Paulo Fernando Pinheiro Machado

<blockquote class="jota-article__quote">
"De um povo corajoso e bom tudo se pode esperar em termos de grandeza humana, contanto que se mantenha nele a tradição de respeito aos nobres exemplos de seu passado, assim como a do culto do direito e da disciplina cívica."
<footer class="jota-article__quote-cite" style="text-align: left;">Barão do Rio Branco 
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</blockquote>
Nos tempos revolucionários em que vivemos, nos quais até mesmo a instituição da arbitragem corre o risco de ver-se <a href="https://oglobo.globo.com/economia/noticia/2022/07/projeto-pretende-alterar-a-lei-de-arbitragem.ghtml">desmantelada no Brasil</a>, nunca é demais lembrar da sua importância histórica para a solução pacífica das controvérsias e para a manutenção da paz mundial. A arbitragem é uma instituição milenar, cuja importância vem se intensificando exponencialmente desde fins do século 19, acompanhando o processo de jurisfação da sociedade internacional, fenômeno que já abordamos <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/jurisfacao-sociedade-internacional-05112021">nesta coluna</a> e que se materializa por uma crescente complexidade e por uma judicialização de todas as esferas da vida humana. A arbitragem é um mecanismo ágil e flexível, capaz de prover soluções rápidas para questões complexas, desafogando o Poder Judiciário da sua crescente torrente de demandas. 
Um exemplo claro da importância do instituto da arbitragem para a manutenção da paz foi o recente Laudo sobre Objeções Preliminares do Tribunal Permanente de Arbitragem no caso Disputa acerca da Detenção de Embarcações Navais e Pessoal de Serviço Ucranianos (Ucrânia v. Federação Russa), publicado no último dia 11 de junho. Trata-se de uma arbitragem iniciada pela Ucrânia, em 1º de abril de 2019, a respeito do apresamento de três navios da Marinha ucraniana, com a respectiva tripulação, por supostamente terem adentrado o mar territorial da Rússia em 24 de novembro de 2018, no episódio que ficou conhecido como o <a href="https://www.bbc.com/news/world-europe-46340283">incidente do estreito de Kerch.</a> Segundo Kiev, as ações da Moscou teriam violado as imunidades dos navios da marinha ucraniana, em ofensa aos termos da Convenção das Nações Unidas sobre Direito do Mar (CNUDM).
Antes de adentrar em uma análise das objeções preliminares levantadas pela Rússia, contudo, é preciso chamar à atenção da leitora para a importância do foro da disputa, o Tribunal Permanente de Arbitragem (TPA). Estabelecido pela Convenção para a Solução Pacífica das Controvérsias Internacionais, adotada na Primeira Conferência da Paz da Haia de 1899, o TPA foi o primeiro organismo intergovernamental inteiramente dedicado à solução pacífica das disputas internacionais por meio da arbitragem. A Convenção fora revisada na Segunda Conferência da Paz da Haia de 1907. O mais importante a se ter em mente aqui é o fato de que os Estados-Parte reconheciam a importância fundamental da arbitragem e registraram esse reconhecimento no artigo 16 da versão de 1899 e no artigo 38 da versão de 1907, que reza:
<blockquote class="jota-article__citation">"Nas questões de ordem jurídica, e em primeiro lugar nas questões de interpretação e de aplicação das convenções internacionais, a arbitragem é reconhecida pelas Potências contratantes como o meio mais eficaz, e ao mesmo tempo mais equitativo, de terminar os litígios que não forem resolvidos pelas vias diplomáticas. 
Por consequência, seria para desejar que nos litígios sobre as questões acima mencionadas as Potências recorressem, dado o caso, à arbitragem, sempre que as circunstâncias o permitissem".</blockquote>
Vale notar, também, que o Brasil tem uma sólida tradição no recurso à arbitragem internacional. Conforme apresentamos em maiores detalhes em <a href="https://www.editorajc.com.br/justica-e-diplomacia-na-formacao-do-brasil/">artigo para a Revista Justiça &amp; Cidadania</a> [1], a formação e a consolidação territorial de nosso país foi fruto de um trabalho de séculos de diplomatas-juristas que articularam, como bem frisou o professor Arno Wehling, um elemento de direito material, o uti possidetis, por um instrumento processual específico, a arbitragem [2]. O Brasil foi o único país do mundo a resolver por meios pacíficos e com amplo recurso à arbitragem todos os seus problemas de fronteiras, com mais de dez vizinhos. Nosso país, em especial os contornos do corpo da pátria, é fruto direto da arbitragem. Como bem ressaltou o embaixador Rubens Ricupero, em seu clássico “A Diplomacia na Construção do Brasil”:
<blockquote class="jota-article__citation">"Uma das particularidades que pesaram na definição do caráter diplomático do Brasil reside no elevado número de vizinhos, hoje uma dezena (compare-se aos Estados Unidos, ao Canadá, à Austrália, com poucos vizinhos ou nenhum). Em certo momento, os nossos chegaram a ser onze, quando o Equador ainda disputava com o Peru terras amazônicas limítrofes. Esses vizinhos pertencem a universos culturais e políticos heterogêneos, que vão da Guiana Francesa ao Uruguai, do Suriname à Bolívia, do Peru à Guiana ex-inglesa, para citar alguns. Não é façanha menor haver conseguido estabelecer com todos eles fronteiras mutuamente aceitas em decorrência de negociação, transação, arbitragem. Nenhum desses limites resultou de guerra de conquista. A forma não violenta de delimitação explica a inexistência de graves ressentimentos, inconformidade ou contenciosos importantes em aberto" [3].</blockquote>
Mas não é apenas no trabalho secular desses diplomatas-juristas, cujo apogeu se encarna na figura do Barão do Rio Branco, que reside a tradição e a importância da arbitragem para o Brasil. Para além disso, nosso país foi ativo formulador das normas internacionais que regem o instituto, em especial pela participação de nossa delegação à Segunda Conferência da Paz da Haia de 1907, chefiada por Ruy Barbosa, que havia atuado na negociação de limites com a Bolívia, encerrada com a assinatura do Tratado de Petrópolis em 1903.
A atuação de Ruy Barbosa na Haia foi tão brilhante, ao participar da criação da Corte Permanente de Justiça Internacional (CPJI) – antecessora da atual Corte de Justiça Internacional (CIJ) — e ao defender, de maneira firme e intransigente, o princípio da igualdade jurídica das nações, que ele entrou para a posteridade como “a Águia de Haia”. Ruy Barbosa seria, posteriormente, eleito para presidir o prestigioso Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) em 1914, sendo reconduzido em 1915 e <a href="https://memorias.iabnacional.org.br/fase2/">nomeado presidente honorário do IAB</a> em 1917.
Voltemos, pois, às objeções preliminares da Rússia no TPA. Moscou, dentre outros pontos, argumentou basicamente que 1) a disputa, por envolver atividades militares, estaria fora da jurisdição do Tribunal Arbitral por força da exclusão prevista no artigo 298(1)(b) da CNUDM, e que 2) a CNUDM não consagraria as imunidades reclamadas por Kiev.
O Tribunal, por sua vez, abordou as objeções de uma maneira assaz característica do instituto da arbitragem internacional. Com relação à primeira objeção, o Tribunal decidiu por unanimidade que no dia 25 de novembro de 2018 as embarcações da marinha ucraniana em questão exerceram “atividades militares” até um certo ponto após terem levantado ancoragem, caindo, portanto, na exclusão do artigo 298(1)(b) da CNUDM, mas que os eventos que se seguiram ao arresto das embarcações militares não constituem “atividades militares, para os fins da convenção”. O Tribunal decidiu que a determinação do ponto preciso a partir do qual as atividades dos navios em questão deixaram de ser “militares” para os fins do artigo 298(1)(b) da CNUDM seria realizada em conjunção com os méritos da contenda, isto é, será feita na decisão final do procedimento arbitral. Já com relação à segunda objeção, a de que a CNUDM não consagraria imunidades, o Tribunal decidiu, com base no artigo 288(1) da convenção, que não se tratava de uma objeção de caráter exclusivamente preliminar e que, portanto, seria igualmente endereçada na decisão final de mérito.
A leitora logo poderá perceber que se trata de uma decisão dúctil do Tribunal Arbitral, isto é, de uma decisão maleável, que evita proferir um julgamento determinante sobre os pontos em questão. Uma das principais características da arbitragem, de fato, é a grande maleabilidade conferida aos árbitros na condução do processo, para buscarem, além de uma decisão formalmente correta, uma possibilidade de composição entre as partes, que lhes permita prosseguir ou reatar um relacionamento comercial ou político.
A finalidade principal é a pacificação social, afigurando-se a arbitragem como um procedimento intermediário entre a flexibilidade total de uma negociação diplomática e a rigidez legalista de um procedimento judicial. Levando-se em conta que, no caso em tela, cerca de quatro anos após o início do procedimento arbitral, as partes entraram em conflito, a decisão preliminar unânime do Tribunal pode ser interpretada, também, como o oferecimento de um tempo adicional para que elas busquem a paz e a solução pacífica das suas controvérsias. A possibilidade de utilização flexível do tempo é uma das grandes belezas da arbitragem.
Não é necessário que nos prolonguemos mais acerca da importância da arbitragem e do papel do Brasil no desenvolvimento do instituto em nível internacional para que a leitora perceba o despropósito das tentativas atuais de desmonte dela em nosso país. Essas iniciativas, materializadas principalmente pelo <a href="https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2300144">PL 3293/2021</a>, vão contra a tradição histórica do nosso país de não apenas se adequar aos mais altos padrões internacionais do instituto, mas de ter uma participação marcadamente pró-ativa nos foros globais, influenciando mesmo o desenvolvimento desses padrões. O risco é o de um afastamento do Brasil de sua tradição histórica e de marginalização do país no cenário internacional.
O PL 3293/2021 foi objeto de um brilhante parecer do dr. Joaquim de Paiva Muniz, aprovado pelo presidente do IAB, dr. Sydney Sanches, e referendado pela plenária do instituto na noite da última quarta-feira, dia 20 de julho. A gravação dos debates pode ser assistida <a href="https://youtu.be/JhMZZMyRLVM">no canal do IAB no YouTube</a>. O dr. Muniz conclui, em seu parecer, que “o PL propõe alterações implicando um retrocesso ao período anterior à edição da Lei de Arbitragem, com um arcabouço legal que poderá eliminar o instituto no Brasil. No melhor cenário, terá como resultado a redução de casos, a migração das arbitragens brasileiras para outros países e a eliminação do país como possível sede de arbitragens internacionais, gerando, ao fim e ao cabo, prejuízos à economia brasileira”.
O Brasil, país cujo próprio corpo da pátria, isto é, cujos contornos do território nacional foram definidos em grande medida pela arbitragem, deve sempre ser um exemplo para o mundo das melhores e mais sólidas práticas em relação ao instituto. A manutenção, portanto, da <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/lei-de-arbitragem">Lei de Arbitragem</a>, estruturada segundo o modelo da Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional (UNCITRAL), é um imperativo daquilo que o Barão do Rio Branco dizia a respeito das grandes nações e que faz a epígrafe deste ensaio: a manutenção da tradição de respeito aos nobres exemplos de nosso passado, assim como a do culto do direito, que entre nós inclui especialmente a arbitragem. Facilis descensus Averno [4].
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[1] PINHEIRO MACHADO, Paulo Fernando. “Justiça e Diplomacia na Formação do Brasil”, in Revista Justiça &amp; Cidadania, ed. 257, Rio de Janeiro, jan. 2022.
[2] WEHLING, Arno. “Prefácio”, in GOES FILHO, Synesio Sampaio. Navegantes, bandeirantes, diplomatas: um ensaio sobre a formação das fronteiras do Brasil. Brasília: Funag, 2015. p. 20.
[3] RICUPERO, Rubens. A Diplomacia na Formação do Brasil. 1750-2016. Rio de Janeiro: Versal Editores, 2017. p. 31.
[4] A descida para o inferno é fácil.

solução de conflito

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JOTA

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