Mariana Saragoça

Julia Barker

Para assegurar o cumprimento das ambiciosas metas de universalização do setor de saneamento (99% da população com fornecimento de água potável e 90% de tratamento de esgoto até 31 de dezembro de 2033), foi publicado o Decreto nº 10.710/2021, que estabelece a metodologia para a comprovação da capacidade econômico-financeira dos prestadores de serviços públicos de abastecimento de água potável e esgotamento sanitário.
O Decreto não contempla os serviços de limpeza urbana, manejo de resíduos sólidos, drenagem e manejo das águas pluviais, bem como não é aplicável aos prestadores diretos dos serviços de esgotamento sanitário e abastecimento de água, restando submetidos apenas as contratantes de programa (empresas estaduais) e os atuais concessionários. Importa destacar que o decreto não se ocupa em analisar e adequar o conteúdo dos contratos, mas exclusivamente com a adequação para o atingimento das metas previstas pelo Novo Marco Legal do Saneamento (Lei nº 14.026/2020).
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>A metodologia consiste em duas etapas avaliativas, mediante processo a ser conduzido pela entidade reguladora competente (e.g. agências reguladoras estaduais, municipais ou regionais).
Em suma, a primeira etapa traduz-se na aferição da “fotografia atual” do prestador, momento no qual deverá ser comprovado o cumprimento dos índices referenciais mínimos<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> dos indicadores econômico-financeiros do grupo econômico ao qual pertence o prestador. Devem ser apresentadas, para fins de comprovação, as demonstrações contábeis consolidadas do grupo econômico, referentes aos últimos cinco exercícios financeiros já exigíveis e devidamente auditados.
A segunda etapa possui caráter prospectivo, devendo o prestador comprovar a adequação dos estudos de viabilidade e do plano de captação de recursos<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>. Ao passo que os estudos de viabilidade deverão demonstrar a estimativa dos investimentos necessários para o atendimento das metas de universalização, o plano de captação deverá capturar o planejamento do prestador para cumprir com as metas.
Nos termos do art. 6º do Decreto, o critério adotado para análise dos estudos de viabilidade é que o fluxo de caixa global tenha valor presente líquido igual ou superior a zero – de forma a garantir que o operador possua condições mínimas de buscar financiamentos no mercado e cumprir os marcos da universalização –  por meio de capital próprio ou de terceiros.
De forma geral, os estudos de viabilidade deverão ser compostos pela estimativa do investimento global e pelo fluxo de caixa global esperado, estando compatíveis com as previsões contidas na minuta de termo aditivo. Enquanto o texto permite a repactuação tarifária como baliza, é vedada a ampliação do prazo de vigência de contratos de programa, a amortização de capital de terceiros e a amortização de bens reversíveis em prazo superior ao do instrumento jurídico.
<blockquote class="jota-article__eye">Ao final do processo de comprovação pelo prestador dos serviços, o efeito será a celebração de aditamento aos contratos vigentes, com a incorporação das metas de universalização.</blockquote>
Os prazos para a comprovação da viabilidade econômico-financeira são bastante arrojados, devendo as empresas apresentarem até 31 de dezembro de 2021 o requerimento e o processo integralmente concluído até 31 de março de 2022.
Em estudo recente<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, a análise dos indicadores financeiros demonstrou que 42% das companhias estaduais não teriam a capacidade econômico-financeira atestada pelos critérios adotados para a primeira etapa, sendo que, do universo de companhias analisadas, 23% atenderam aos critérios para dois dos indicadores, 12% para três dos indicadores e 8% para um dos quatro indicadores.
Fato é que as problemáticas históricas de governança, regulação e má gestão são indicativos fortes dos obstáculos a serem enfrentados pelas companhias estaduais durante o processo de comprovação e adequação das metas nos contratos atualmente vigentes.
É possível extrair da legislação que as consequências da não comprovação de capacidade são distintas para os contratos de programa e para os contratos de concessão atualmente em vigor. Isto é, a não comprovação em contratos de programa importará na irregularidade do instrumento jurídico, enquanto o tratamento previsto para os contratos de concessão será a não celebração de aditivo.
Com fulcro na redação dada pelo novo marco, os contratos de concessão permanecerão inalterados nos moldes licitados e o titular deverá buscar alternativas para o atingimento das metas (i.e. prestação direta, licitação complementar ou reequilíbrio econômico-financeiro). De toda forma, resta claro que a comprovação econômico-financeira não terá o condão de convalidar instrumentos jurídicos de natureza precária.
Não obstante, a Lei nº 14.026/2020 e o Decreto 10.710/2021 determinam algumas “válvulas de escape” para a comprovação da capacidade econômico-financeira das CESBs (sociedades de economia mista ou autarquias).
Com efeito, haverá um fast-track e a capacidade será presumida quando forem cumpridos os seguintes requisitos: (i) autorização legislativa para a desestatização, apresentada até 31.12.2022; (ii) requerimento apresentado pelo controlador, mediante apresentação de comprovação da contratação de estudos necessários para a desestatização; (iii) atendimento às metas de universalização previstas nos contratos de concessão que substituirão os contratos de programa a serem celebrados em conjunto com a desestatização; e (iv) realização de processo de desestatização compatível com as estruturas de prestação regionalizada e com conclusão até 31 de março de 2024.
A despeito da incidência nacional do Decreto – que estabelece diretrizes gerais e critérios  básicos  – o cenário ainda é de indefinição no que tange à convivência interfederativa e a atuação que será protagonizada pelas agências subnacionais.
Um ponto de incerteza que permanece após a publicação do Decreto, por exemplo, refere-se aos procedimentos que serão adotados pelas agências reguladoras na hipótese de prestadores que cumpram os requisitos da primeira fase, mas tenham seus estudos de viabilidade e/ou planos de captação da segunda fase considerados inadequados pelo regulador. Ainda não é possível concluir se haverá espaço de negociação ou reavaliação do material submetido.
No que diz respeito à atuação da ANA (Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico), o Decreto nº 10.710/2021 dispôs sobre o alcance (limitado) da atuação da Agência.
Em linhas gerais, (i) caberá ao prestador submeter à ANA cópia do requerimento de comprovação de capacidade financeira; (ii) o processo administrativo  de comprovação da capacidade econômico-financeira submetido à ANA será disponibilizado em sítio eletrônico pela Agência; e (iii) a ANA atuará como mediadora caso existam conflitos de entidades reguladoras distintas quanto a um mesmo prestador de serviço.
Ainda que não possua competência sancionatória, é possível aferir certa função fiscalizatória para analisar a forma e os critérios adotados pelas agências regionais no processo de comprovação de capacidade – não havendo conclusão, até o presente, quanto ao enforcement que será atribuído à agência.
Outro ponto sob o qual pairam dúvidas está relacionado ao cronograma previsto para implementação da regionalização. Apesar do artigo art. 10-B da Lei nº 11.445/2007 ter previsto a publicação do decreto referente à metodologia para comprovação da capacidade econômico-financeira em 90 dias contados da publicação do Novo Marco do Saneamento (31 de outubro de 2020), o Decreto nº 10.710/2021 foi publicado com sete meses de atraso, em 01 de junho de 2021.
Paralelemente, os Estados têm até 15 de julho de 2021 para definir os blocos regionais para implementação da prestação regionalizada. Nessa linha, não é possível descartar um eventual risco de descasamento com as datas previstas para conclusão da regionalização e da comprovação econômico-financeira. Será preciso diálogo entre os titulares, prestadores e poderes concedentes com o fito de evitar um cenário de insegurança jurídica que possa impactar os investimentos.
Para o efetivo sucesso do Novo Marco do Saneamento, é precípuo que os reguladores consigam ser suficientemente técnicos e criteriosos, analisando de forma factível os estudos de viabilidade e captação dos prestadores com vistas a garantir a saúde financeira dos prestadores e os investimentos futuros.
Outro ingrediente cardeal para o sucesso dos projetos do setor – bem como para o atingimento das metas de universalização – é assegurar que a avaliação econômico-financeira ocorra de forma periódica e dinâmica, com monitoramento e acompanhamento efetivos, matéria que deverá  ser regulamentada como norma  de referência  da  ANA, conforme previsto na Agenda Regulatória da Agência.
O caminho aponta para um desfecho positivo, mas ainda há muito o que se trilhar para alcançar o redesenho dos contratos, maior competitividade e harmonização da regulação no setor de saneamento.
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<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Nos termos do Decreto, o prestador dos serviços deve atender aos seguintes referenciais mínimos: (i) margem líquida sem depreciação e amortização superior a zero; (ii) grau de endividamento inferior ou igual a um; (iii) retorno sobre patrimônio líquido superior a zero; e (iv) suficiência de caixa superior a um.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> O Plano de Captação de Recursos deve conter: (i) indicação dos agentes financeiros para obtenção de recursos; (ii) estratégia de captação, com fontes próprias ou de terceiros; (iii) fases do financiamento ou integralização de capital; (iv) os prazos e a forma de alocação dos recursos; e (v) o fluxo de pagamento dos recursos captados, conforme aplicável.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> CENTRO DE ESTUDOS EM REGULAÇÃO E INFRAESTRUTURA (FGV CERI). Comentários ao Decreto nº 10.710/2021, que estabelece a metodologia para comprovação da capacidade econômico-financeira dos prestadores de serviços públicos de abastecimento de água potável ou de esgotamento sanitário. [S. l.], 2021. Disponível em: &lt;https://ceri.fgv.br/home&gt;. Acesso em: 24 de junho de 2021. O estudo utilizou a mediana dos dados de 2015 a 2019 com base no SNIS-2021. Isto é, não foram considerados os dados a serem efetivamente utilizados pelas companhias para a comprovação da capacidade econômico-financeira, tendo em vista não são referentes aos cinco últimos exercícios financeiros (2016 a 2020), bem como não são auditados.

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JOTA

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