Paulo Fernando Pinheiro Machado

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"The past is not dead, it is not even past”. 

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<footer class="jota-article__quote-cite" style="text-align: right;">— William Faulkner.</footer>
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No último dia 29 de abril, um novo caso envolvendo descumprimento de sentença foi protocolado perante a Corte Internacional de Justiça (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/cij">CIJ</a>). Desta vez, trata-se de uma queixa da Alemanha contra a Itália, na qual Berlim alega que Roma teria descumprido os termos de uma decisão anterior da CIJ no caso Imunidades Jurisdicionais do Estado (Alemanha v. Itália: Grécia Interveniente), cujo veredito fora apresentado em 3 de fevereiro de 2012. Ainda resquícios das atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial.
A leitora atenta deste espaço deverá se recordar que o tema do descumprimento de sentença internacional é um velho conhecido nosso. Na <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/descumprimento-de-sentenca-da-corte-internacional-de-justica-17092021">coluna de 17 de setembro de 2021</a> <a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, apresentamos as dificuldades jurídicas da questão, que giram em torno, essencialmente, de responder à pergunta de se haveria ou não, perante o Direito Internacional Público, uma outra forma de execução de sentença da CIJ que não o recurso ao Conselho de Segurança da ONU, segundo o procedimento previsto no artigo 94(2) da Carta das Nações Unidas. Alguns juristas de peso, como o professor Antônio Augusto Cançado Trindade, defendem a posição de que haveria uma jurisdição inerente à corte para acompanhar o cumprimento de suas decisões, fundamentada na prevalência da recta ratio sobre a voluntas. Até o momento, contudo, não há um reconhecimento, proveniente de uma fonte material do Direito Internacional, dessa prerrogativa.
O primeiro processo em questão foi protocolado pela Alemanha, em 23 de dezembro de 2008, pelo qual Berlim argumentava que Roma teria ofendido a sua imunidade estatal, ao admitir casos na jurisdição civil italiana que demandavam reparações por danos causados por violações ao direito internacional humanitário pelo Terceiro Reich durante a Segunda Guerra Mundial. Além disso, Berlim também se insurgia contra o fato de a justiça italiana ter homologado sentenças gregas, oriundas de casos similares, em particular no que se referia ao episódio do Massacre da vila de Distomo, cometido pelas tropas alemãs, quando da sua retirada do território grego em 1944.
Em veredito apresentado em 3 de fevereiro de 2012, a CIJ decidiu que as ações da Itália violavam, sim, o direito à imunidade estatal da Alemanha. Segundo a sua ratio decidendi, “de acordo com o direito internacional consuetudinário atual, um Estado não deve ser privado de imunidade pelo fato de ter sido acusado de graves violações ao direito internacional dos direitos humanos ou ao direito internacional dos conflitos armados. Além disso, supondo que as normas do direito dos conflitos armados que proibem o assassinato, a deportação e o trabalho escravo sejam normas de jus cogens, não haveria conflito entre essas normas e as normas sobre imunidade estatal. Os dois conjuntos de regras tratam de assuntos diferentes. As regras de imunidade do Estado limitam-se a determinar se os tribunais de um Estado podem ou não exercer jurisdição em relação a um outro Estado. Não se debruçaram sobre a questão de saber se o comportamento em relação ao qual o processo foi instaurado era lícito ou ilícito”.
O juiz brasileiro, professor Antônio Augusto Cançado Trindade, apresentou um voto discordante em apartado. Baseado no imperativo da realização da justiça, o professor Cançado Trindade sustenta “a posição de que não há imunidades para delicta imperii, prevalecendo o direito do indivíduo de acesso à justiça, no domínio do jus cogens”. O juiz brasileiro conclui o seu voto discordante, afirmando que “o jus cogens está acima da prerrogativa ou privilégio da imunidade do Estado, com todas as consequências daí decorrentes, evitando-se a denegação de justiça e a impunidade. Com base em tudo o que foi dito, minha firme posição é a de que não há imunidade do Estado para crimes internacionais, para graves violações dos direitos humanos e do direito internacional humanitário. No meu entendimento, é isso que a Corte Internacional de Justiça deveria ter decidido na presente Sentença”.
A CIJ, contudo, encerrou o caso determinando que a Itália deveria, “através da promulgação de legislação apropriada, ou recorrendo a outros métodos de sua escolha, garantir que as decisões de seus tribunais e de outras autoridades judiciárias que infrinjam a imunidade de que a Alemanha goza perante o direito internacional deixem de ter efeito”.
Apesar dessa decisão, no último dia 29 de abril, a Alemanha protocolou outro pedido perante a CIJ, alegando que “as cortes domésticas italianas desde 2012 têm recebido um número significativo de novas demandas contra a Alemanha em violação à imunidade soberana da Alemanha”. Segundo a petição inicial alemã, a Corte Constitucional da Itália subordinaria o dever de respeitar as decisões da CIJ “ao princípio fundamental de proteção judicial dos direitos humanos”, que, de acordo com o direito constitucional italiano, prevaleceria sobre a imunidade estatal. Haveria, no momento, risco de penhora e leilão judicial contra quatro propriedades do Estado alemão em Roma, para pagar indenizações por violações de direitos humanos durante o Terceiro Reich.
Note, cara leitora, que não se trata tecnicamente de um pedido de execução da sentença anterior — o que levantaria os problemas relativos ao procedimento previsto no artigo 94(2) da Carta das Nações Unidas — mas sim a um novo pedido, fundamentado pelas novas demandas judiciais perante as cortes civis italianas contra a Alemanha.
De todas as maneiras, seguindo as determinações da CIJ no seu veredito de 2012, o Poder Legislativo italiano de fato adotara medidas para emendar o artigo 3º da Lei 5/2013, que internaliza no sistema jurídico italiano a Convenção das Nações Unidas sobre Imunidades Jurisdicionais de um Estado e dos seus Bens de 2004, a fim de que as cortes italianas declinassem jurisdição em procedimentos cobertos por efeitos de sentenças da CIJ. A Corte Constitucional italiana, contudo, declarou o referido artigo 3º da Lei 5/2013 como inconstitucional, tendo em vista que se trata de crimes contra a humanidade e que, portanto, não poderia haver denegação de prestação jurisdicional.
A Alemanha, em sua petição inicial, também solicita que a CIJ determine medidas provisórias para salvaguardar seus interesses. Como a leitora bem deve se recordar, o tema das medidas provisórias da CIJ também já foi objeto de análise <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/medidas-provisorias-da-corte-internacional-de-justica-08102021">neste espaço</a> <a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>. Dentre as medidas provisórias solicitadas pela Alemanha está a suspensão da penhora das quatro propriedades alemãs em questão, garantida por um depósito judicial “ou por outra medida efetiva de sua própria escolha”. Vale lembrar que, de acordo com os termos do artigo 74 do Regulamento da CIJ, “[o] pedido de indicação de medidas provisórias terá prioridade sobre os demais casos”.
O novo caso da Alemanha contra a Itália na CIJ, em suma, levanta importantes questões para o desenvolvimento do Direito Internacional, cuja relevância se reveste de especial sensibilidade nos tempos atuais, em que a humanidade assiste ao desenrolar do maior conflito armado desde o final da Segunda Guerra Mundial. Com relação ao ponto específico do antagonismo entre o jus cogens e a imunidade estatal, concordo com a opinião do professor Cançado Trindade de que a imunidade jurisdicional do Estado deva ceder diante de uma reparação por crimes contra a humanidade. O costume internacional, há quase um século, já se consolidou no sentido de um entendimento restritivo da imunidade estatal, que não prevalece, por exemplo, diante de indenizações provenientes de relações trabalhistas. Não seria lógico, nesse contexto, que prevalecesse diante de um crime contra a humanidade. Quidquid agis, prudenter agas, et respice finem!
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/descumprimento-de-sentenca-da-corte-internacional-de-justica-17092021">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/descumprimento-de-sentenca-da-corte-internacional-de-justica-17092021</a>
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/medidas-provisorias-da-corte-internacional-de-justica-08102021">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/medidas-provisorias-da-corte-internacional-de-justica-08102021</a>

Itália

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JOTA

Um caso de reparação com impactos sobre imunidade estatal e as relações entre direito interno e internacional

CIJ: Caso Alemanha v. Itália

CIJ: um novo caso de reparação por atrocidades cometidas durante a 2ª Guerra Mundial com impactos no direito interno e direito internacional