Márcio Pereira Pinto Garcia

Uma vez mais depara-se o Supremo Tribunal Federal (STF) com o Sr. Battisti. Agora, na condição de impetrante de novo habeas corpus (HC) contra possível ato do Presidente da República tendente a entregá-lo para a Itália, em observância à decisão do Supremo tomada com base no Tratado bilateral de extradição. O presente artigo não aborda, de modo direto, os desdobramentos do direito interno relacionados com o habeas. Ele busca, tão só, demonstrar a imperiosa necessidade de se obedecer ao direito internacional e entregar, por fim, referido Senhor ao Estado requerente, onde ele há de cumprir pena pelos crimes cometidos e em relação aos quais foi julgado (cortes italianas e Europeia de Direitos Humanos) e condenado.
O “caso Battisti” já absorveu enorme energia da mídia brasileira, mas sobretudo da mais alta Corte do país. A esse respeito, é suficiente verificar a extensão do acórdão da Extradição n° 1.085. O número de páginas (686), sem contar os incidentes processuais, impressiona considerando a natureza do processo em questão. Trata-se, em derradeira análise, de juízo feito pelo STF sobre a legalidade do ato, sem exame de mérito. Nesse sentido, a dimensão dos autos é, com o devido respeito, inversamente proporcional à questão jurídica que ele contempla. Para além do campo jurídico, a questão ganhou desdobramento no espaço político, no domínio da paixão e, por que não, na esfera do espetáculo. O desfecho do pedido do governo italiano foi seu deferimento, e não sua autorização, pelo Supremo. A distinção (autorizar/deferir) é sutil, mas, a nosso perceber, relevante para o caso.
É consabido que toda demanda extradicional tem como fundamento jurídico ou uma promessa de reciprocidade ou um tratado (bi ou multilateral). Na dinâmica das relações interestatais e no âmbito da sua cooperação jurídica em matéria penal, a promessa como base para a solicitação não importa compulsoriedade quer da apreciação do pedido (fase administrativa 1) quer da entrega do extraditado (fase administrativa 2), na hipótese de sua autorização (fase judicial). Há, por assim dizer, superlativa margem de discricionariedade do chefe do Executivo. Ele poderá dar seguimento à solicitação ou indeferi-la liminarmente por motivos de ordem política ou de oportunidade ou conveniência. Inexiste, na hipótese, norma de observância obrigatória.
Entretanto, é notório que, mesmo na circunstância em que o processamento da extradição é feito ao abrigo da reciprocidade de tratamento, opera o princípio da comitas gentium ad reciprocam utilitatem. Com efeito, preenchidos os requisitos legais, a satisfação do pedido é recomendável à vista do bom relacionamento dos Estados envolvidos, da cortesia internacional, da natureza dos fatos imputados ou da necessidade de combate a certas formas de criminalidade.
Sendo o pedido lastreado em tratado, a extradição se processa, entre nós, em conformidade com ele, à luz de princípios internacionalmente reconhecidos, em harmonia com o texto constitucional, bem como na regulação por via de leis internas de aspectos substantivos e processuais gerais. No caso da existência de acordo internacional, o Poder Executivo tem o dever de dar curso ao pleito (fase administrativa 1) e encaminhá-lo ao STF (fase judicial). Deferida a extradição, o Presidente da República tem a obrigação de proceder à entrega da pessoa reclamada (fase administrativa 2). É o que prescreve, no caso, o Tratado bilateral:
“Artigo 1°. Cada uma das Partes obriga-se a entregar à outra, mediante solicitação, segundo as normas e condições estabelecidas no presente Tratado, as pessoas que se encontrem em seu território e que sejam procuradas pelas autoridades judiciárias da Parte requerente, para serem submetidas a processo penal ou para a execução de uma pena restritiva de liberdade pessoal” (ênfase acrescida).
Essa entrega, porém, pode ser condicionada pelo Judiciário. Pode-se, por exemplo, determinar a entrega do extraditado em atenção ao que estima serem princípios ético-jurídicos fundamentais irrenunciáveis [não discriminação odiosa (sexo, raça, religião), julgamento por tribunal de exceção, penas extremas (perpétua e morte)]. A derradeira hipótese, por exemplo, é o caso limite. O direito à vida conta com previsão constitucional, é inviolável e de ordem pública interna e internacional. Com isso, é razoável impor ao Estado requerente a necessidade de comutar a aplicação de eventual pena de morte.
Não nos parecem adequados, ainda em atenção ao Tratado ítalo-brasileiro, os argumentos de que a entrega do extraditado é discricionária mesmo diante do ato internacional, tampouco o de que há “ponderáveis razões para suposição de que o extraditando poderia ser submetido a atos de discriminação, por motivo de situação pessoal”. Esses os motivos da decisão do governo do momento para, na vigésima quinta hora do mandato presidencial, não entregar o extraditado. Com a devida vênia, eles não se sustentam. De um lado, o fato de inexistir discricionariedade, havendo tratado, para entrega (fase administrativa 2); de outro, a circunstância de que cabe ao STF aferir a alegada submissão a possíveis atos discriminatórios. Nesse aspecto, a fundamentação presidencial chega a ser um insulto à inteligência mediana e sobretudo ao Supremo Tribunal Federal. Do contrário, seria dispensável o juízo de delibação da mais alta corte do país (fase judicial). Ademais, o Tratado prevê, nesse aspecto, anuência expressa da Parte requerente (art. 15, 3, “b”).
No ponto, é válido recordar que, no sistema jurídico brasileiro, o STF é competente para apreciar a regularidade da extradição à vista do direito aplicável (internacional, nacional ou estrangeiro). Cabe a ele decidir, com a audiência do interessado, sobre a concessão do pedido por procedência das suas condições de forma e de fundo, não sendo admitida prova alguma sobre os fatos imputados ao extraditando. Contudo, tendo em conta que a extradição é considerada ato de cooperação internacional no combate à criminalidade, os conceitos e as práticas internacionais na matéria devem sobressair, e não os exclusivamente internos, por mais meritórios que possam ser. A questão deve ser vista também ao abrigo do direito das gentes, já que a extradição é um instituto internacional e não meramente interno.
A não entrega do Sr. Battisti implica também a violação de princípios estruturantes do nosso Estado de direito: punição dos criminosos; obrigação de cumprir tratados (pacta sunt servanda); condução do relacionamento externo apoiado na boa fé (bona fides); harmonização com sustentáculo na justiça e igualdade no tratamento de criminosos nacionais, porquanto eles poderiam ter tratamento desfavorável vis-à-vis aos estrangeiros não extraditados.
A recusa de entregar o extraditado leva a duas ordens de desafios: (i) dificuldades nas relações entre o Estado requerente e o Estado requerido que, ao pôr em dúvida um compromisso bilateral solene, o desautoriza, não se percebendo em que pilares poderão continuar a se processar as relações entre os dois países na esfera da cooperação jurídica, já que o relacionamento internacional está escorado sobretudo nos princípios da boa fé e do pacta sunt servanda; e (ii) impunidade do criminoso em flagrante violação ao princípio elementar de justiça, tanto interna quanto internacional.
Sobre a boa-fé, marca d’água não só do direito internacional, mas também de qualquer sistema jurídico, ela está na base das relações e dos compromissos internacionais. Trata-se de princípio elementar na convivência externa. Ele opera efeitos tanto como alicerce das relações entre os Estados, quanto como princípio de interpretação dos tratados (pacta principium bona fides).
A Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados assenta, dessa forma, que todo o tratado em vigor obriga as partes (pacta sunt servanda) e deve ser cumprido por elas de boa fé (Art. 26). Esse dispositivo compõe o acervo consuetudinário do direito internacional e, dessa maneira, vincula o Brasil. Registre-se, de toda forma, que a Convenção já foi devidamente incorporada ao nosso ordenamento jurídico (Decreto n° 7.030, de 2009).
Outro aspecto a considerar vincula-se com a máxima proteção dos direitos humanos do extraditado, olvidando-se de que, no caso vertente, houve violação irreparável dos direitos humanos essenciais de outrem (vítimas dos homicídios perpetrados pelo Sr. Battisti em solo italiano). Assim, eventual invocação dos direitos humanos, que inspiram tanto o ordenamento doméstico quanto o internacional e constituem sua melhor parte, para descumprir o Tratado não entregando o extraditado afasta o direito mais elementar, que é o direito à vida. Recorde-se, por igual, que, nesse sentido, tampouco a Corte Europeia de Direitos Humanos acolheu os argumentos do Sr. Battisti de afronta aos direitos por ela protegidos.
A decisão do Presidente Lula, de canhestra excentricidade (único precedente em 128 anos de República), criou perturbação no nosso sistema de extradição ao suscitar dúvidas sobre a higidez dos tratados celebrados por nosso país no tema e sobre a conformidade constitucional dos compromissos internacionais do Estado brasileiro. Para além disso, lançou incerteza quanto ao futuro modo de proceder dos países com os quais estamos vinculados no campo do combate à impunidade por meio da cooperação jurídica em matéria penal. Essa circunstância cria certo desassossego nas relações internacionais do Brasil nesse domínio.
Nessa ordem de ideias, todo o esforço dos Ministérios da Justiça e das Relações Exteriores, como também do Ministério Público Federal (MPF) nos últimos anos no campo da cooperação jurídica com outros países pode se converter em verdadeira tabula rasa. E, aqui, importa lembrar o destacado papel do MPF como fiscal da lei. Ele é o guardião maior do cumprimento do direito internacional, tanto convencional quanto consuetudinário, em solo pátrio.
No tocante ao tempo para se processar a entrega do extraditado, por óbvio, deveria ser o mais imediato possível. Ocorre, no entanto, que a entrega pode ser diferida conforme expressa previsão convencional (art. 15 do Tratado). Recolhe-se do mencionado artigo situação que estabelece que o envio da pessoa extraditada poderá ser adiado quando, devido a enfermidade grave, o transporte do extraditado ao território da Parte requerente puder causar-lhe perigo de vida (art. 15, 3, “a”). Esse quadro não tem, em princípio, período fixo para terminar. Com efeito, afastado o risco, a entrega tem de se consumar ainda que passado número expressivo de anos. No caso, parece-nos que não haveria que se falar em prescrição, por exemplo. Ela foi aferida “na ocasião do recebimento do pedido, segundo a lei de uma das Partes” (art. 3°, 1, “b”, do Tratado). Outra possibilidade, também prevista no Tratado, é a relacionada com razões humanitárias, determinadas por circunstâncias excepcionais de caráter pessoal, desde que a Parte requerente concorde (art. 15, 3, “b”), como já enfatizado. O texto é claro. Só a Presidência da época não quis ver.
Por fim, convém lembrar, à maneira de Raduan, que há mais força no respeito ao direito internacional do que no desrespeito e mais força ainda no reparo do que no erro, deixando claro que deveriam ser estes o anverso e o reverso sublimes da cortesia internacional. O atual Presidente da República deve, pois, reparar o erro que foi a não entrega, até aqui, do extraditado Cesare Battisti.
É chegado o momento de o Sr. Battisti cumprir sua pena; de serenar o espírito dos familiares e amigos das suas vítimas; de dar aos seus compatriotas o sentimento da efetivação da justiça; de fazer cumprir o direito internacional; de eliminar esse episódio do relacionamento ítalo-brasileiro; e, quem sabe, de ficar em paz com sua consciência mais profunda.

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JOTA

É chegado o momento de o Sr. Battisti cumprir sua pena

Ciao Battisti

É chegado o momento de o Sr. Battisti cumprir sua pena