Alessandro Mendes Cardoso

O momento em que vivemos, de gravíssima crise sanitária, social e econômica, propicia ambiente para o debate e revisão dos mais diversos temas, correlacionados.
Um desses relevantes temas é a avaliação da forma como a sociedade enxerga a relação entre gastos públicos e tributação. O enfrentamento dessa situação de extraordinária complexidade tem exigido do Poder Público, em todas as suas esferas, grandes esforços para fazer frentes às demandas de saúde pública, transferência de renda para as pessoas em situação de necessidade, apoio às empresas, entre outros.
Todos esses esforços são e serão custeados, majoritariamente, com os recursos que foram, estão sendo e serão arrecadados dos tributos pagos pelas pessoas físicas e jurídicas.
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Mas será que a sociedade consegue visualizar essa correlação? A forma como o cidadão encara a sua condição de contribuinte está interligada a diversos fatores, entre estes a sua visão do Estado e da relação deste com a sociedade, a forma como encara o status de cidadania e a sua percepção sobre a justiça do sistema tributário e a forma como os valores arrecadados são utilizados.
O texto constitucional brasileiro é notável exemplo de construção de um Estado Democrático de Direito, promovendo a síntese entre o Estado de Direito e o Estado Social. Além do contundente asseguramento das garantias jurídicas que marcam o Estado de Direito – separação dos poderes, legalidade, igualdade perante a lei, segurança jurídica, sufrágio universal - a Carta Magna traz explícito objetivo de promover os direitos sociais albergados pelo Estado Social, na busca de uma sociedade mais justa e solidária.
Para o custeio da atividade estatal são necessários fundos econômicos, em proporções cada vez maiores, devido à diversos fatores, como aumento da desigualdade social, envelhecimento da população e novas demandas médicas e educacionais. A arrecadação de tributos é a principal fonte de arrecadação de recursos pelos entes estatais, tendo direta correlação com a sua capacidade de atender às suas obrigações e funções constitucionais.
Entretanto, apesar do projeto de nação exteriorizado pela Constituição Federal, é bastante difundido na sociedade brasileira a visão do Estado como mero prestador de serviços, sendo a sua atividade limitada a prover os serviços públicos de saúde, educação e segurança.
A visão de que o Estado seria exclusiva ou primordialmente uma espécie de prestador de serviços para a sociedade traz graves distorções na avaliação da relação Estado-contribuinte-sociedade. Para grande parte da população não há justificação para o dever de recolher tributos, já que não haveria a contrapartida do Estado na prestação dos serviços públicos básicos, notadamente saúde e educação. Implementa-se, então, a visão de cidadão-consumidor, em que a relação deste com o Estado vincula-se à sua avaliação se há ou não “retorno” satisfatório, em termos de contrapartidas em serviços públicos, dos valores de tributos recolhidos.
Essa visão da tributação não é correta, por diversos motivos. Primeiro, por negar a vinculação do dever de recolher tributos ao princípio da solidariedade social. Além disso, desconsidera que o Estado viabiliza a atividade econômica, ao instituir e garantir efetividade ao sistema jurídico, bem como de impulsionar a atividade econômica através do investimento público e da redistribuição de renda, fomentando o mercado consumidor interno. Também não leva em conta a efetiva composição do gasto público e os avanços, em termos de políticas redistributivas, redução da miséria e dos índices de cobertura de saúde e educação ocorrida após a Constituição de 1988.
Mas é compreensível que se difundida na sociedade essa visão negativa, tendo em vista como não é tratado com a importância que merece o tema da cidadania-fiscal, que deve ser compreendida como plexo de deveres e direitos que vincula o contribuinte, Estado e sociedade.
<blockquote class="jota-article__eye">Ao mesmo tempo que é pressuposto do Estado Democrático de Direito o cumprimento do dever fundamental de recolher tributos, também é dever do Estado e direito inafastável do contribuinte que a atividade tributária seja exercida conforme os princípios e garantias previstas na Constituição Federal.</blockquote>
Além do respeito aos princípios fundamentais da legalidade, isonomia, anterioridade e irretroatividade, a tributação somente será válida se estritamente vinculada à capacidade contributiva de cada contribuinte.
O cidadão-contribuinte não é apenas aquele que cumpre as suas obrigações fiscais, mas sim aquele que exerce o seu direito de ter as informações sobre o sistema fiscal e avaliar a compatibilidade deste aos limites e garantias constitucionais. Da mesma forma que a moderna cidadania pressupõe a participação democrática, ativa e crítica do cidadão nos assuntos políticos e sociais, também na esfera fiscal as autoridades devem garantir ao contribuinte o acesso as informações e aos meios de questionar e impugnar, de forma livre e eficaz, como está sendo implementado o poder de exigir tributos.
A posição de cidadania fiscal não é exclusivamente passiva, de aceitação da imposição fiscal. Pelo contrário, pressupõe a participação ativa do cidadão, que livre e democraticamente avalia, crítica e questiona os atos do Poder Público, notadamente das autoridades fiscais.
Nesse contexto, as autoridades envolvidas com a tributação, tanto os legisladores quanto as autoridades fiscais, devem sempre levar em consideração de quanto mais clara, transparente e razoável forem a legislação tributária e os procedimentos tributários individuais, maior as chances de haver o consentimento prévio dos cidadãos, no cumprimento da obrigação tributária.
O conhecimento pelo contribuinte da composição do gasto público é extremamente importante, já que permite a análise racional e crítica da forma como os recursos estão sendo aplicados e o exercício da cidadania fiscal, no que se refere à possibilidade de influenciar no debate social democrático das decisões políticas tomadas pelos poderes legislativo e executivo. Não é possível a discussão democrática sobre o nível da carga tributária brasileira, ou o retorno social dado pelo Estado, sem o prévio conhecimento da estrutura dos gastos públicos.
Grande parte da população não tem acesso à informação de como está estruturado o gasto público. Tomando por exemplo o Orçamento Federal, a maior parte dos recursos estão vinculados a despesas vinculadas, como o refinanciamento, amortização e juros da dívida pública corresponde (42,14% do orçamento de 2019<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>), os repasses a Estados e Municípios, a Previdência Social, os gastos obrigatórios com saúde e educação e o pagamento do funcionalismo público federal. Além disso, valores relevantes estão vinculados à programas sociais como o BPC – Benefício de Proteção Continuada, Bolsa Família e Minha Casa, Minha Vida.
Não está se defendendo que o sistema tributário brasileiro é perfeito e não merece alterações, longe disso. Ou que o retorno da a sociedade pelo Estado também esteja livre de críticas ou não mereça relevantes melhorias.
Mas sim, que, num momento em que o gasto público tem a sua importância maximizada, e que o Serviço Único de Saúde (SUS) tem a sua capacidade de organização e atendimento colocada à prova, é importante reconhecer que a tributação tem papel extremamente relevante para a construção de uma sociedade mais justa e solidária.
A evolução da sociedade, no que se refere à cidadania-fiscal, demanda maior transparência e publicidade das informações com relação à arrecadação e, principalmente, ao gasto público. Os meios eletrônicos e as redes sociais também facilitam que o poder público se comunique de forma ágil e com melhor qualidade, com a população.
Nesse ponto, a mídia social tem grande importância, tendo em vista a possibilidade de abrir maior espaço para esse tipo de informação e ao debate mais profundo, que quebre os lugares comuns sobre o tema. Da mesma forma, as instituições de ensino públicas e privadas.
Isso permitirá ao conjunto dos cidadãos, e também aos grupos sociais e econômicos que compartilham interesses, avaliarem criticamente o sistema fiscal e, sendo o caso, apresentarem as suas críticas e, democraticamente, buscarem influir na sua alteração.
A sociedade, ao não ter essa percepção, deixa de exercer o seu direito democrático de exigir uma evolução do sistema tributário, com alterações legislativas que o tornem mais próximo dos objetivos e das determinações da Constituição Federal.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> <a href="http://www.portaltransparencia.gov.br/orgaos/61201?ano=2019">http://www.portaltransparencia.gov.br/orgaos/61201?ano=2019</a>

Informação

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JOTA

Evolução da sociedade demanda maior transparência das informações com relação à arrecadação e ao gasto público

Cidadania e transparência fiscal

Evolução da sociedade demanda maior transparência das informações com relação à arrecadação e ao gasto público