Luiz Felipe Roque

Em abril deste ano, viralizou nas redes sociais um tuíte de Thiago Amparo questionando a ausência de negros e presença ínfima de mulheres em foto que anunciava a chapa de Luiz Inácio Lula da Silva e Geraldo Alckmin para as <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/eleicoes-2022">eleições de 2022</a>.
Segundo o advogado e professor, o tuíte gerou reações como “Esqueçam a cirandagem identitária até outubro”, “Viver de alimentar polêmicas inúteis com população comendo osso fala muito de você”<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Os ataques à fala de Amparo não reproduzem o projeto político da chapa, tampouco justificam o nivelamento desta à oponente representada pelo ultraconservador Jair Messias Bolsonaro. Indicam, porém, três falácias sobre a pauta identitária ainda muito propagadas pela esquerda e direita brasileiras.
A primeira é a de que essas pautas seriam influência estrangeira ou produto cultural do neoliberalismo, mas não resposta a injustiças perpetradas por nossa estrutura social. No entanto, o fato de que os movimentos negro, feminista e LGBTQIA+ só tenham se articulado de modo mais coeso a partir da década de 1970 no cenário internacional e nacional não se confunde com a inexistência de demandas difusas ou abafadas até então.
Essas minorias sempre existiram, e sua existência é historicamente marcada por reiterada violência, estigmatização e negação de direitos e garantias. Seus membros sofreram e ainda sofrem pressões pelo encobrimento de sua identidade (“covering”)<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, obstáculos no acesso à educação, à saúde pública e ao mercado de trabalho, marginalização social, assédio e violência física, dentre outras expressões da discriminação.
Isso para não mencionar a perseguição explícita e histórica a alguns grupos – caso, por exemplo, da penalização da prática de sodomia no Brasil colonial<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> ou as nem tão distantes batidas policiais comandadas pelo delegado José Wilson Richetti em São Paulo no início da década de 1980, que tinham por alvo notadamente prostitutas e “travestis”<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
Sua demanda por justiça, por razões históricas e culturais, só ganhou a forma organizada de reivindicações de identidades coletivas com o impulsionamento dos movimentos de minorias no Ocidente após os anos 1970 – e, no Brasil, com a redemocratização (ressalvados marcos como a atuação do Grupo Somos, a edição do Lampião da Esquina ou do Chanacomchana, dentre outros, mencionando-se apenas o movimento LGBTQIA+).
A então ausência ou insuficiência de estudos, dados, discussões e políticas voltadas a esses grupos, porém, diz mais sobre o conservadorismo da sociedade brasileira e ocidental que sobre a existência ou não de demandas por reconhecimento. E a participação de atores políticos que deem visibilidade, compreendam e representem determinadas causas é relevante diante desse histórico descompromisso.
A segunda falácia sobre pautas identitárias é a de que estas seriam menos importantes que as socioeconômicas. Se, por um lado, autores da Teoria Crítica como Axel Honneth traduzem ambas as pautas como lutas por “reconhecimento” da condição de minorias, como a negra ou proletária (minorias em termos sociais, não quantitativos), por outro, autores como Nancy Fraser concebem demandas por redistribuição de bens e riquezas distintamente de demandas por reconhecimento de identidades<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
As primeiras resultariam da estrutura político-econômica de uma sociedade, caracterizada pela exploração econômica, pobreza etc. As segundas, de aspectos sociais relativos à representação, interpretação e comunicação (como a negação de direitos a um grupo)<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>.
Ainda que essas demandas possuam naturezas distintas, não compõem “esferas independentes” e nenhuma delas subordina-se à outra. Pelo contrário: comumente injustiças socioeconômicas confundem-se com e perpetuam injustiças culturais – e vice-versa.
Exemplo dessa intersecção entre fatores socioeconômicos e identitários são os dados de que no Brasil brancos possuem renda 74% superior à de pretos e pardos<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>, ou de que 66,3% da população carcerária do país identifica-se como negra<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>. Em casos como o da minoria preta ou negra, é impossível falar da injustiça socioeconômica desvinculada da injustiça simbólica ou cultural.
Quanto aos que sofrem exclusivamente desta última injustiça, suas demandas envolvem diretamente o exercício de sua autonomia e dignidade, valor esse intrínseco à ideia mesma de humanidade.
O direito ao reconhecimento de uma minoria consiste na exigência de igual respeito de seus membros em relação a membros da maioria, de serem reconhecidos em sua humanidade como fins em si mesmos, jamais como meios<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>, como propõem leituras contemporâneas da filosofia moral kantiana.
Assim, não é razoável afirmar-se que a vida humana digna (a qual abarca, por exemplo, o direito à integridade física e moral) é fim secundário comparada ao provimento de condições econômicas básicas. Ambos os fins complementam-se: não se vive dignamente sem a subsistência, mas esta não é suficiente para se assegurar a dignidade de alguém.
A terceira falácia sobre pautas identitárias é a de que estas são solucionadas com a não diferenciação de pessoas e identidades. Ela parte de duas premissas corretas: de que a igualdade é uma forma de justiça e de que identidades minoritárias são diferentes daquelas da maioria. Erroneamente conclui, porém, que para tratar minorias igualmente, precisamos desconsiderar suas diferenças.
Membros de um grupo minoritário constroem autonomamente sua identidade contrastando-a com as demais assim como membros de um majoritário. No entanto, estes, diferentemente daqueles, possuem na sociedade status social privilegiado em razão do qual sua concepção de vida, ou identidade, goza de estima social e institucionalmente reconhecida. Sua existência e expressão não são reprovadas ou ameaçadas.
Não é o caso de minorias. Se, por um lado, jamais se questionou a razoabilidade da exposição maciça de casais heterossexuais em cenas de afeto ou apelo sexual na TV brasileira, por outro, 51% dos brasileiros concordam que comerciais com casais homossexuais devem ser proibidos para proteger as crianças, como indica pesquisa do Datafolha<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>.
Nunca se disputou o direito de casais heterossexuais celebrarem união estável ou casamento como no caso de casais homossexuais, que só conquistaram esses direitos, respectivamente, por decisão do <a href="https://www.jota.info/stf">Supremo Tribunal Federal</a> (no julgamento da ADI nº 4277 e da ADPF nº 132) e entendimento do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/cnj">Conselho Nacional de Justiça</a> (que resultou na Resolução nº 175/2013).
Tampouco se verifica a prática de crimes de ódio e violência tendo por vítimas cidadãos brancos, homens e heterossexuais pelo simples fato de o serem, como ocorre com negros, mulheres e pessoas LGBTQIA+. Para fins de ilustração, índices apontam que, somente em 2020, o Brasil registrou oficialmente 1.338 casos de feminicídio (homicídio tendo como vítima mulher, por sua condição de gênero)<a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a>. Quantos homens cis morrem pela mesma razão?
Tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais é princípio clássico da justiça. Por ele pode-se explicar que pautas identitárias não requerem a simples afirmação da igualdade dos diferentes, pois esta conserva privilégios e injustiças.
Requerem, em vez disso, a afirmação da diferença (“políticas da diferença”, termo cunhado por Charles Taylor<a href="#_ftn12" name="_ftnref12">[12]</a>) e da igual estima desses grupos. Ou então a desconstrução de aspectos culturais que reproduzem e reiteram padrões normativos (como defendem autores como Judith Butler, que propõe a desconstrução do binarismo de gênero<a href="#_ftn13" name="_ftnref13">[13]</a>).
Falácias como as indicadas levam a crer que a questão do reconhecimento é menor. A participação de negros, mulheres, indígenas, deficientes, LGBTQIA+ etc. efetivamente voltados à causa em projetos políticos e centros decisórios contribui diretamente à promoção da diversidade e, indiretamente, à afirmação da igual dignidade de cada membro de uma minoria.
A dignidade é valor expressamente previsto no art. 1º, inciso III da Constituição Federal de 1988 como fundamento da República – passando muito longe, portanto, da mera “cirandagem”.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> AMPARO, Thiago. A foto branca do Lula-Alckmin. Folha de S.Paulo, 13 abr. 2022. Disponível em: <a href="https://www1.folha.uol.com.br/colunas/thiago-amparo/2022/04/a-foto-branca-do-lula-alckmin.shtml?loggedpaywall">https://www1.folha.uol.com.br/colunas/thiago-amparo/2022/04/a-foto-branca-do-lula-alckmin.shtml</a>. Acesso em 11 mai. 2022.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Sobre o encobrimento de identidades, ver YOSHINO, Kenji. Covering: the hidden assault on our civil rights. New York: Random House Trade Paperbacks, 2006.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Ver por todos TREVISAN, João Silvério. Devassos no Paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. 4. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Objetiva, 2018, pp. 132-138.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Ibidem, p. 605-610. QUINALHA, Renan. Contra a moral e os bons costumes: A ditadura e a repressão à comunidade LGBT (Col. Arquivos da repressão no Brasil). São Paulo: Companhia das Letras, 2021, p. 41-98 e SÃO PAULO. Comissão da Verdade do Estado de São Paulo. Relatório: Tomo I – Recomendações gerais e recomendações temáticas; Parte II: Grupos sociais e movimentos perseguidos ou atingidos pela ditadura. Disponível em: <a href="http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/relatorio/tomo-i/parte-ii-cap7.html">http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/relatorio/tomo-i/parte-ii-cap7.html</a>. Acesso em 1 jan. 2022.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> A diferença de perspectivas é contrastada em FRASER, Nancy; HONNETH, Axel. ¿Redistribución o reconocimiento? Un debate político-filosófico. Madrid: Ediciones Morata y Funcación Paideia Galiza, 2006.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> FRASER, Nancy. Justice Interruptus: critical reflections on the “postsocialist” condition. New York: Roudledge, 1997, p. 14-15.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> IBGE. Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil. Estudos e Pesquisas: Informações Demográficas e Socioeconômicas, n. 41, p. 3. Disponível em: <a href="https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf">https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf</a>. Acesso em 11 mai. 2022.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> BUENO, Samira; LIMA, Renato Sérgio de (coord). Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2021 (Fórum Brasileiro de Segurança Pública), ano 15, 2021, p. 13. Disponível em: <a href="https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2021/10/anuario-15-completo-v7-251021.pdf">https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2021/10/anuario-15-completo-v7-251021.pdf</a>. Acesso em 11 mai. 2022.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> Cf. KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes (trad. P. Quintela). Lisboa: Edições 70, 2007 e LOPES, José Reinaldo de Lima. “Direitos Humanos e tratamento igualitário: questões de impunidade, dignidade e liberdade”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 15, n. 42, pp. 77-100, fev. Disponível em: <a style="font-family: inherit; font-size: inherit; font-style: inherit; font-variant-ligatures: inherit; font-variant-caps: inherit;" href="https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/SymygWWGQsXCzQ3BynRsPpB/?format=pdf&amp;amp;lang=pt">https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/SymygWWGQsXCzQ3BynRsPpB/?format=pdf&amp;amp;lang=pt</a>. Acesso em 12 mai. 2022.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> PINHO, Angela. Maioria diz ser contra casais gays em comerciais de televisão, diz Datafolha. Folha de S.Paulo, 25 dez. 2021. Disponível em: <a href="https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2021/12/maioria-diz-ser-contra-casais-gays-em-comerciais-de-televisao-diz-datafolha.shtml">https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2021/12/maioria-diz-ser-contra-casais-gays-em-comerciais-de-televisao-diz-datafolha.shtml</a>. Acesso em 11 mai. 2022.
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> BRAGON, Ranier. Brasil registra 1.338 feminicídios na pandemia, com forte alta no Norte e no Centro-Oeste. Folha de São Paulo, 6 jun. 2021. Disponível em: <a href="https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2021/06/brasil-registra-1338-feminicidios-na-pandemia-com-forte-alta-no-norte-e-no-centro-oeste.shtml">https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2021/06/brasil-registra-1338-feminicidios-na-pandemia-com-forte-alta-no-norte-e-no-centro-oeste.shtml</a>. Acesso em 11 mai. 2022.
<a href="#_ftnref12" name="_ftn12">[12]</a> TAYLOR, Charles. “The politics of recognition” in Philosophical arguments. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1995, pp. 225-256.
<a href="#_ftnref13" name="_ftn13">[13]</a> BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: Feminismo e subversão da identidade (trad. R. Aguiar). 9. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.

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JOTA

Falácias sobre a pauta do reconhecimento

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'Cirandagem identitária'?

Três falácias sobre a pauta identitária ainda muito propagadas pela esquerda e direita brasileiras