Juliana Cesario Alvim Gomes

O catálogo de grandes decisões do Supremo Tribunal Federal sobre direitos fundamentais costuma se confundir com o elenco de suas decisões sobre direito de minorias.
É verdade que, na última década, casos de enorme relevância envolvendo minorias foram decididos pelo Supremo: indivíduos pertencentes a grupos alijados ou subrepresentados nas instâncias de poder, e vulnerabilizados em razão de marcadores de desigualdade como raça, classe, gênero e orientação sexual.
Em todos esses casos, o ministro Celso de Mello esteve ao lado desses grupos, mas, em apenas um deles, foi o relator. Isso não significa que, ao se aposentar não deixará no Supremo um legado próprio no campo dos direitos fundamentais – inclusive de minorias. Pelo contrário, sua “jurisprudência biográfica” no tema (para usar a expressão de Rogério Arantes) é sólida e distinta.
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<li>+JOTA: <a href="https://www.jota.info/casa-jota/celso-de-mello-foi-um-dos-responsaveis-pela-valorizacao-da-constituicao-de-1988-01072020">Celso de Mello foi um dos responsáveis pela valorização da Constituição de 1988</a></li>
<li>+JOTA: <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-palavra-e-o-poder-o-stf-e-a-separacao-de-poderes-na-jurisprudencia-de-celso-de-mello-13072020">A palavra e o poder: o STF e a separação de Poderes na jurisprudência de Celso de Mello</a></li>
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A análise de seus votos mostra, contudo, que a marca de Celso de Mello na defesa dos direitos fundamentais se deu por outra via. Não a relatoria de grandes casos envolvendo direitos de minorias, mas a defesa perene das liberdades e dos procedimentos como forma de concretizar direitos substantivos, muitas vezes semeada em votos, que em um primeiro momento, foram vencidos.
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Nas vezes em que o Supremo se prontificou a defender direitos de minorias, Celso de Mello lá esteve, contribuindo sempre com votos expressivos: caso Ellwanger, em 2003, uniões homoafetivas em 2011, aborto de feto anencefálico em 2012, ações afirmativas de cunho racial, em 2012 e 2017, obrigatoriedade do ensino inclusivo para crianças com deficiência, em 2015, e titulação de terras ocupadas por quilombolas e alteração de registro civil de pessoas trans, em 2018.
Como tônica, a defesa do estado laico e dos direitos humanos, em uma perspectiva transnacional, com inúmeras e constantes referências a tratados, convenções e documentos internacionais de direitos humanos em sentido amplo, como os Programas e Plataformas de Ação das conferências globais no âmbito das Nações Unidas e os Princípios de Yogyakarta.
A esse respeito, aliás, houve um aprofundamento na visão do ministro nas últimas décadas desde o julgamento em que o Supremo declarou a inconstitucionalidade da prisão por dívida do depositário infiel, com Celso de Mello revisando sua posição anterior para defender a hierarquia constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos promulgados antes da Emenda Constitucional 45 de 2004­­.
<blockquote class="jota-article__eye">Na defesa do estado laico, chegou a ficar vencido, com outros quatro ministros, quando da discussão sobre ensino religioso nas escolas públicas, rejeitando a possibilidade do ensino religioso confessional.</blockquote>
Sua posição pode ser enxergada a partir da perspectiva dos direitos de minorias, pensando-se nos efeitos que o ensino confessional pode ter sobre praticantes de religiões minoritárias, ou mesmo sobre agnósticos e ateus. A esse propósito, Celso de Mello notou à época que “o fato de o Catolicismo constituir, hoje, a religião preponderante no Estado brasileiro não autoriza que se produza, em nosso País, um quadro de submissão de grupos confessionais minoritários à vontade hegemônica da maioria religiosa”.
Entretanto, não deixou de observar a questão também a partir da ótica das liberdades, afirmando a importância da laicidade estatal para “o exercício da liberdade religiosa, que representa, no quadro das liberdades fundamentais, projeção concretizadora do direito à livre manifestação de ideias e de convicções”.
Como em tantos outros temas, o ministro não deixou de conduzir a discussão a um problema da proteção de igual e efetiva liberdade de cidadãos e cidadãs diante do estado e da comunidade.
https://www.youtube.com/watch?v=wGS_VtayimI
Em todos esses casos, apesar de suas posições contundentes e de seu peso institucional como decano, Celso de Mello foi de certa maneira um coadjuvante. Os protagonistas foram os ministros relatores, e Mello não foi relator em praticamente nenhum caso de direitos fundamentais de minorias. A exceção é o caso da criminalização da LGBTfobia, em que Celso de Mello foi personagem principal indiscutível, e ao qual voltaremos mais à frente.
Por ora, gostaria de desenvolver o argumento de que, apesar de todos os votos listados acima, a ênfase do seu legado, a tônica da sua contribuição aos direitos fundamentais se deu por meio de dois outros instrumentos: a defesa das liberdades e do devido processo legal. Em sua jurisprudência, Celso de Mello costuma reconstruir a proteção a minorias a partir de questões de liberdade e de procedimentos.
<blockquote class="jota-article__eye">Ambos os elementos estão, de certa maneira, presentes em um dos seus primeiros trabalhos publicados, “A tutela judicial da liberdade”, de 1979, em que trata das limitações constitucionais à realização de prisões.</blockquote>
Os temas também estiveram presentes em discursos que proferiu naquela década e que provocaram reações.
Em 1970, sob o jugo da ditadura militar, ao discursar na sua posse no Ministério Público do Estado de São Paulo tratou do direito de resistência às normas ilegítimas da ditadura militar. E, em 1977, na inauguração do Fórum de Osasco, discorreu sobre a existência de instrumentos autoritários no ordenamento jurídico brasileiro e de detenções arbitrárias, invocando, além da Constituição, a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Já no Supremo, desenvolveu o que chama de “jurisprudência das liberdades” que envolve a afirmação e a defesa de direitos e garantias processuais: devido processo, ampla defesa, inviolabilidade domiciliar, inviolabilidade das comunicações telefônicas, princípio da inocência.
Tem sido coerente com a defesa dessas liberdades, ainda que sua posição não se reflita no posicionamento majoritário do tribunal, criando uma distinção que o singulariza no tribunal na defesa desses direitos.
Há muito tempo, por exemplo, defende a limitação da competência da justiça militar para julgar casos envolvendo civis, entendimento que manifestou em diversas ocasiões em sede de habeas corpus, sem que o plenário tenha se debruçado sobre a questão, que está pendente de julgamento em sede de controle concentrado de constitucionalidade.
Em outras ocasiões, manteve sua posição em casos controversos, na contramão da opinião pública, como no caso envolvendo a Lei da Ficha Limpa (votando pela inconstitucionalidade) e no que autorizou a prisão em segunda instância (votando contra essa possibilidade). Nessas ocasiões, ficou vencido. No segundo tema, porém, a posição vencida acabou se tornando vencedora.
Sob o aspecto mais substantivo, a atuação pró-liberdade também se verifica na dimensão expressiva, votando pela liberdade de expressão em casos como o da Lei de Imprensa, em 2011, e o que assegurou proteção constitucional ao uso de humor nas eleições, de 2018.
Em 2009, ficou vencido quando o plenário rejeitou, por maioria, reclamação apresentada pelo jornal Estado de São Paulo para derrubar determinação da Justiça do Distrito Federal que impedia o periódico de mencionar o filho do senador José Sarney, Fernando Sarney. Na ocasião, considerou a censura “arbitrária e discriminatória”.
Como relator, marcou sua atuação pró-liberdade de expressão com a relatoria da ação sobre a Marcha da Maconha, em 2011. Naquela oportunidade, afirmou que a referida marcha era um movimento social espontâneo que reivindicava, por meio da livre manifestação do pensamento, “a possibilidade da discussão democrática do modelo proibicionista (do consumo de drogas) e dos efeitos que (esse modelo) produziu em termos de incremento da violência”.
<blockquote class="jota-article__eye">Sua preocupação com o devido processo também se reflete no seu entendimento sobre o processo decisório do Supremo e a efetividade dos instrumentos processuais utilizados perante o próprio STF.</blockquote>
Celso de Mello capitaneou o reconhecimento da prerrogativa de amicus curiae para realizar sustentações orais no Supremo. Em 2001, o então advogado Luís Roberto Barroso, representante de amicus curiae, solicitou o uso da palavra com fundamento na legislação e em entendimento de Celso de Mello.  À época, o ministro ficou vencido, junto com Nelson Jobim e Marco Aurélio, e a sustentação não foi realizada. Em 2003, no entanto, a posição de Celso de Mello se consagrou vencedora. Ao longo do julgamento, diante dos argumentos trazidos durante os debates,  vários ministros alteraram  seus posicionamentos, formando-se, então, maioria a favor das sustentações orais por amici curiae.
Ainda, pioneiramente, Celso de Mello posicionou contra a interpretação restritiva do inciso IX do artigo 103 da CF, que limitou “entidade de classe” legitimada para propositura de ação o controle abstrato às de caráter econômico ou profissional, excluindo todas as demais.  Seu entendimento favorável a uma leitura ampla e inclusiva dos legitimados ficou vencido no precedente paradigmático sobre a questão, em 1992, mas hoje influencia decisões monocráticas que parecem sugerir uma virada na jurisprudência dominante do STF.
Finalmente, com relação ao Mandado de Injunção (MI), já na sua sabatina, em maio de 1989, defendeu sua utilização como meio de concretização da Constituição. À época afirmou achar “o mandado de injunção tem essa grande virtude: a de permitir que o Poder Judiciário torne efetiva a concretização daquele regime meramente formal das liberdades públicas”.
<blockquote class="jota-article__eye">E aqui voltamos à ação relativa à criminalização da LGBTfobia e ao festejado voto do ministro Celso de Mello na ocasião. O caso em questão, uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão e um MI julgados conjuntamente, pode ser encarado também como um desdobramento dessa sua jurisprudência que vê o processo e os instrumentos processuais como meios para a concretização de direitos fundamentais.</blockquote>
Como relator, em um voto que se estendeu por duas sessões e mais de seis horas, fez inúmeras considerações sobre as violações constitucionais derivadas da omissão estatal e sobre o dever do Supremo nesses casos, de “preservar a intangibilidade da Constituição que nos governa a todos, sendo o garante de sua integridade, impedindo que razões de pragmatismo (ou de indiferença) governamental ou de mera conveniência de grupos, instituições ou estamentos prevaleçam e deformem, inclusive mediante comportamento omissivo, o significado da própria Lei Fundamental”.
Na ocasião, igualmente, fez questão de enfatizar as liberdades em jogo: “liberdade de projetar sua própria vida e de aspirar à busca da felicidade, em conformidade com sua orientação sexual ou em harmonia com sua identidade de gênero”.
Se o rol da jurisprudência de direitos do ministro Celso de Mello aqui realizado permite a afirmar que seu legado se distingue pela defesa dos direitos fundamentais a partir das liberdades e do devido processo legal, é importante perguntar quais são as consequências dessa escolha.
Aqui, sugiro duas. A primeira se reflete na forma de pensar e articular os direitos fundamentais. A opção por uma abordagem baseada em direitos universais (liberdades e procedimentos) traz uma perspectiva interessante frente a direitos baseados em categorias identitárias frequentemente utilizados quando se discute direitos de minorias e que estão sujeitos a produzir efeitos indesejáveis como reducionismos (ao reduzir complexidades a rótulos e estereótipos) e generalizações (ao pressupor uma homogeneidade de experiências que nem sempre refletirão as vivências particulares dos integrantes de um determinado grupo). Oferece, ainda, a possibilidade de articular conjuntamente múltiplas demandas de exclusão, discriminação e subalternidade, abarcando-as conjuntamente sob um regime jurídico geral.
Nesse sentido, são significativas as possibilidades que a gramática das liberdades acrescenta aos argumentos de igualdade e identidade presentes em casos como, por exemplo, os mencionados acima, da criminalização da LGBTfobia e do ensino religioso em escolas. A jurisprudência de Celso de Mello ajuda a enxergar e construir esses direitos como de todas e todos.
<blockquote class="jota-article__eye">Uma segunda consequência consiste em chamar atenção para o conteúdo político das normas processuais e procedimentais e suas consequências substantivas. Em outras palavras, assinala a impossibilidade de pensar esses dois aspectos de maneira separada quando se fala de direitos fundamentais.</blockquote>
A esse respeito, é elucidativa a discussão sobre a competência da justiça militar para julgar civis. O ministro defende a ideia de que uma justiça militarizada e corporativa em nenhuma circunstância terá independência e imparcialidade para assegurar direitos fundamentais de civis submetidos à sua jurisdição. É igualmente esclarecedora a defesa feita por Celso de Mello da constitucionalidade da marcha da maconha, entendida por ele como um instrumento, um meio, para eventual alteração de uma política proibicionista (e potencialmente violadora de direitos).
Para Celso de Mello, a conexão entre igualdade e acesso à justiça, entendido de uma maneira não formal, mas substantiva, parece estar no cerne da questão.
Em seu discurso de posse na presidência do Supremo, em 1997, afirmou:
<blockquote class="jota-article__quote">“Aquele que é juridicamente excluído não tem vinculação com o sistema de direito, perdendo, em função dessa injusta condição social, qualquer referência que lhe permita o exercício e a fruição dos demais direitos e liberdades (...) A democratização do acesso à Justiça revela-se, desse modo, um inadiável programa estatal, cuja implementação terá a virtude de iniciar o processo de reinserção e reincorporação dos despossuídos ao sistema de direito do qual se acham injustamente excluídos, permitindo que o postulado da igualdade – fundamento verdadeiro do processo de construção da cidadania-tenha, formalmente, plena, consequente e definitiva realização.”</blockquote>
Uma observação final.
Celso de Mello construiu uma jurisprudência de direitos fundamentais sólida e distinta, mesmo sendo um relator bissexto no plenário do Supremo. Sedimentou princípios e direitos privilegiando a coerência em votos por vezes vencidos, em decisões na turma e em monocráticas.
A partir desses votos, seu legado poderá se multiplicar no futuro, quando ele próprio já tiver deixado o tribunal. Mas isso não dependerá mais dele.
Hoje e nos próximos meses, ainda como ministro, Celso de Mello pode ativamente contribuir com mais algumas páginas para sua notável biografia jurisprudencial. Ações de sua relatoria, como a ADPF 684, sobre providências para evitar a disseminação da pandemia da Covid-19 no sistema prisional, a ADPF 624, que trata de censura nas escolas, e a ADI 5911, sobre restrições à autonomia reprodutiva da Lei de Planejamento Familiar, comporiam não apenas um epílogo à altura de sua trajetória no Supremo, mas um capítulo necessário para a defesa dos direitos fundamentais no Brasil de hoje.

CEST

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JOTA

Como um relator bissexto construiu seu legado jurisprudencial de direitos fundamentais

Celso de Mello, liberdade e processo

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