Melina Girardi Fachin

Erick Kiyoshi Nakamura

Sobreveio a 10ª condenação brasileira exarada de forma unânime na Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH): deliberada nos dias 6 e 7 de novembro de 2021 e publicizada nesta quarta-feira (24), a sentença referente ao Caso 12263, contra o Estado do Brasil, apresentado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).
O caso se refere ao feminicídio de Márcia Barbosa de Souza, ocorrido em junho de 1998. A vítima foi assassinada e seu corpo lançado em um terreno baldio, tendo as investigações preliminares apontado a participação de Aécio Pereira de Lima, à época deputado estadual, e de mais quatro pessoas na autoria do delito. Entretanto, a instauração de processo criminal contra o então deputado foi negada, por duas vezes, pela Assembleia Legislativa da Paraíba, num procedimento que, segundo a Corte, “não registrou nenhuma motivação, de modo que se presume que não realizou nenhuma análise sobre um eventual fumus persecutionis da ação penal que se buscava autorizar”.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>
Por deficiências na investigação e demora na abertura de processo, culminou-se no não estabelecimento da verdade dos fatos em relação ao ex-parlamentar por seu falecimento superveniente, quase dez anos após o episódio. As investigações conduzidas em face dos demais envolvidos foram arquivadas por falta de provas.
A decisão da Corte considera que o Estado brasileiro prestou proteção insuficiente aos direitos da vítima e o condena a prestar reparações aos seus familiares, bem como a tomar providências para garantir a não repetição do ocorrido, centradas na luta contra o feminicídio e a violência contra a mulher e na reflexão acerca da utilização da figura da imunidade parlamentar. Com isso, reacende um importante diálogo – candente desde o início do processo – entre as balizas trazidas pelo sistema interamericano e o instituto das imunidades formais, uma das prerrogativas previstas no estatuto de congressistas.
Muitos poderiam dizer que a decisão vem tarde e que a sentença já foi parcialmente cumprida pela <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc35.htm">Emenda Constitucional nº 35/2001</a>, motivada, inclusive, com a repercussão internacional deste caso à época. Que a sentença veio tarde, estamos de acordo – mas a demora excessiva do sistema interamericano é discussão para outro momento. Fato é que o Estado brasileiro ainda tem um dever grande para dar cumprimento à decisão.
O processo legislativo que culminou na EC nº 35/2001 foi permeado de discussões quanto à necessidade de limitação da imunidade, para “pôr termo à impunidade no país”.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> A tramitação, iniciada a partir de 1995, ganhou adesão expressiva do Congresso Nacional; em segundo turno, a votação no Senado Federal se deu pela unanimidade dos presentes.
Promulgada, a Emenda nº 35/2001, dentre outras mudanças, excluiu a necessidade de licença prévia para o processamento criminal de parlamentar, dando à Casa Legislativa a possibilidade de sustar o andamento de processos, em juízo político, desde que o crime tenha ocorrido após a diplomação. Além disso, retirou a possibilidade de a deliberação sobre a prisão de parlamentar ser feita de forma secreta, o que foi estendido à decisão de perda do mandato pela <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc76.htm">Emenda nº 76/2013</a>.
A decisão tomada pela Assembleia Legislativa da Paraíba de, por duas vezes, impedir o processamento criminal do deputado, demonstrou um fato que se encadeava sistematicamente, ao menos a nível federal,<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> o que levou a Corte a reconhecer que “o arcabouço jurídico na época dos fatos tornava ilusória a possibilidade de levantar a imunidade parlamentar e dava margem para decisões arbitrárias e corporativistas por parte do órgão legislativo”.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>
<blockquote class="jota-article__eye">Entendeu a Corte que a aplicação indevida da imunidade parlamentar, no caso, acarretou a violação dos direitos às garantias judiciais, à igualdade perante a lei e à proteção judicial de Márcia Barbosa de Souza. E, neste sentido, determinou que o Estado adote as medidas para prevenir, investigar e sancionar a violência contra a mulher, bem como que aplique e interprete a imunidade segundo os critérios estabelecidos na sentença, de forma a proteger o direito de acesso à justiça.</blockquote>
O diálogo com o sistema interamericano leva a densificar a crítica ao instituto no âmbito interno, haja vista o arco da impunidade à irresponsabilidade. O desvio na utilização das imunidades formais, ainda sob a previsão da redação original da Constituição de 1988, instou a modificação do texto por emendas e aprimorou a possibilidade de responsabilização e transparência. Contudo, não resolveu de todo o problema.
Primeiramente, há de se reforçar que em caso de abuso das prerrogativas, ato considerado incompatível com o decoro parlamentar, o Poder Legislativo deve promover a cassação do mandato eletivo em processo interno que respeite o devido processo legal, seja transparente e possua tempo razoável de duração. O descumprimento a este comando demonstra desrespeito ao Parlamento e à própria Constituição.
Além disso, é certo que, conquanto seja essencial à proteção do Parlamento, as imunidades formais não são estanques, submetendo-se a debates e a deliberações constantes.
Nesse esteio, é imprescindível que façamos o nosso dever de casa para cumprimento da decisão e que eventuais alterações legislativas que busquem dar novas respostas aos constantes problemas decorrentes das imunidades formais sejam precedidas de um debate público robusto – de forma a garantir o livre exercício da atividade parlamentar, imune às perseguições arbitrárias dos órgãos de controle, mas impassível de converter a imunidade formal em impunidade material, sobretudo em casos de graves violações de direitos humanos como o de Márcia Barbosa.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Barbosa de Souza e outros vs. Brasil, Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas, Série C nº 435. Publicado em 7 nov. 2021, p. 38
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Frase constante na justificativa da Proposta de Emenda à Constituição nº 101/95, que, em aglutinação às Propostas nº 34/1998, nº 178/1995 e nº 518/1997, deram azo ao processo legislativo referido.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Segundo levantamento publicado pela Folha de S.Paulo, em 5 de agosto de 2001, no período entre 1991 e 1999, dos 151 pedidos de licença prévia feitos pelo Supremo Tribunal Federal à Câmara dos Deputados, 2 foram concedidos, 62 negados e 87 não foram analisados antes de os congressistas terem deixado o mandato (COSSO, Roberto. Congresso protege parlamentares de ações. Folha de S.Paulo, 5 ago. 2001. Disponível em: <a href="https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc0508200109.htm">https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc0508200109.htm</a>. Acesso em: 24 nov. 2021).
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Barbosa de Souza e outros vs. Brasil, Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas, Série C nº 435. Publicado em 7 nov. 2021, p. 37.

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JOTA

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