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Cartéis de crise e a Covid-19: possíveis caminhos para a política concorrencial

É preciso que o Cade trabalhe com as empresas e tome a dianteira na formulação de propostas no enfrentamento da crise

Cade
Fachada do Cade / Crédito: JOTA Imagens

Em tempos de crise, é comum ressurgirem propostas para permitir ou tolerar comportamentos que nas condições de normalidade seriam considerados problemáticos, ilícitos ou até mesmo impensáveis. No antitruste não é diferente, e muitas discussões típicas de situações de emergência têm vindo à tona no enfrentamento à Covid-19. Nesse artigo, voltamos nossa atenção para o debate que começa a se avolumar em torno da flexibilização da punição de cartéis.

Em regra, o cartel é considerado uma das piores ofensas à ordem econômica porque permite às empresas perpetradoras se apropriarem dos ganhos da ausência de competição em detrimento da base consumidora, principalmente sob a forma de preços mais elevados. Assim, a princípio um cartel em momento de crise não foge desse diagnóstico.

Porém, tal conclusão não deixa de advir de uma análise estática do problema. Conforme explicou o presidente do Comitê de Concorrência da OCDE, Frederic Jenny, ao contemplar possíveis consequências da pandemia para a política concorrencial, o desequilíbrio causado por um choque exógeno de tamanha magnitude no sistema econômico deverá fazer com que as autoridades tenham de olhar para o processo competitivo a partir de uma perspectiva mais dinâmica e de longo prazo, adaptando suas concepções sobre cartéis de crise e outras medidas emergenciais.

É possível cogitar diferentes motivações econômicas para a prática de cartéis de crise. O grau de mobilização e o nível de eficiência gerados pela coordenação entre agentes econômicos de um setor ou conjunto de setores pode ser estritamente necessário para o enfrentamento direto da crise de segurança ou saúde, garantindo objetivos específicos de ordem pública.

Nesse sentido, por exemplo, assistimos recentemente a medidas dos governos do Reino Unido e da Noruega permitindo a cooperação entre concorrentes para garantir o abastecimento no setor de alimentos e logística, bem como a junção de esforços da Pfizer e da BioNTech para desenvolver uma vacina contra o coronavírus. Aqui, o debate assume a feição de ponderação de prioridades ou princípios, na qual se reconhece que preservar a concorrência é importante, mas é ainda mais importante (e urgente) garantir a saúde e o abastecimento da população.

Na perspectiva individual das firmas, uma série de variáveis concorrenciais chave são alteradas de maneira abrupta durante choques econômicos. Algumas dessas alterações se tornam perenes e paradigmáticas, e caberá aos agentes de mercado se adequar à nova realidade. Outras, porém, são passageiras, mas podem mesmo assim ter efeitos avassaladores que não refletem critérios de mérito concorrencial ou otimização normal de mercado.

A incerteza permeia todas ou quase todas as variáveis relevantes – no presente momento até mesmo a precificação dos ativos mais seguros da economia – e não é possível ter nenhuma ideia sobre quais movimentos serão transitórios e quais se consolidarão. Nesse cenário, é compreensível que as empresas busquem arranjos temporários de cooperação, em especial porque a diminuição das pressões competitivas lhes confere mais espaço para sobreviver ao momento de crise. Isso pode ser positivo se a normalidade no nível de concorrência for retomada e se, por causa do acordo de crise, mais empresas conseguirem sobreviver ao choque, resultando em uma estrutura de mercado pós-crise mais pulverizada e competitiva.

Dada a elevada possibilidade de que cartéis de crise venham a ser praticados ou propostos nos próximos meses, a comunidade antitruste deve estar preparada para enfrentar essa questão. E, para a política de concorrência, aceitar a estruturação de cartéis de crise pode ser um caminho mais frutífero que as alternativas, que consistem tipicamente em deixar esses cartéis ocorrerem sob o radar da autoridade ou, no limite, em conviver com a falência das empresas ou sua consolidação via fusões e aquisições. Essa última alternativa, além de gerar concentração no mercado, apresenta-se como um pacote indeterminado e fechado, envolvendo a totalidade das estruturas produtivas de cada empresa, e por isso apresenta baixa reversibilidade e controlabilidade.

Por sua vez, os cartéis de crise são mais sujeitos a controle, reversíveis e mais maleáveis. Podem ser restritos no tempo e envolver apenas parcialmente as estruturas produtivas das empresas, limitando-se a endereçar exatamente o problema em mãos. Podem também alterar somente as variáveis concorrenciais necessárias, inclusive sem envolver preço, a exemplo do compartilhamento de ativos e dados de estoque no enfrentamento a crises de abastecimento. Em um cenário ideal, a coordenação entre os agentes deve contar não somente com a chancela, mas também com a negociação, a mediação e o acompanhamento da autoridade antitruste, que seria capaz de monitorar a estrutura de governança do arranjo e com isso reduzir as assimetrias de informação e possibilidades de abuso1.

Vale ponderar então, de um ponto de vista prático, se e como seria possível viabilizar esse tipo de acordo no atual regime concorrencial brasileiro, de modo a obter o máximo de benefício no enfrentamento da crise e minimizar eventuais consequências danosas ao consumidor.

Considerando a urgência, pode-se levantar inicialmente a possibilidade de o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) fazer o controle a posteriori, isto é, não autorizar nem desautorizar a prática em um primeiro momento, para depois proceder à sua análise e julgamento levando em consideração o cenário de crise, possivelmente sob a forma de investigação de conduta.

A desvantagem desse tipo de solução é sua grande insegurança jurídica, como se conhece dos anos anteriores à Lei 12529/11, o que é agravado neste caso porque a justificativa do cartel de crise não tem bom histórico de aceitação nos (poucos) julgados em que foi levantada2. E considerando que o Cade não participará da decisão das empresas, terá mais propensão a adotar uma postura de cautela.

Também seria possível notificar o acordo ao Cade como um ato de concentração, na forma de contrato associativo, respeitando-se o controle prévio. Entretanto, essa solução também apresenta desvantagens, na medida em que mesmo o procedimento mais sumário teria um prazo provável de até 45 dias, e a complexidade dos casos poderia fazer esse horizonte se esticar até o prazo máximo de 240 + 90 dias.

Nenhum desses prazos é praticável em tempos de urgência, tampouco o tempo que deve ser reservado para as atividades pré-notificação – negociação e alocação dos riscos concorrenciais, organização das informações e documentos para preenchimento de formulário e, potencialmente, conversas com a autoridade. Para tal opção se mostrar viável, seria imperativo desenhar um procedimento sumaríssimo, que seja menos formalista em estágios iniciais ou que utilize a válvula de escape da autorização precária. Esta última, no entanto, não deixa de replicar o problema da insegurança jurídica.

Na atual conjuntura de ausência de regramento sobre a questão, o mais factível possivelmente seja a confecção de protocolos de emergência com regras claras e prazo determinado de duração, a serem processados sob a forma de petição, analisados em regime de urgência pela Superintendência Geral e referendados pelo Tribunal do Cade. Essa opção tem precedente relativamente recente, tendo sido proposta pelas distribuidoras de combustíveis que precisaram se coordenar para garantir o abastecimento durante a greve dos caminhoneiros de 20183, e tem a vantagem de unir a participação da autoridade com a agilidade necessária para o enfrentamento da situação.

Tendo em vista o tamanho do impacto que a presente crise pode representar e a pressão por ações coletivas que ela deve gerar, o mais provável é que as propostas de relativização do regime concorrencial ocorram de uma forma ou de outra, não se descartando possíveis saídas pela via política ou legislativa.

Nesse sentido, já assistimos à propositura recente do PL nº 1179/2020, de autoria do senador Antônio Anastasia (PSD/MG), que vem sendo intensamente debatido por pautar uma medida contundente: a suspensão sumária da proibição de preços predatórios e restrições unilaterais de oferta até o fim de outubro, bem como da obrigatoriedade de notificação de todos os contratos associativos, consórcios ou joint ventures até o final de novembro.

Evidentemente, uma medida transversal como essa dificulta a obtenção de informação por parte da autoridade e a devida separação entre acordos razoáveis desenhados para o enfrentamento de crise e outros acordos oportunistas ou irrazoáveis. O PL prevê, ainda, que o julgamento de qualquer infração da ordem econômica pelo Cade deverá levar em consideração as circunstâncias geradas pela pandemia, o que amplia a margem de revisão judicial de condenações e abertura de investigações por parte da autarquia. Para evitar se ver impelido a aplicar soluções exógenas deste tipo – e, pior, que não contem com sua contribuição –, é preciso que o Cade trabalhe com as empresas e tome a dianteira na formulação de propostas no enfrentamento da crise.

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1 Nesse sentido, após consultar uma série de países sobre esse tema, a OCDE considera ideal que eventuais carteis de crise contem com estruturas públicas de governança prevendo pelo menos mecanismos de monitoramento, reavaliação e prazo de finalização. OCDE. Crisis Cartels. OECD Policy Roundtables, Global Forum on Competition, 2011. Disponível em: <http://www.oecd.org/daf/competition/cartels/48948847.pdf>. Acesso em: 31 mar. 2020.

2 Os principais casos em que o Cade enfrentou a questão foram o PA n° 08012.000677/1999-70, que versava sobre acordo de crise entre empresas aéreas e resultou na condenação da Tam, Vasp e Varig, e os Atos de Concentração 8012.004117/1999-67 e 08012.002315/1999-50, que analisaram a formação de acordo da crise do setor de álcool carburante, com a fundação das empresas Brasil Álcool S.A. e da Bolsa Brasileira do Álcool Ltda., na ocasião vetadas e desconstituídas pelo Cade.

3 V. Petição nº 08700.003483/2018-56.