Paulo Fernando Pinheiro Machado

“Quantas disputas poderiam ter sido reduzidas a um único parágrafo se as partes tivessem ousado definir seus termos?”  
― Aristóteles 
Um procedimento judicial bem conduzido não é necessariamente aquele que acaba com uma sentença de mérito terminativa, na qual uma das partes ganha e a outra perde. Muitas vezes, o procedimento judicial de sucesso é aquele que, ao longo do processo, as partes encontram oportunidades de convergirem, buscando uma solução amigável para a disputa e mantendo o relacionamento entre elas. Isso é particularmente verdadeiro na seara internacional, em especial em disputas entre países vizinhos, uma vez que a geografia é estática e a necessidade da boa convivência bilateral uma realidade incontornável.  
No dia 1º de dezembro corrente, a Corte Internacional de Justiça (CIJ), de maneira um tanto inesperada, apresentou a sua sentença no caso “Disputa sobre o Status e o Uso das Água do Silala (Chile v. Bolívia)” encerrando uma controvérsia iniciada em 2016 acerca da soberania de águas transfronteiriças.  
O acesso e o manejo dos recursos hídricos é uma questão de extrema importância para a geopolítica do continente sul-americano, em especial no contexto das relações bilaterais entre Chile e Bolívia. A região norte do Chile, rica em recursos minerais, que dependem de água para a sua exploração, é marcada pela presença do Deserto do Atacama, que, em uma área de cerca de 128 mil km2, constitui-se no deserto não-polar mais alto e mais seco do mundo. A Bolívia, por sua vez, é um Estado encravado, cujo acesso ao mar fora perdido justamente para o Chile durante a Guerra do Pacífico (1879-1883), criando um diferendo entre os dois países que perdura até os dias de hoje. A Constituição da Bolívia traz mesmo entre seus principais objetivos nacionais a recuperação de seu acesso ao mar.  
O Silala, por sua vez, é um curso de água que nasce nos Andes, no Departamento de Potosí, na Bolívia, atravessa a fronteira com o Chile, desembocando no Rio Loa, o mais extenso do Chile, com 440 km, que percorre o Deserto de Atacama e desemboca no Oceano Pacífico. Em 2017, a ONU declarou o Silala como uma das bacias mais hidropoliticamente vulneráveis do mundo, devido às questões políticas, históricas e econômicas subjacentes. 
 A Bolívia sustentava que o Silala não seria um rio, mas sim tecnicamente um manancial, isto é, uma fonte de água que teria sido artificialmente canalizada pelo Chile para uso industrial em seu território. O Chile, por sua vez, sustentava que o Silala era um rio transfronteiriço, cujo curso era naturalmente inclinado para o oeste e, portanto, sujeito às normas costumeiras de Direito Internacional Público (DIP). 
 As partes têm um longo histórico de cooperação na utilização compartilhada das águas do Silala, especialmente a partir de 1906 por intermédio da “Ferrocarril de Antofogasta y Bolívia (FCAB)”, linha que conectava La Paz ao porto de Antofogasta e tinha a concessão de ambos os países para a exploração dos recursos hídricos do rio.  
 Um século mais tarde, em 1997, a disputa acerca da natureza e do regime jurídico a que estaria submetido o Silala teve início com a revogação da concessão pelo Governo da Bolívia, no sentido de que se tratava de um manancial artificialmente canalizado, cuja utilização dos recursos hídricos deveria ser ressarcida a La Paz. O Chile, então, iniciou procedimentos junto à CIJ em junho de 2016, com base do artigo XXXI do Pacto de Bogotá, visando obter uma declaração de que o Silala fosse um rio internacional, sujeito às normas costumeiras de DIP. 
A CIJ, ao apresentar a sua decisão no caso em 1º de dezembro, ressaltou que ao longo do procedimento as partes progressivamente convergiram em uma série de pontos, em particular durante as audiências orais, quando a Bolívia em diversas ocasiões expressou concordância com a posição do Chile de que, apesar do “aumento artificial” do volume de água do Silala, o rio ainda assim se qualificava como um curso de água internacional, sujeito às normas costumeiras de DIP.  
Diante da convergência de posições, assim, a CIJ entendeu que a disputa entre as partes cessou de existir e que, portanto, o pedido inicial havia perdido o objeto, não sendo possível um julgamento de mérito sobre ele. A CIJ ressaltou que não tem competência para julgar questões hipotéticas, e que, por isso, não poderia se manifestar sobre uma eventual disputa futura entre as partes acerca dos detalhes da convergência obtida no decorrer do procedimento, que devem ser estabelecidos pelas partes no bojo do seu relacionamento bilateral.  
No atual momento climático, o fim do diferendo é auspicioso. A entrada do fenômeno “La Niña” em seu terceiro ano consecutivo tem causado uma seca histórica na região, o que demanda uma atitude cooperativa no manejo sustentável dos seus recursos escassos. A geografia é uma realidade incontornável. 
 O Juiz Peter Tomka, em uma declaração apartada, anexa à sentença, afirmou que a decisão da CIJ deve ter surpreendido as partes, em especial a reclamante, o Chile. “De fato, ela não decide quase nada”, ironizou o diplomata eslovaco. Mais importante do que proceder a uma decisão terminativa de mérito, como vimos, foi a oportunidade que o processo perante a CIJ ofereceu para as partes encontrarem um consenso para encerrar amigavelmente a disputa. Nem todo o processo termina com uma das partes chorando. Ubi concordia, ibi victoria [1].
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[1] Onde há harmonia, há a vitória.

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JOTA

Decisão no caso 'Disputa sobre o Status e o Uso das Água do Silala (Chile v. Bolívia)'

CIJ: Chile vs Bolívia

Decisão da Corte Internacional de Justiça (CIJ) no caso “Disputa sobre o Status e o Uso das Água do Silala (Chile v. Bolívia)”