Marcus Vinicius de Azevedo Braga

A operadora de streaming Netflix se caracteriza por uma pluralidade nas suas produções, abrangendo aspectos multiculturais, temas polêmicos e a aposta em ideias de alto risco. Uma ousada fórmula que trouxe grandes sucessos e inventivas películas, como o documentário-comédia “Clichês de Hollywood: O cinema como você sempre viu”, lançado em 2021.
A peça categoriza, com um tom cômico, os principais clichês que aparecem nos filmes na história do cinema, comentados por roteiristas, atores e críticos de cinema. O espectador sai com a impressão de que tudo no cinema se resume àquele conjunto de situações, com pequenas variações de roupagens. Inteligente, mas deprimente, por quebrar a magia da sétima arte, uma das maravilhas da modernidade.
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Mas não é só o cinema que se compõe de uma miscelânea de clichês. A vida é cheia de estruturas que se repetem. Regularidades. O noticiário sobre corrupção também é uma grande variação em torno dos mesmos temas. É difícil surgir uma tipologia nova no que se refere aos desvios dos recursos públicos, seja em grandes obras de infraestrutura, seja na política social gerida no pequeno município. Apenas clichês.
Esse artigo se deterá ao clichê central desses atos de corrupção na visão do autor. O equivalente a perseguição de carros nos filmes de ação, ou ao “felizes para sempre” nos contos infantis. Trata-se do binômio preço-produto, uma lógica que comparece na grande maioria dos escândalos de corrupção relacionados às contratações públicas de serviços e de produtos. E as contratações são a grande fonte do noticiário de corrupção, sem desprezar, naturalmente, o potencial de corrupção de questões regulatórias e de arrecadação de recursos.
Mas do que se trata esse binômio clichê? Simples, ele indica que na busca de se praticar um ato corrupto no processo de contratação no âmbito governamental, os atores envolvidos vão tirar seu ganho ou de um preço majorado em relação ao mercado, ou na subtração do serviço/produto contratado, obtendo assim valor de forma ilícita, de forma sustentável no retorno desejável pela ação corrupta, que envolve riscos, na visão do triângulo da fraude de Donald Cressey, ideia da década de 1950.
A casuística de corrupção nos escândalos ilustra bem essa lógica. A corrupção é uma forma de obtenção de valor, de se extrair recursos de forma ilegal ou ilegítima de uma ação vinculada a uma política pública. Pode-se fraudar a publicação do edital, se pagar propina ao fiscal do contrato, mas o que se deseja ao fim é obter uma certa mais-valia daquela relação, que só é possível por receber um valor muito acima do justo ou por se fornecer serviços e produtos em quantidade ou qualidade a menor. Por trás de tudo está esse clichê.
Essa visão facilita em muito a visão daqueles que trabalham em órgãos de controle e que, com a sua ação, fomentam a criação de salvaguardas nesse processo. Valoriza-se assim a criação de painéis públicos de preços, catálogos de bens padronizados e limites de preços máximos para serviços pela metragem. E pelo lado dos produtos, a atuação da fiscalização do contrato e a metodologia da liquidação de despesas passa a se revestir de grande relevância.
A transparência também tem a sua lógica afetada nessa visão, pois o preço e a entrega dos produtos e serviços assume uma centralidade na disponibilização. Publicar o preço unitário de insumos, fotografias de obras e de equipamentos em uso, com detalhamento das especificações, instrumentaliza o controle social na prevenção da maior parte das fraudes, por permitir a comparabilidade de preços e a verificação das entregas em determinados contextos.
A régua do preço-produto é aquela que, a despeito da relevância de outras iniciativas, como verificações documentais ou programas de integridade, age diretamente sobre a fonte da extração de valor das contratações pela corrupção, fornecendo pontos de controle que asseguram uma contratação a bom preço e que propicie insumos efetivos para as políticas públicas, o que se deseja enfim.
Até a lógica da auditoria governamental tem a se beneficiar com essa priorização. Afinal, controlar é fazer escolhas! E o foco nas verificações do preço e da entrega já possibilita, com pouco esforço, emitir uma opinião segura sobre a adequação daquela contratação.
A nova lei de licitações e contratos administrativos (<a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14133.htm">Lei 14.133/2021</a>) trouxe avanços consideráveis nesse tema, sintonizada com inovações recentes, como o painel de preços do Ministério da Economia, e que dialogam com essa lógica. A lei traz o advento do Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP), no art. 174, e robustece-se a positivação do recebimento dos objetos contratados (art. 140) e da fiscalização (art. 117), trazendo importância a mecanismos de controle essenciais no contexto aqui apresentado.
Como nos filmes que embalam a imaginação popular, os clichês são estruturas que, pela sua constância, são a garantia de sucesso na construção de roteiros. Nas sagas relativas aos desvios dos recursos públicos, estruturas derivadas do próprio desenho das políticas públicas se repetem, e apesar da familiaridade, sempre surpreendem gestores, controladores e a imprensa, em que pese serem cenas repetidas de outros filmes.
As salvaguardas das contratações públicas, mais do que a formalidade de ritos e documentos, precisam adotar uma lógica de riscos que dialogue com os principais problemas reiterados, que têm a sua raiz de fragilidades de desenho, mas também da obtenção de vantagens indevidas nas relações contratuais. E inevitavelmente, essa lógica perpassa o preço praticado e o produto entregue, uma regra simples e barata de se acompanhar a gestão pública.

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JOTA

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