato é que a CLT há algum tempo perdeu sua natureza de consolidação

CLT, 80 anos: a história e o futuro dos direitos trabalhistas

Independente das críticas e soluções, fato é que a CLT há algum tempo perdeu sua natureza de consolidação de leis do trabalho