Victor Manso Roman

Marcos Canecchio Ribeiro

O colegiado da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) proferiu importante decisão relativa à emissão de certificados de recebíveis do agronegócio (CRA), aprovando pedido de registro de oferta pública de distribuição de CRA, no valor de R$ 150 milhões, com lastro nos créditos oriundos da emissão de debêntures da BK Brasil Operação e Assessoria a Restaurantes S.A. (BK Brasil), companhia responsável pela exploração dos restaurantes da marca Burger King no Brasil.
Em 30 de agosto de 2016, o colegiado da autarquia julgou o recurso apresentado pela Eco Securitizadora (ofertante dos CRA) e pela XP Investimentos (coordenador líder da oferta pública), contrariando o entendimento da  Superintendência de Registro de Valores Mobiliários (SRE) da CVM manifestado no final de junho do mesmo ano.
Na visão da SRE não seria possível a concessão do registro da oferta com lastro nas debêntures de emissão da BK Brasil pelo fato de tal oferta não promover o financiamento ao produto rural, tal como preceitua a Lei 11.076/04 (que instituiu os CRA), haja vista o fato da BK Brasil não poder ser  caracterizada como integrante da cadeia de agronegócios, já que exerce atividade empresarial específica no ramo de restaurantes.
Em seu parecer no colegiado, o presidente da CVM Leonardo Pereira, acompanhado em sua decisão pela maioria dos diretores integrantes do órgão, afastou os argumentos apresentados pela SRE no sentido de que a oferta de CRA deve, necessariamente, prover financiamento direto ao produtor rural.
Antes de entrar no mérito da decisão do colegiado, é importante destacar que, de acordo com os documentos da emissão de debêntures da BK Brasil, os recursos captados pela companhia em decorrência de tal emissão deveriam ser destinados exclusivamente ao pagamento de obrigações contratuais oriundas da aquisição, pela BK Brasil, de carne in natura produzida e comercializada pela JBS e Seara.
No entendimento trazido no voto do presidente, a Lei 11.076/04 (em seu artigo 23, §1º) fixa dois principais critérios para a definição de crédito hábil a lastrear uma emissão de CRA: originar-se de negócio realizado entre produtor rural (ou cooperativas) e terceiros e que tal negócio tenha relação com alguma das etapas do processo de produção rural.
No caso em análise, ambos os critérios estariam preenchidos por três principais motivos: (i) as partes da transação são, de um lado, os fornecedores JBS e Seara, que desenvolvem atividades de produção rural e, portanto, são os produtores rurais, e, de outro, a BK Brasil, na figura de terceiro comprador, (ii) o negócio estabelecido entre fornecedores e BK Brasil compreende a comercialização de produção rural (no caso, carne in natura), e (iii) as debêntures de emissão da BK Brasil têm origem em negócio entre o produtor rural e terceiro, na medida em os recursos captados por meio dessa emissão têm clara vinculação com a transação envolvendo os fornecedores e a BK Brasil (em razão da destinação específica dos recursos, conforme explicado acima). Em outras palavras, apesar da emissora das debêntures não ser produtora rural, o colegiado entendeu que, se restar comprovado que os recursos captados com as debêntures serão destinados a pagamentos devidos a produtores rurais no âmbito de uma operação de comercialização de produtos rurais, considera-se que os direitos de crédito das debêntures foram originados de um negócio realizado entre produtores rurais e terceiros sendo possível, assim, sua utilização como lastro de CRA.
Portanto, para o colegiado, a lei não restringe o tipo de negócio que pode dar lastro à emissão dos CRA, desde que sejam negócios realizados entre produtores rurais e terceiros, não sendo um requisito necessário que o produtor rural seja o devedor dos créditos que vão dar lastro à emissão dos CRA. Ou seja, pelo entendimento do colegiado, a lei não exige que o fluxo de pagamento da operação decorra da atividade do produtor rural.
Cabe ressaltar que a decisão que proveu o recurso às recorrentes condicionou o registro da oferta dos CRA à previsão, nos documentos de emissão das debêntures, de que a BK Brasil prestará contas trimestralmente à Eco Securitizadora evidenciando o pagamento dos fornecedores, como prova de que os recursos captados estão sendo aplicados conforme a finalidade prevista nos documentos da operação.
Dessa forma, a decisão da CVM abre caminho para diversas operações de CRA com lastro em créditos originados por empresas que não estão diretamente ligadas à produção rural, desde que tais operações ou os recursos originados por tais operações sejam utilizados na cadeia do agronegócio, fomentando o setor agroindustrial. 
Ao definir que o devedor dos direitos creditórios ligados ao agronegócio não precisa ser necessariamente um produtor rural, a CVM cria importante precedente no mercado de capitais, que já começa a se movimentar com estruturas similares à emissão dos CRA objeto da decisão da autarquia. 
Para ilustrar essa nova tendência, encerrou-se em 22/12 a distribuição pública de CRA da Ápice Securitizadora, no valor total de R$ 1.012.500 bilhões (considerados os lotes suplementar e adicional), com lastro em debêntures de emissão do Grupo Pão de Açúcar. Nos termos do Prospecto e demais documentos da emissão, os recursos líquidos obtidos pelo Pão de Açúcar com a emissão das debêntures que serviram como lastro para os CRA serão destinados exclusivamente à compra de produtos agropecuários e hortifrutigranjeiros, tais como frutas, verduras, legumes, laticínios, aves e outras proteínas animais in natura diretamente de produtores rurais e/ou cooperativas rurais.
Especula-se agora no mercado equiparação desse novo tratamento dado aos CRA aos Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRI), de modo que os CRI também possam ser emitidos com lastro em operações originadas por empresas que atuam fora do setor imobiliário, mas cujos recursos sejam destinados ao fomento do segmento imobiliário.
Essa discussão no âmbito de ofertas de CRI não é novidade, bastando lembrar da decisão preferida pelo colegiado da CVM em março de 2013 no âmbito do pedido de registro de oferta de CRI lastreado em debêntures emitidas pela Rede D’or São Luiz S.A. Na ocasião, o colegiado decidiu não ser possível a utilização das debêntures como lastro dos CRI por entender que o fluxo de pagamento da operação proposta não estaria relacionado aos imóveis, mas ao fluxo de caixa da Rede D’or, o que não permitiria a caracterização dos recebíveis como sendo de natureza imobiliária. Dessa forma, o fato dos recursos das debêntures serem utilizados para reformas e construções de hospitais não era suficiente para se comprovar a origem dos créditos no setor imobiliário.
O assunto foi novamente apreciado pelo colegiado em agosto de 2016, quando este autorizou uma oferta pública de CRI com lastro em debêntures de emissão da Cyrela, para o financiamento de empreendimentos imobiliários. Apesar da decisão indicar um posicionamento da CVM no sentido de admitir a “destinação dos recursos captados” como fundamento para que um crédito seja lastro de CRI, manteve-se o entendimento de que o fluxo de pagamento dos CRI deve estar relacionado ao setor imobiliário, ou seja, o crédito que dá lastro aos CRI deve ser de titularidade de empresa pertencente a esse setor (como é o caso da Cyrela).
Dadas as semelhanças desses dois instrumentos de captação de recursos no mercado de capitais, seria lógico esperar um alinhamento de entendimento sobre os requisitos para que um crédito possa servir de lastro para um CRA ou CRI. A decisão no âmbito da oferta de CRA com lastro nas debêntures da BK Brasil poderá encorajar novos pedidos de registro de ofertas de CRI com lastro em créditos originados por empresas que atuam fora do setor imobiliário. O pleito nesse sentido parece fazer sentido e uma decisão favorável da CVM criaria bons incentivos para novas emissões de CRI nesse formato.

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JOTA

Decisão da CVM abre importante precedente em emissões de CRA

Caso BK Brasil

Decisão da CVM abre importante precedente em emissões de CRA