João Rodrigo Stinghen

Aline Rodrigues de Andrade

<h3>1. Introdução</h3>
A LGPD prevê a possibilidade de aplicação de sanções administrativas aos agentes de tratamento de dados em razão de eventuais infrações cometidas às normas prescritas. Desse modo, prescreve condutas de observância obrigatória, cujo descumprimento poderá ensejar, dentre outras, responsabilização administrativa, que será aplicada após o transcurso de regular processo/procedimento disciplinar.
<a href="https://conteudo.jota.info/solucoes-para-crise"><img class="aligncenter wp-image-244441 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/04/cta-solucoes-para-a-crise-2.png" alt="" width="1080" height="1080" /></a>
Este artigo tem por objetivo analisar a incidência do processo de responsabilização disciplinar no âmbito da LGPD (doravante, “PAD LGPD”) aos agentes delegados titulares de serventias notariais e registrais, estabelecendo um paralelo com o processo de responsabilização disciplinar no âmbito da Lei nº 8.935/1994.
<h3>2. Autoridade Nacional de Proteção de Dados</h3>
A Lei nº 13.853/2019 alterou a LGPD para criar, sem aumento de despesa, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD). Trata-se de órgão da administração pública federal, integrante da presidência da República, com competências de diversos matizes e responsável por zelar, implementar e fiscalizar o cumprimento da LGPD em todo território nacional, com no âmbito do Poder Público (cf: artigos 5º, XIX, 55-A e 55-J da LGPD).
Em suas competências normativas, deve regular matérias como as atividades de comunicação e de uso compartilhado em geral, a publicidade das operações de tratamento de entidades públicas e as informações, à ANPD, o compartilhamento de dados público-privados e a adequação progressiva de bancos de dados (cf: artigos 23, § 1º, 27, parágrafo único, 30 e 63 da LGPD).
Para bem executar as normas da LGPD e as que ela mesma possa publicar, a autoridade fiscalizadora precisa de meios para organizar, controlar e corrigir ações, o que pode significa competências disciplinares, para aplicar sanções, determinar as medidas cabíveis para cessar violações, solicitar Relatórios de Impacto à proteção de dados e sugerir a adoção de padrões e de boas práticas (cf: artigos 29, 31, 32 c/c 55-J, IV da LGPD)
<h3>2.1 Responsabilidade disciplinar no âmbito da LGPD</h3>
A LGPD prevê a possibilidade de responsabilização dos agentes de tratamento de dados (controlador e operadores, cf. art. 5º, IX da LGPD), o que lhes impõem o dever de obediência às normas prescritas. Surge, desse modo, a responsabilidade administrativa, sujeitando o agente à imposição de sanções disciplinares.
Ao tomar conhecimento de infrações, caberá à ANPD apurar o fato, aplicando a penalidade porventura cabível. Nessa instância, a apuração da infração disciplinar ocorrerá por meio de processo/procedimento administrativo, sendo assegurados todos os direitos constitucionais de defesa, especialmente os direitos ao contraditório e à ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes (cf: art. 5º, LV da CF/88 c/c artigos 52, § 1º e 55-J, IV da LGPD). Nesse sentido, merecem destaques os princípios:
I. due process, pela necessidade de prévia instauração de PAD (cf: artigos 52, § 1º e 55-J, IV da LGPD);
II. ampla defesa e contraditório, expressamente previstos (cf: artigos 52, § 1º e. 55-J, IV da LGPD);
III. motivação, já que que a sanção deverá ser aplicada de forma gradativa, isolada ou cumulada (cf: art. 52, § 2º da LGPD);
IV. a busca da verdade material, dada a necessidade de análise das peculiaridades do caso concreto (cf: art. 52, § 2º da LGPD);
V. revisão, pela garantia de direito de recurso (cf: art. 55-J, IV da LGPD).
Uma vez comprada a infração disciplinar pela ANPD, em processo regular, será possível a aplicação das sanções previstas no art. 52 da LGPD.
<h3>3. Lei 8.935/1994 e Provimento 74</h3>
Conforme já sustentamos (<a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/cartorios-e-protecao-de-dados-legitimacao-do-tratamento-19032020" target="_blank" rel="noopener noreferrer">artigo 4º desta coletânea</a>), os delegatários são agentes de tratamento (controladores) e, portanto, estarão sujeitos à fiscalização, normatização e poder disciplinar da ANPD.
Note-se, porém, que as sanções aplicadas com base na LGPD não substituem sanções administrativas definidas em legislação específica (art. 52, § 2º c/c art. 64 da LGPD).
Uma vez que a delegação recai sobre a pessoa física do titular da serventia, tal responsabilidade é atribuída à pessoa física do agente delegado<a href="#_edn1" name="_ednref1"> [i]</a>.
Regulamentando o art. 236 da CF/88, a Lei nº 8.935/1994 é a norma geral sobre a responsabilidade administrativa dos serviços notariais e registrais, definindo deveres, infrações e penalidades, a serem aplicadas de acordo com a gravidade do fato (cf: artigos 31 a 36 da  Lei nº 8.935/1994).
Logo, no que tange à proteção de dados, é possível antever um regime de responsabilidade disciplinar intrincado e complexo no que se refere à proteção de dados para serventias.
Primeiramente, em consonância com o art. 52, § 2º c/c art. 64 da LGPD e com a previsão genérica e indeterminada do art. 31, I da Lei nº 8.935/1994 (“a inobservância das prescrições legais ou normativas”) pode-se interpretar uma dupla responsabilização disciplinar dos delegatários, com aplicação de sanções de ambas essas leis.
Afora isso, a previsão do art. 31, I da Lei nº 8.935/1994 autorizaria sanções com base no descumprimento das prescrições do Provimento nº 74/2018 do CNJ (cf: art. 9º <a href="#_edn2" name="_ednref2">[ii]</a>), que envolve deveres referentes à segurança da informação (tema já abordado no <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/cartorios-e-protecao-de-dados-seguranca-da-informacao-05052020" target="_blank" rel="noopener noreferrer">artigo 7º dessa coletânea</a>).
Por fim, o art. 30 da Lei nº 8.935/1994 prevê alguns deveres dos delegatários que podem ter relação com proteção de dados.
<h3>4. Competência disciplinar: ANPD ou Poder Judiciário? </h3>
Com efeito, o art. 55-K da LGPD prevê que a ANPD detém competência exclusiva na aplicação das sanções com base nessa lei. Determina, inclusive, que a competência da ANPD deve prevalecer, no que se refere à proteção de dados, sobre competências correlatas de outras entidades do Poder Público.
Todavia, entende-se que no caso dos agentes delegados a questão não é tão simples assim, sob o risco de extrema insegurança jurídica e excesso caráter punitivo. Afinal, a partir das previsões da Lei 8.935/1995, em muitos casos haveria possibilidade de bis in idem. Para essa categoria, portanto, cabe uma regulamentação específica por parte da ANPD em parceria com o Poder Judiciário, estabelecendo limites claros de atuação coordenada de ambos.
<blockquote class="jota-article__eye">Sem uma regulamentação específica, haveria um grande risco de o regime disciplinar atribuído a notários e registradores a partir da proteção de dados ser verdadeiramente kafkiano: muito severo e pouco transparente.</blockquote>
Além disso, diante da possibilidade de tripla responsabilização (civil, penal e administrativa), seria desarrazoada a aplicação de sanções administrativas duplicadas para os mesmos fatos (configurando nefasto bis in idem).
Seja como for, a questão é demasiadamente complexa  para ser analisada em definitivo neste trabalho, demandando estudos posteriores para posicionamento doutrinário. Desde logo, porém, adverte-se quanto à necessidade de que as autoridades fiscalizadoras dos notários e registadores regulamentem a questão especificamente (sobretudo a ANPD e o CNJ).
<h3>5. Regime disciplinar de proteção de dados nas serventias: deveres, infrações e sanções</h3>
Cotejando a LGPD, a Lei nº 8.935/1994 e o Provimento 74, é possível traçar o seguinte paralelo:
<img class="aligncenter wp-image-249403 " src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/05/tabela-1.png" alt="" width="691" height="615" />
No que se refere a agentes delegados, é concebível que sejam aplicáveis pela ANPD, desde logo, apenas as sanções de advertência, publicização da infração e multa simples. Tendo em vista a natureza sui generis dos serviços notariais e de registro, entende-se que a  aplicação das demais sanções deve ser condicionada a prévia regulamentação.
Entende-se que é controversa a possibilidade de aplicação da multa diária sobre o faturamento, na medida em que os cartórios não configuram pessoas jurídicas. Além disso, seria grotesco – sob risco de extrema insegurança jurídica – a possibilidade de a ANPD bloquear e eliminar dados de cartórios, suspender suas atividades ou proibi-las, ao menos da mesma forma como faria para empresas em geral.
Por outro lado, dispõe o art. 53 da LGPD que a ANPD definirá, em regulamento próprio as metodologias que orientarão o cálculo do valor-base das sanções de multa. Esse regulamento, que deverá ser embasado em prévia consulta pública, inexiste até o momento <a href="#_edn3" name="_ednref3">[iii]</a>. Também inexiste regulamento específico sobre o PAD LGPD, carecendo o ordenamento de definições sobre questões mais procedimentais, tais como:
I. necessidade de a portaria de instauração conter informações sobre fatos, normas supostamente violadas e consequentes sanções;
II. prazo prescricional para instauração;
III. meios de acesso ao processo;
IV. prazos para manifestação;
V. tramite do processo, com meios hábeis de citação, intimação e designação de audiência;
VI. mecanismos de produção de prova;
VII. autoridades processante(s) e recursal(is).
Essas e outras questões se tornarão mais claras na medida em que as regulamentações da entidade forem de fato publicadas, o que ainda pode demorar para acontecer, tendo em vista que a ANPD sequer saiu do papel até agora.
<h3>6. Conclusão</h3>
Pela interpretação literal da legislação, notários e registradores estarão sujeitos a um sistema intrincado e pouco transparente de responsabilização disciplinar a partir da LGPD, que ocorrerá por meio de PADs instaurados pela ANPD e pelo Judiciário, com possibilidade de dupla penalização e aplicação de sanções incompatíveis com a continuidade dos serviços.
Todas essas questões levam novamente à conclusão de que é necessária uma regulamentação específica para a proteção de dados em cartórios. Assim, sugere-se equacionamento por meio de regulamento publicado pela ANPD em conjunto com o Poder Judiciário, representado pelo Conselho Nacional de Justiça.
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Bibliografia e notas
DALLEDONE, Rodrigo Fernandes Lima. Função pública notarial: regime jurídico e fiscalização judicial. Curitiba: Prismas, 2016
TEPEDINO, Gustavo. FRAZÃO, Ana. OLIVA Milena D. (coord) A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais: e suas repercussões no Direito Brasileiro. RT, 2019. Ebook.
<a href="#_ednref1" name="_edn1">[i]</a> Com efeito, o serviço se torna apenas a designação da estrutura administrativa que serve de lastro à gestão da atividade (DALLEDONE, Rodrigo Fernandes Lima. Função pública notarial: regime jurídico e fiscalização judicial. Curitiba: Prismas, 2016, p. 22).
<a href="#_ednref2" name="_edn2">[ii]</a> Provimento 74/2018 do CNJ: Art. 9º O descumprimento das disposições do presente provimento pelos serviços notariais e de registro ensejará a instauração de procedimento administrativo disciplinar, sem prejuízo de responsabilização cível e criminal.
<a href="#_ednref3" name="_edn3">[iii]</a> Evidentemente, até o momento (mai/2020), inexiste regulamentação que disponha sobre a questão, pois a LGPD ainda não entrou em vigor e a ANPD ainda não saiu do papel.

ANPD

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JOTA

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Cartórios e proteção de dados: fiscalização e responsabilidade disciplinar

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