Rafael da Silva Rocha

Na mitologia grega, a Hidra de Lerna era um enorme monstro que tinha corpo de dragão e várias cabeças de serpente. Segundo a lenda, quando se cortava uma cabeça, cresciam duas em seu lugar. A Hidra foi derrotada por Hércules, em seu segundo trabalho. Ao perceber que as cabeças se regeneravam, o herói decidiu mudar de tática. Com a ajuda de um sobrinho, queimou as cabeças logo após o corte. A cabeça do meio, considerada imortal, foi cortada e enterrada com uma pedra. Assim, o monstro finalmente foi morto. 
Sísifo, por sua vez, despertou a fúria dos deuses por enganar a morte, o que o levou a ser punido com um terrível castigo: empurrar uma pedra até o topo de uma montanha, de onde ela rola de volta até o ponto de partida. A exaustiva tarefa deveria ser repetida diariamente, por toda a eternidade.  
Buscando se distanciar de Sísifo e se aproximar de Hércules, o <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/mpf">Ministério Público Federal</a> continua a sua saga para regularizar a cadeia produtiva da pecuária na Amazônia.  
Iniciada no ano de 2009, a estratégia do programa “Carne Legal” consiste basicamente em firmar acordos com os frigoríficos da região amazônica, que se comprometem a não abater gado proveniente de fazendas com irregularidades socioambientais – trabalho escravo, desmatamento ilegal, sobreposição com terras indígenas e unidades de conservação, entre outras.  
Para muitos, a “cabeça imortal” da nossa “Hidra de Lerna” é o monitoramento dos fornecedores indiretos. Afinal, uma fazenda bloqueada poderia simplesmente transferir os animais para outra propriedade que esteja em conformidade com os requisitos dos Termos de Ajuste de Conduta (TACs). Em seguida, os mesmos animais seriam vendidos para os frigoríficos, que não controlam os elos anteriores da cadeia. Esse mecanismo é conhecido como “triangulação” de gado.   
Inicialmente, o MPF atribuiu aos próprios frigoríficos a tarefa de detalhar de que forma (“evolutiva”, “factível” e “gradual”) os critérios do acordo seriam aplicados aos fornecedores indiretos. Não deu certo.   
Passado um tempo, o MPF decidiu estabelecer um “índice de produtividade” de 3 cabeças/ha/ano. Acima disso, a propriedade seria considerada suspeita de “triangulação”, devendo apresentar uma autodeclaração acerca do sistema produtivo adotado, com evidências que justifiquem a produtividade superior ao índice. Essa regra está prevista no “Protocolo de Monitoramento de Fornecedores de Gado da Amazônia”[1], documento que uniformiza critérios e parâmetros para atendimento aos TACs e ao Compromisso Público da Pecuária.  
É importante destacar que os três grandes frigoríficos brasileiros (JBS, Minerva e Marfrig) anunciaram recentemente que estão desenvolvendo sistemas de verificação de fornecedores indiretos, assumindo o compromisso de eliminar o desmatamento de suas cadeias nos próximos anos (até 2025 ou 2030). No entanto, as ferramentas apresentam limitações de escala e dependem de adesão voluntária dos pecuaristas, que ainda resistem em entregar informações sobre seus rebanhos e fornecedores[2].  
De fato, a solução definitiva passa pela rastreabilidade individual dos bovinos, contemplando todas as etapas do ciclo de vida dos animais, do nascimento ao abate. 
Outra novidade introduzida pelo protocolo de monitoramento foi o bloqueio da propriedade por alteração nos limites do Cadastro Ambiental Rural (CAR), quando o mapa anterior apresentar sobreposição com polígono do Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite (PRODES). Evidentemente, a mera exclusão da área desmatada ilegalmente não poderia ser utilizada como justificativa para o desbloqueio da fazenda. Nesses casos, o fornecedor deveria aderir ao Programa de Regularização Ambiental (PRA) ou celebrar TAC/Termo de Compromisso com o MPF, e não retificar o seu cadastro de forma fraudulenta.
Enfim, estamos em uma verdadeira corrida contra o tempo para salvar a Amazônia. Sem poder contar com a astúcia e a ousadia de Sísifo, ou com a força e a inteligência de Hércules, o Ministério Público Federal deve se valer de todos os instrumentos legais para adiar a “morte” da floresta, que parece cada vez mais próxima.   
O ciclo “Diálogos pelo Clima” é uma iniciativa do Fundo Brasileiro para a Biodiversidade (FUNBIO), partindo da premissa de que a atuação de cada um dos profissionais do sistema de justiça e da sociedade civil pode impactar direta ou indiretamente as mudanças climáticas.
No próximo encontro online, serão discutidas alternativas econômicas diante dos desafios territoriais. Excelente oportunidade, portanto, para refletir e debater sobre as estratégias adotadas pelo Ministério Público Federal para regularizar a cadeia produtiva da pecuária na Amazônia.
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[1] Disponível em <a href="https://mpfdrive.mpf.mp.br/ssf/s/readFile/share/412080/1869921423345318285/publicLink/Protocolo%20de%20Monitoramento%20MPF_1.1_2021.pdf">https://mpfdrive.mpf.mp.br/ssf/s/readFile/share/412080/1869921423345318285/publicLink/Protocolo%20de%20Monitoramento%20MPF_1.1_2021.pdf</a>. Acesso em 05/10/2022.<span class="EOP SCXW160808439 BCX0" data-ccp-props="{&quot;201341983&quot;:0,&quot;335551550&quot;:6,&quot;335551620&quot;:6,&quot;335559685&quot;:0,&quot;335559731&quot;:0,&quot;335559739&quot;:0,&quot;335559740&quot;:240,&quot;335559991&quot;:340}"> 
[2] Para mais informações, acesse o Monitor #16, boletim da ONG Repórter Brasil que divulga estudos sobre cadeias produtivas. Disponível em <a href="https://reporterbrasil.org.br/wp-content/uploads/2022/09/220902-Monitor-Pecu%C3%A1ria-PT-06.pdf">https://reporterbrasil.org.br/wp-content/uploads/2022/09/220902-Monitor-Pecu%C3%A1ria-PT-06.pdf</a>. Acesso em 05/10/2022.<span class="EOP SCXW112243855 BCX0" data-ccp-props="{&quot;201341983&quot;:0,&quot;335551550&quot;:6,&quot;335551620&quot;:6,&quot;335559685&quot;:0,&quot;335559731&quot;:0,&quot;335559739&quot;:0,&quot;335559740&quot;:240,&quot;335559991&quot;:340}">

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JOTA

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