Carolina Christoph Grillo
Coordenadora do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense

Na última terça-feira (24/5), 23 pessoas foram mortas durante uma operação policial realizada nas favelas da Vila Cruzeiro e Chatuba, no bairro da Penha, zona norte do Rio de Janeiro. Além do morticínio, houve a suspensão do funcionamento de 19 escolas, de clínicas da família e do comércio local. Moradores foram impedidos de sair para trabalhar ou estudar e submetidos aos traumas psicológicos causados por prolongados tiroteios e a visão de corpos espalhados e sangue escorrendo pelas ruas. Esses são os “danos colaterais” das operações policiais, previsíveis e tidos como admissíveis somente porque ocorrem nas favelas e atingem sobremaneira pessoas pobres, negras e marginalizadas.
A Chacina da Penha foi a segunda maior chacina em operação policial da história do estado, atrás apenas da Chacina do Jacarezinho, que resultou na morte de 28 pessoas em maio do ano passado. Ambas as chacinas policiais ocorreram durante a vigência de uma decisão liminar do Supremo Tribunal Federal (STF) que restringiu as operações policiais em favelas do Rio de Janeiro a situações absolutamente excepcionais.
Trata-se de mais uma demonstração de recalcitrância de forças policiais de acatarem decisões judiciais que determinam uma atuação balizada nos parâmetros legais e à redução da letalidade e preservação dos direitos fundamentais de moradores de favelas e periferias. Tamanha afronta a uma decisão da mais alta corte do país evidencia o impasse em que se encontra a democracia brasileira.
Segundo as autoridades policiais, a operação foi conduzida pelo Batalhão de Operações Especiais (BOPE) da Polícia Militar e pela Polícia Rodoviária Federal com base em informações de inteligência da Polícia Federal e teve como objetivo a captura de lideranças da facção criminosa Comando Vermelho que estariam escondidas no local. O secretário de Polícia Militar, cargo criado a partir da extinção da Secretaria de Segurança Pública, órgão civil outrora responsável pela área de segurança pública no Rio de Janeiro, apontou a liminar do STF como sendo responsável por limitar o trabalho da polícia e atrair criminosos de outros estados para o RJ devido às restrições às operações.
Ocorre que as polícias se negaram a estabelecer um critério para a excepcionalidade justificadora da operação, fazendo a exceção virar regra. Nos primeiros quatro meses de vigência da decisão do STF concedida em 5 de junho de 2020, observou-se uma relativa obediência por parte das polícias, fazendo a letalidade policial despencar, sem que houvesse um aumento das ocorrências criminais, comprovando uma vez mais que o respeito aos direitos humanos não é um obstáculo ao controle do crime.
No entanto, desde outubro de 2020, quando Cláudio Castro (PL) assume de forma interina o governo do estado, as polícias fluminenses passaram a desrespeitar a decisão e, em pouco tempo, voltaram a realizar ainda mais operações letais do que antes da liminar.
Os dados do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (GENI-UFF) apontam que as polícias já realizaram 1.775 operações que resultaram em 670 mortes desde o início da vigência da liminar do STF, sendo que em 46% dos casos não houve notificação ao Ministério Público como determinado, revelando assim um deliberado desrespeito por parte das autoridades estaduais face ao Poder Judiciário.
Não é de hoje que as polícias no Brasil e, em particular, no Rio de Janeiro, oferecem forte resistência às tentativas de regulação e fiscalização da sua atividade. Um dos maiores indícios disso talvez seja que a prática de chacinas tenha sido paulatinamente incorporada ao cotidiano do trabalho policial justamente no período posterior à democratização da política brasileira, quando se esperaria que o uso da força estatal fosse submetido a controles mais rigorosos em respeito às garantias constitucionais.
Entre 2007 e 2021, 593 chacinas policiais foram registradas na base do GENI-UFF, resultando na morte de 2.374 civis e 19 policiais. Entre janeiro e abril deste ano, já ocorreram 16 chacinas com um total de 85 mortos. Já não se pode mais entender essas chacinas como “resquícios autoritários”, herdados da ditadura civil-militar, mas sim como uma marca da “democracia” brasileira ou, mais precisamente, a nossa mácula democrática.
Passaram-se quase 34 anos desde a promulgação da Constituição Cidadã e o país carece ainda de mecanismos eficientes para o controle democrático do uso da força oficial. Apenas no Rio de Janeiro, 20.183 pessoas foram mortas por agentes do Estado nos últimos 20 anos, segundo dados do Instituto de Segurança Pública (ISP-RJ), cifra absolutamente incompatível com um regime democrático. Atualmente, cerca de um terço das mortes violentas registradas no estado são decorrentes de ações policiais.
Pesquisa coordenada pelo sociólogo Michel Misse demonstrou que a grande maioria dos inquéritos instaurados para apurar essas mortes em suposto confronto é arquivada sem que as circunstâncias desses óbitos sejam devidamente esclarecidas, prevalecendo a fé pública na versão apresentada pelos policiais autores do fato. Quantas terão sido as execuções sumárias escamoteadas como “autos de resistência” e deixadas impunes? Não é possível responder a essa pergunta, mas é possível afirmar que as polícias fluminenses são demasiado violentas e que o Ministério Público do Rio de Janeiro tem falhado em oferecer respostas satisfatórias a esse problema.
Além do respaldo institucional que confere à polícia a prerrogativa de matar milhares de pessoas sem ser submetida à responsabilização legal por essas mortes, devemos pontuar que os exorbitantes números da letalidade policial são incentivados por políticas de segurança pública centradas no confronto armado com os grupos criminais que controlam vastos territórios da cidade, notadamente favelas e bairros periféricos.
Todos os dias são realizadas operações policiais de incursão nas chamadas “áreas sensíveis”, não sujeitas ao patrulhamento de rotina. Apesar dos altíssimos custos sociais dessas operações, ao longo das últimas décadas elas se mostraram ineficientes em reduzir as ocorrências de crimes contra a vida e contra o patrimônio ou mesmo em enfraquecer o poderio bélico dos grupos armados atuantes no estado. Contudo, a mobilização da morte historicamente tem retornos eleitorais importantes, sendo triste constatar que a matança policial atrai votos e popularidade. Durante o governo Cláudio Castro foram realizadas 74 chacinas policiais, dentre as quais as duas maiores da história do Rio de Janeiro, e o saldo foi de 327 civis mortos nessas ações.
Foi este o cenário que motivou a sociedade civil fluminense a acionar o STF por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 635, a chamada ADPF das Favelas. Essa ação foi protocolada pelo PSB em 2019 e vem sendo liderada por movimentos de favela e de familiares de vítimas da violência, com o apoio de organizações da sociedade civil, órgãos públicos e grupos de pesquisa, e foi em seu âmbito que a liminar acima referida foi expedida pelo STF em resposta a um pedido de medida cautelar.
Além da liminar, medidas estruturais importantes foram conquistadas, como a utilização de câmeras corporais pelas forças policiais, a priorização da investigação de mortes de crianças e adolescentes, assim como, durante operações policiais, a garantia de proteção do perímetro escolar e das unidades de saúde, a restrição no uso de helicópteros e a disponibilização de ambulâncias.
Ademais, apesar da condenação internacional do país perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos em 2017 no caso Favela Nova Brasília, que determinou a elaboração de um plano de redução de letalidade policial, somente após ordem do STF na ADPF 635 o governo estadual apresentou um arremedo de plano, sem metas, prazos, previsão de recursos ou medidas idôneas para contenção da desenfreada letalidade policial.
O Brasil vem testemunhando conflitos entre poderes e esferas federativas que neste caso se apresenta em torno da legitimidade ou não do extermínio de negros e pobres, o que nos obriga a refletir sobre os limites concretos da força da lei e do poder da polícia. É de Pascal a autoria da célebre frase segundo a qual “a justiça sem a força é impotente, a força sem a justiça é tirânica”. Dado que a lei depende da força para se impor enquanto tal, o que fazer quando o poder de polícia não mais se submete à justiça? O que fazer quando forças da ordem se autorizam a dispor sobre a vida e a morte de cidadãos ao arrepio da lei? Eis o impasse em que nos encontramos, a mácula da nossa democracia.