É comum o raciocínio (a nosso entender equivocado) de que o registro da Cédula de Crédito à Exportação (CCE) no Cartório de Imóveis (RGI) seria imprescindível para que, juntamente com o registro das demais garantias fiduciárias, o crédito da instituição financeira pudesse ser excluído dos efeitos da recuperação judicial.

O argumento mais corrente para justificar essa lógica decorre do fato de o art. 5º da Lei 6.840/80 determinar que são aplicadas às CCE’s as mesmas normas das Cédulas de Crédito Industrial (CCI) do Decreto-Lei n. 413/69. Assim, considerando que os arts. 29 e 30 do referido Decreto-Lei 413/69 determinam que a CCI só valerá contra terceiros desde a data da inscrição no RGI, diz-se comumente que o registro seria um requisito de validade, estendendo-se o mesmo raciocínio para as CCE’s, razão pela qual a ausência do cumprimento desse requisito legal inquinaria de nulidade as CCE’s e, por conseguinte, todas as demais garantias a elas adstritas (ainda que formal e devidamente registradas nos órgãos competentes, quando necessário).

Esse raciocínio (equivocado) geraria a situação idiossincrática ou esquizofrênica de que um credor que pretenda ficar de fora de eventual recuperação judicial e que tenha concedido crédito por CCE a um devedor de São Paulo, mas garantida por alienação fiduciária de um imóvel em Florianópolis, deveria supostamente providenciar o registro da CCE do RGI de São Paulo, bem como da alienação fiduciária no RGI de Florianópolis. Nada mais absurdo e contra a lei.

Mais do que isso, essa interpretação geraria a incompreensível situação de que um credor de uma CCE garantida por alienação fiduciária de veículos devesse registrar a CCE no RGI e, ainda, a alienação fiduciária no DETRAN correspondente, tudo para que pudesse resguardar os benefícios da propriedade fiduciária. Novamente, nada mais absurdo, contraproducente e ilegal, conforme segue.

DOS EFEITOS DO REGISTRO DA CCE: GARANTIA REAL versus PROPRIEDADE FIDUCIÁRIA

Toda essa discussão, com a devida venia, quer parecer ter origem em uma interpretação equivocada, insular e apressada dos arts. 29 e 30 do indigitado Decreto-Lei 413/69, que confunde o registro da CCE para fins de constituição da garantia real com a constituição da propriedade fiduciária. É certo que a constituição válida da propriedade fiduciária engloba e dispensa o registro da CCE no RGI para fins de constituição da garantia real, pois a constituição da propriedade fiduciária de forma válida já é, por si só, a constituição válida da garantia real (conforme, p. ex., art. 17, §1º da Lei 9.514/97). No entanto, a recíproca não é verdadeira, pois o registro da CCE no RGI nada significa para o fim de constituição válida da propriedade fiduciária.

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Para o início do desate dessa confusão jurídica, importante que entendamos melhor o alcance dos arts. 29 e 30 do Decreto-Lei 413/69, in verbis: “Art 29. A cédula de crédito industrial somente vale contra terceiros desde a data da inscrição. Antes da inscrição, a cédula obriga apenas seus signatários. Art 30. De acôrdo com a natureza da garantia constituída, a cédula de crédito industrial inscreve-se no Cartório de Registro de Imóveis da circunscrição do local de situação dos bens objeto do penhor cedular, da alienação fiduciária, ou em que esteja localizado o imóvel hipotecado.”

Da leitura dos dispositivos acima, geralmente se tenta deturpar o que está escrito para se entender que, sem o registro no RGI, qualquer garantia ofertada aquela CCE seria nula ou no mínimo ineficaz perante terceiros, especialmente os “terceiros” credores daquela devedora em um processo recuperacional. Ocorre que não é esse o sentido operacional da lei, especialmente dentro da nova ordem de direito civil pós-2002, que submete a aplicação de todos o institutos de direito civil aos princípios da eticidade, operabilidade e socialidade.

A função social do registro é, à toda evidência, dar publicidade do negócio jurídico à sociedade de modo geral. Não é mera formalidade destituída de razão ou de função jurídica. Assim como a lei não é um fim em si mesma, o registro também não o é, tanto que o próprio art. 30 do Decreto-Lei 413/69 faz logo de início a ressalva de que aquela previsão se submete à “natureza da garantia constituída”.

A lei é uma foto do momento histórico no qual foi editada e, justamente por isso, não deve ser interpretada como um dogma insuperável pela sua literalidade. Muito pelo contrário. O método de interpretação é e sempre deve ser o sistemático-histórico-social, que conjuga não apenas todas as leis do ordenamento e a sua evolução social, mas também todas as demais fontes do direito (como a jurisprudência, doutrina, princípios do direito etc.), para que se construam normas jurídicas em sentido amplo e em sentido estrito com racionalidade e efetividade (aderência funcional).

E, a despeito do nosso sempre temeroso desgarramento da lei, parece que a maioria de nós não diverge de que a lei é um referencial a ser conjugado com todas as demais fontes do direito para que qualquer justificação jurídica seja legítima.

Note-se, por exemplo, que interpretando literalmente a lei, as CCE’s não poderiam receber qualquer outra modalidade de garantia que não aquelas previstas no art. 19 do Decreto-Lei n. 413/69: “Art 19. A cédula de crédito industrial pode ser garantida por: I - Penhor cedular. II - Alienação fiduciária. III - Hipoteca cedular.”

Sucede que, interpretando sistematicamente a lei com outras normas do ordenamento, já é assente na doutrina e na jurisprudência que para as CCE’s cabe também a garantia por cessão fiduciária de títulos de crédito, conforme se depreende do §3º do art. 66-B da Lei 4.728/65 (com redação dada pela Lei 10.931/2004: “§ 3o É admitida a alienação fiduciária de coisa fungível e a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis, bem como de títulos de crédito, hipóteses em que, salvo disposição em contrário, a posse direta e indireta do bem objeto da propriedade fiduciária ou do título representativo do direito ou do crédito é atribuída ao credor, que, em caso de inadimplemento ou mora da obrigação garantida, poderá vender a terceiros o bem objeto da propriedade fiduciária independente de leilão, hasta pública ou qualquer outra medida judicial ou extrajudicial, devendo aplicar o preço da venda no pagamento do seu crédito e das despesas decorrentes da realização da garantia, entregando ao devedor o saldo, se houver, acompanhado do demonstrativo da operação realizada. (Incluído pela Lei 10.931, de 2004)”

E nem poderia ser diferente, pois é em respeito à “natureza da garantia constituída”, em atenção à sua função social, que as CCE’s devem funcionar.

Outro problema que surge da equivocada interpretação restritiva da lei é em relação às CCE’s garantidas por alienação fiduciária de veículos, visto que há lei posterior que abroga tacitamente o art. 30 do Decreto-Lei 413/69 , qual seja, o art. 1.361 do Código Civil. O dispositivo determina o registro dessa modalidade de propriedade fiduciária na repartição competente para o licenciamento (ou seja, DETRAN), com anotação no documento do veículo, o que é muito mais lógico, funcional e simples, em atenção e respeito ao princípio da operacionalidade que colmata e coordena todos os institutos de direito privado.

O Supremo Tribunal Federal já foi instado a se manifestar a respeito disso no RE 611.639, sob o rito da repercussão geral, pois os registradores se insurgiram contra essa norma arguindo sua suposta inconstitucionalidade, pois entendiam que o registro da garantia fiduciária só poderia ser feita nos cartórios competentes. Entretanto, justamente em atenção a essa visão funcional do direito, o Supremo Tribunal Federal declarou que o simples contrato entre as partes “é perfeitamente existente, válido e eficaz”, com a “desnecessidade do registro, em cartório, do contrato de alienação fiduciária de veículos”, justamente porque a finalidade do registro já estaria perfeitamente satisfeita com a publicidade perante o DETRAN.

E não foi só, também na ADI 4333/DF, o STF declarou que o mero registro no DETRAN já é suficiente para constituição da alienação fiduciária.

Dessa forma, o único efeito da ausência de registro perante o RGI é a perda da qualidade de garantia real para aquelas garantias fiduciárias que não estejam constituídas regularmente, pois se a garantia fiduciária estiver constituída na forma legal o registro no RGI da CCE é absolutamente desnecessário. É bom frisar que a perda dessa qualidade de garantia real traz por vezes consequências muito ruins aos credores, o que faz com que os arts. 29 e 30 do Decreto 413/69 não sejam normas destituídas de sentido, muito pelo contrário, pois a ausência de registro no RGI para aquelas garantias que não sejam de propriedades fiduciárias (ou que, sendo, não estejam regularmente constituídas) gera a perda do direito de sequela, perda do direito de preferência, perda do direito de oponibilidade contra todos, por exemplo, mas nada além disso.

Isso porque os requisitos de validade das CCE’s estão previstos no art. 14 do Decreto-Lei 413/69 e entre eles NÃO CONSTA o registro do documento perante o registro imobiliário, como de fato nem poderia constar. Assim, o registro da CCE perante o RGI não é requisito de validade do negócio jurídico, mas apenas e tão somente fator de eficácia da garantia real contra terceiros (e apenas contra terceiros, pois entre as partes negociantes a garantia real continua tendo plena validade e eficácia), desde que essa garantia real não seja fiduciária (ou que não esteja regularmente constituída), pois se for fiduciária e estiver regularmente constituída o registro da CCE perante o RGI é totalmente inútil.

Mas qual seria a utilidade de divulgar perante terceiros, mediante registro no RGI, a existência de uma concessão de crédito com garantia real não decorrente de propriedade fiduciária? A utilidade é a de dar publicidade daquela dívida para que terceiros tenham ciência dos negócios pretéritos feitos pelo devedor e, com isso, possam tomar decisões comerciais seguras e se submeterem com caráter erga omnes aos efeitos da garantia real prestada (como, por exemplo, o direito de preferência, direito de sequela e direito às ações reais), até porque aquele bem dado em garantia real é impenhorável, conforme dicção do art. 57 do Decreto-Lei 413/69: “Os bens vinculados à cédula de crédito industrial não serão penhorados ou sequestrados por outras dívidas do emitente ou de terceiro prestante da garantia real (...)”. Assim, o registro da CCE perante o RGI tem essa (importante) finalidade, mas nada além disso.

Outra utilidade prática do registro da CCE perante o RGI é a eventual possibilidade de se discutir algum tipo de fraude contra credores para garantias móveis que não possuam inscrição no órgão de registro do bem. Com o registro da CCE perante o RGI, a presunção de ciência pelo terceiro daquela dívida é absoluta (juris et de jure), o que é muito importante para comprovar o consilium fraudis. No entanto, se não houver registro da CCE perante o RGI, a presunção absoluta é de que o terceiro não tinha conhecimento daquela dívida e que, por isso, não tinha nenhuma má-intenção ao celebrar determinado negócio jurídico com o devedor.

Por isso que o registro da CCE no RGI não tem a menor relação com a submissão ou não do crédito aos efeitos de eventual recuperação judicial do devedor, visto que, com ou sem registro da CCE no RGI, o crédito oriundo dela estará sim sujeito à recuperação judicial caso não exista garantia mediante propriedade fiduciária ou, ainda, se existir, não estiver corretamente constituída.

O que determinará se haverá ou não sujeição do crédito à recuperação judicial é a existência de garantia mediante propriedade fiduciária, nos exatos termos do art. 49, §3º da Lei 11.101/2005, in verbis:

§ 3º Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4o do art. 6o desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial.

1.Basta portanto que o credor fiduciário que não deseje se submeter aos efeitos da recuperação judicial se preocupe em constituir validamente a sua propriedade fiduciária, sendo o registro da CCE perante o RGI absolutamente dispensável, ou melhor, indiferente aos problemas relativos à recuperação judicial. Apenas a higidez da constituição da propriedade fiduciária já é cabalmente suficiente para que o credor de garantia fiduciária seja afastado dos efeitos recuperacionais.

2. À guisa de informação final que nos parece importante, mas sem nos alongarmos desnecessariamente para longe do objeto desta opinião legal, importa lembrar que nem todos os tipos de propriedade fiduciária dependem de registro para que estejam fora dos efeitos de uma recuperação judicial.

3. Note-se que o Código Civil apenas exige registro da propriedade fiduciária sobre bens móveis infungíveis (arts. 1.361/1.368-A), sendo que para os outros tipos de bens a forma de constituição da propriedade fiduciária é disciplinada por lei especial. Vejamos a exata redação do art. 1.361 e seu parágrafo 1º do Código Civil:

Art. 1.361. Considera-se fiduciária a propriedade resolúvel de coisa móvel infungível que o devedor, com escopo de garantia, transfere ao credor.

§ 1º Constitui-se a propriedade fiduciária com o registro do contrato, celebrado por instrumento público ou particular, que lhe serve de título, no Registro de Títulos e Documentos do domicílio do devedor, ou, em se tratando de veículos, na repartição competente para o licenciamento, fazendo-se a anotação no certificado de registro.

4. É certo que a maior parte das garantias fiduciárias requerem legalmente registros nos órgãos competentes (especialmente as garantias fiduciárias sobre bens imóveis e sobre bens móveis infungíveis, que reclamam registro nos Detrans, RGI’s etc.). No entanto, em relação aos bens móveis FUNGÍVEIS (como são por exemplo as CESSÕES FIDUCIÁRIA DE TÍTULOS DE CRÉDITOS), a garantia fiduciária sobre esse tipo de bem não depende de registro do contrato em nenhum órgão para que sejam afastados os efeitos da recuperação judicial.

5. Aliás, o Superior Tribunal de Justiça já vem decidindo dessa forma, conforme REsp 1412529/SP, segundo o qual “a exigência de registro, para efeito de constituição da propriedade fiduciária, não se faz presente no tratamento legal ofertado pela Lei n. 4.728/95, em seu art. 66-B (introduzido pela Lei n. 10.931/2004) à cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis, bem como de títulos de crédito (bens incorpóreos e fungíveis, por excelência), tampouco com ela se coaduna.”

6. Dessa forma, para as CCE’s garantidas por cessão fiduciária de títulos de crédito, não há, para efeitos de afastamento do crédito de recuperação judicial, necessidade nem do registro da CCE perante o RGI, menos ainda de registro das cessões fiduciárias perante os cartórios de títulos e documentos, visto que com a constituição válida da cessão fiduciária o devedor deixa de ser proprietário dos títulos cedidos e os transfere ao credor fiduciário. É importante ressaltar, como consta expressamente do acórdão do RESP 1412529/SP que os terceiros em relação ao credor fiduciário e que sentirão os efeitos da cessão fiduciária não são os outros credores do devedor (que fazem parte da recuperação judicial), mas sim os devedores da recuperanda, de modo que também por essa razão o não registro da cessão (que não tem nada de ilegal) não afeta em nada a posição jurídica dos outros credores da devedora/recuperanda.

7. À guisa de conclusão, entendemos que as CCE’s não dependem de registro no RGI para que as garantias fiduciárias a elas vinculadas façam excluir aquele crédito de qualquer processo recuperacional, bastando para isso que a garantia fiduciária tenha sido regularmente constituída (seja mediante a mera assinatura do contrato da cessão fiduciária de títulos de crédito, seja mediante o registro da propriedade fiduciária nos órgãos competentes em relação aos bens imóveis e móveis infungíveis).

Cédula de crédito à exportação

Registrar ou não registrar, eis a questão!