Julio Cesar Santiago

"Quanto mais dá desoneração na cesta básica, menos espaço fiscal sobra para fazer o 'cashback'”.<a href="#_edn1" name="_ednref1">[1]</a> Com essas palavras, o secretário extraordinário do Ministério da Fazenda para a reforma tributária, Bernard Appy alertou sobre a consequência que uma desoneração ampla sobre bens e serviços pode acarretar à política fiscal de combate à desigualdade de renda.
Em 2021, quase 30% dos cidadãos brasileiros estavam na pobreza. Desse percentual, quase 18 milhões eram extremamente pobres.<a href="#_edn2" name="_ednref2">[2]</a> O que antes era uma clara percepção do simples caminhar pelos grandes centros urbanos – em que pessoas dormem ao relento – já se confirma em inúmeros dados e fontes há algum tempo.
Desde que Thomas Piketty lançou seu “O Capital no século XXI” já não é novidade que a desigualdade de renda só aumenta. Segundo alerta, “uma vez constituído, o capital se reproduz sozinho, mais rápido do que cresce a produção”.<a href="#_edn3" name="_ednref3">[3]</a> Ou seja, em certos cenários, o rendimento do capital se reproduz mais rápido que o próprio crescimento da economia.
A consequência é que o pobre ficará cada vez mais pobre. E se distanciará cada vez mais das maiores rendas, diante da constatação de que a renda do capital se multiplica mais rápido do que a renda do trabalho. Em relação ao trabalho, quando o tem, o pobre vive a constante ameaça do desemprego. Basta uma crise econômica para perder o seu. O medo lhe é um eterno companheiro. Em relação ao capital, esta expressão não integra seu cotidiano.
Amartya Sen alerta para o fato de que a pobreza não se relaciona apenas com a desigualdade de renda. Não é apenas uma questão econômica. É uma questão de privação de capacidades. Outros fatores, como idade da pessoa (jovem ou idoso), papéis sexuais e sociais (maternidade), localização (bairros violentos, regiões de seca ou inundação), que não necessariamente estão ligados às escolhas das pessoas, podem influenciar a pobreza.<a href="#_edn4" name="_ednref4">[4]</a>
A reforma tributária deveria olhar com mais cuidado para essa situação. Pessoas estão deixando de ser pessoas. Pessoas estão morrendo de fome. Mas a ideia parece ser a de que é preciso haver uma troca para se dar algo ao pobre. Se ele consumir, ele ganha dinheiro de volta. Essa é a moralidade que impulsiona a economia da pobreza. Mas, e se ele não tem condições de consumir nada?
Quase 18 milhões estão em extrema pobreza, provavelmente vivendo da caridade. Por que, então, o principal instrumento de auxílio ao pobre em uma nova tentativa de reforma tributária deva ser uma espécie de “cashback”?
Alguém poderia argumentar que já existe o fundo de combate à pobreza previsto desde 2001.<a href="#_edn5" name="_ednref5">[5]</a> Mas, diante da situação atual, parece certo crer que ele não está cumprindo seu papel. Importa, ainda, destacar que nem mesmo a composição do fundo foi integralmente realizada. Repare que o <a href="https://www2.camara.leg.br/legin/fed/conadc/1988/constituicao.adct-1988-5-outubro-1988-322234-publicacaooriginal-1-pl.html">art. 80, III do ADCT</a> determina que o fundo será composto também pelo produto da arrecadação do imposto sobre grandes fortunas. Mas, como se sabe, esse tributo jamais foi instituído.
Isso em um cenário em que cresce o número de bilionários no mundo. Mesmo após uma pandemia que levou boa parte da população à pobreza e ao aumento da riqueza daquele grupo. Mas, até mesmo essa classe privilegiada já se convenceu que a situação é alarmante. Um grupo de bilionários e milionários estrangeiros assinou uma carta, direcionada ao Fórum Econômico Mundial, em que afirmam que “enquanto milionários, sabemos que o sistema atual de impostos não é justo”.<a href="#_edn6" name="_ednref6">[6]</a> Eles assumem que deveriam ser mais tributados por seus países.
De outro lado, somente dar o dinheiro ao pobre pode gerar um ciclo vicioso em que o dinheiro que retorna sirva apenas para mais despesas. O mesmo acontece com empréstimos consignados sobre programas de transferência de renda. Renda, importante ressaltar, que deveria destinar-se apenas para a subsistência. Gerar o endividamento do pobre, com a parcela de seus rendimentos transferidos, apenas enriquece o setor financeiro, que já cobra juros extorsivo.
É preciso, contudo, criar um espaço na reforma tributária para que haja incentivo fiscal às microfinanças aos pobres, principalmente para aqueles que desejam empreender. A pobreza, com efeito, limita a capacidade do pobre de levar adiante seus próprios projetos e ideias. A política fiscal, com juros subsidiados e controle dos resultados, contudo, poderia ajudar na saída da pobreza.
Dificilmente um banco vai emprestar dinheiro ao pobre sem garantia. O risco da inadimplência elevaria ainda mais as taxas de juros. O próprio tomador do empréstimo, com as altas taxas, ficaria entre a cruz e a espada, tentado a inadimplir. O que o levaria para fora do mercado de créditos formais, ao buscar respaldo em agiotas, vizinhos, familiares, ou seja, no mercado informal.
Um estudo com agiotas paquistaneses revelou que a taxa praticada pode variar de 18% a 200% ao ano. Uma média de 80%. Na Índia vendedores de frutas pegam empréstimos com os atacadistas e pagam uma taxa de 5% ao dia, ou seja, mais de 54 milhões de percentuais ao ano.<a href="#_edn7" name="_ednref7">[7]</a>
A solução, então, poderia ser a redução dos custos administrativos bancários, nos empréstimos aos pobres. A criação de um verdadeiro e real mercado de microcréditos. E nesse ponto a política fiscal pode auxiliar.
Por exemplo, a Constituição prevê uma gama de privilégios ao setor de exportação, em uma lógica de que este setor é estratégico para o crescimento econômico do país. Não incide, assim, contribuições sociais e nem de intervenção ao domínio econômico sobre as receitas decorrentes de exportação.
Algum estímulo parecido poderia ocorrer com instituições de microcrédito que emprestassem dinheiro para pobre. A reforma tributária demonstraria, então, preocupação com um serviço destinado exclusivamente ao pobre. É claro que aqui é só uma reflexão inicial para que não se ignore, do ponto de vista fiscal e constitucional esse grande grupo.
Como a política fiscal se concretizará dependerá de futura lei que poderia estabelecer os requisitos, inclusive limitando o empréstimo às mulheres da família, ou mesmo empréstimos em grupos (empréstimo solidário) como já ocorre em outros países, e tantos outros instrumentos existentes.
É preciso lembrar que dar saúde e educação gratuitas ao pobre não é suficiente para incluí-lo socialmente. É preciso que os fundamentos da solidariedade sejam concretizados. Principalmente, o que leva em consideração que o outro é tão importante para a nossa própria vida individual.<a href="#_edn8" name="_ednref8">[viii]</a> E já que vamos reformar o sistema, que todos sejam beneficiados.
<hr />
<a href="#_ednref1" name="_edn1">[1]</a> Reforma tributária: tirar impostos da cesta básica reduz espaço para 'cashback' a mais pobres, diz secretário da Fazenda. Pub. 31 ago. 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/. Acesso em: 2 ago. 2023.
<a href="#_ednref2" name="_edn2">[2]</a> Em 2021, pobreza tem aumento recorde e atinge 62,5 milhões de pessoas, maior nível desde 2012. Pub. 2 dez. 2022. Disponível em &lt;https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/&gt;. Acesso em 2 ago. 2023.
<a href="#_ednref3" name="_edn3">[3]</a> PIKETTY, Thomas. O Capital no século XXI. Tradução de Mônica Baumgarten de Bolle. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014, p. 555.
<a href="#_ednref4" name="_edn4">[4]</a> SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 121.
<a href="#_ednref5" name="_edn5">[5]</a> Ver art. 79 e 80 do ADCT.
<a href="#_ednref6" name="_edn6">[6]</a> Quem são os milionários que querem pagar mais impostos. Pub. 20 jan. 2022. Disponível em &lt;https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60061313&gt;. Acesso em 4 ago. 2023.
<a href="#_ednref7" name="_edn7">[7]</a> DUFLO, Esther. Lutar contra a pobreza. Tradução de Jorge Bastos. Rio de Janeiro: Zahar, 2022, p. 119.
<a href="#_ednref8" name="_edn8">[8]</a> SANTIAGO, Julio Cesar. Solidariedade: como legitimar a tributação? Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019, p. 52.

cashback

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

A ausência de moralidade na economia para os pobres

Cashback e a reforma tributária

A ausência de moralidade na economia para os pobres, o aumento na desigualdade social e a relação com a reforma tributária