Filippo Lancieri

Caio Mário S. Pereira Neto

Vivemos num tempo com intensa discussão a respeito da aplicação de regras concorrenciais a plataformas digitais. Essa discussão tem exigido reflexões em múltiplos níveis: possível ampliação dos objetivos das leis de defesa da concorrência, emergência de teorias do dano associadas a novos tipos de condutas e concentrações, novas percepções sobre a importância da concorrência potencial, múltiplas discussões processuais a respeito do uso de presunções e de medidas cautelares, entre várias outras.
Dentre essas reflexões, um ponto particularmente relevante diz respeito ao desenho de “remédios” – leia-se: intervenções de autoridades antitruste e/ou regulatórias – para corrigir distorções concorrenciais no ambiente digital. Para lidar com essa lacuna, em <a href="https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3704763" target="_blank" rel="noopener noreferrer">recente artigo acadêmico sobre o tema</a>, procuramos desenvolver uma moldura analítica para facilitar a escolha entre diferentes remédios que podem ser empregados para corrigir distorções em mercados digitais.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>
Partimos do reconhecimento de que, no contexto atual, os remédios antitruste estão interagindo cada vez mais com uma ampla gama de remédios regulatórios e quase-regulatórios. Autoridades de defesa da concorrência e autoridades regulatórias (e.g.  autoridades de proteção de dados pessoais, de regulação de telecomunicações e de regulação financeira) vêm interagindo em múltiplos níveis para <a href="https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/revdireitogv/article/view/59453" target="_blank" rel="noopener noreferrer">abrir espaços de competição e proteger esses espaços</a>.
A complexidade desta interação só tende a crescer à medida que as sociedades expandem o uso integrado de ferramentas antitruste e regulatórias para enfrentar as distorções percebidas no mundo digital, como ilustra a <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-digital-markets-act-da-uniao-europeia-um-relatorio-de-progresso-02072021">recente proposta europeia do Digital Markets Act (DMA)</a>. De fato, as  autoridades têm ampliado o seu leque de possíveis intervenções, que podem variar em escopo e intensidade – indo desde intervenções muito focadas  (e.g. <a href="https://g1.globo.com/economia/noticia/booking-decolar-e-expedia-firmam-acordo-com-cade-para-por-fim-a-exigencia-sobre-preco-de-diaria-em-hoteis.ghtml" target="_blank" rel="noopener noreferrer">limitações ao uso de cláusulas de paridade de preços</a>) até a regulamentação de setores inteiros (e.g. <a href="https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/openbanking" target="_blank" rel="noopener noreferrer">open-banking</a> no setor financeiro) ou mesmo de regulações que afetam múltiplos setores (e.g. <a href="https://www.gov.br/anpd/pt-br" target="_blank" rel="noopener noreferrer">regulação de dados pessoais</a>).
<blockquote class="jota-article__eye">Como as autoridades têm mais opções de remédios, correm o risco de impor intervenções ou excessivamente amplas ou excessivamente estreitas, as quais podem diminuir – ao invés de aumentar – o bem-estar geral.</blockquote>
Estes riscos são particularmente elevados em mercados complexos e em rápida evolução, onde as assimetrias de informação são abundantes, como ocorre em mercados digitais. Assim, as autoridades devem estar especialmente atentas ao custo relativo de intervenções equivocadas.
Para ilustrar, vale tomar como exemplo as cláusulas de paridade de preços utilizadas por agências de viagem online (i.e. cláusulas que exigem que hotéis não ofertem preços melhores em plataformas concorrentes). Ao analisar se essas cláusulas são capazes de distorcer a concorrência e a entrada de novos agentes econômicos no mercado, diferentes autoridades optaram entre: permitir o uso dessas cláusulas (e.g. EUA), intervir para restringir seu escopo quando utilizadas por empresas dominantes (e.g. Brasil, Itália, França, Suécia), ou proibir totalmente estas cláusulas para um determinado setor (e.g. Alemanha).
Se considerarmos que essas cláusulas podem ser usadas para impedir um certo “efeito-carona” (free riding) – i.e. a possibilidade de usuários de agências de viagens online pesquisarem e localizarem o hotel numa plataforma, mas fecharem negócio em outra na qual o preço anunciado seja menor – sua proibição integral poderia ser considerada excessiva, podendo inclusive prejudicar os consumidores e a concorrência no mercado.
Por outro lado, se a justificativa de proteção contra o “efeito-carona” for considerada insuficiente, as intervenções para simplesmente reduzir o escopo das cláusulas serão demasiadamente limitadas e levarão igualmente a perdas de bem-estar, sendo melhor proibir integralmente tais cláusulas. Nesse tipo de situação, as autoridades devem fazer ponderações que ajudem a identificar quais intervenções são mais adequadas para lidar com as distorções identificadas, calibrando a sua intensidade.
A moldura analítica para lidar com custos de erro na tomada de decisões é amplamente conhecida na literatura de Direito e Economia e tem sido muito utilizada em cenários decisórios como esses, em que há um leque de opções em aberto. Desde o <a href="https://chicagounbound.uchicago.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=2152&amp;context=journal_articles;" target="_blank" rel="noopener noreferrer">artigo seminal do Juiz Easterbrook</a>, que aplicou esse tipo de análise ao direito antitruste, a principal preocupação tem sido os possíveis erros das autoridades e cortes na definição de infrações concorrenciais num contexto de incerteza sobre o seu real impacto na economia.
A discussão tem se dado em torno da questão de se a aplicação de regras rigorosas pode levar a punições excessivas (erros de Tipo I – over-enforcement) ou se regras mais brandas podem levar a uma punição insuficiente ou a uma não punição de violações antitruste (erros de Tipo II – under-enforcement).
Este debate em torno da caracterização das infrações e de como evitar os custos de intervenções potencialmente equivocadas ao aplicar as leis antitruste nos mercados digitais é extremamente importante. Inclusive, <a href="https://www.yalelawjournal.org/feature/introduction-unlocking-antitrust-enforcement" target="_blank" rel="noopener noreferrer">alguns acadêmicos têm defendido maior cuidado com erros Tipo II</a> no contexto atual. Entretanto, está ausente desta discussão o fato de que pode haver erros em outros níveis de tomada de decisão, para além da própria definição da existência ou não de infração.
Este é exatamente o caso no que tange ao desenho e implementação de remédios no âmbito digital. Considerando a incerteza inerente a esses mercados dinâmicos e o número crescente de remédios antitruste e regulatórios disponíveis (ou em discussão), mesmo que as autoridades e os tribunais tomem decisões corretas na caracterização de infrações (i.e. acertem na decisão de intervir ou não), elas podem acabar impondo remédios inadequados para resolver o problema identificado, de modo que os próprios remédios acabem gerando soluções sub-ótimas ou mesmo danos ao consumidor.
Isto significa que há um potencial efeito composto dos erros de decisão incluindo equívocos em dois planos: (i) na decisão de intervir ou não e (ii) na definição do escopo correto da intervenção imposta para remediar determinado problema concorrencial. Assim, é importante compreender que o próprio desenho de remédios é, em si mesmo, um campo aberto a erros Tipo I e Tipo II, sendo fundamental minimizar também esses erros.
Nesse contexto, entendemos que, ao definir o escopo dos remédios concorrenciais, as autoridades devem levar em conta dois fatores: (i) a certeza de que a violação ocorreu ou de que a conduta afeta negativamente o bem-estar; e (ii) o quão prejudicial é a conduta para a concorrência. Por exemplo, se as autoridades tiverem certeza de que ocorreu um comportamento anticompetitivo (por exemplo, a conduta é bem conhecida por restringir a competição, não tem uma justificativa econômica clara e produz impacto negativo sobre a eficiência) e acreditam que foi muito prejudicial ao mercado (por exemplo, permitiu ou manteve a monopolização de um determinado setor), então devem impor remédios mais rigorosos, eventualmente aceitando correr o risco de erros de over-enforcement (erro Tipo I) no desenho do remédio.
O contrário também é verdade: se as autoridades estão introduzindo novas teorias de dano e assumindo o risco de proibir uma conduta com efeitos relativamente ambíguos (erro Tipo I na caracterização de infração), elas deveriam optar por intervenções mais restritas e menos arriscadas – caso contrário, arriscariam um efeito composto de dois erros de over-enforcement: uma definição excessivamente ampla de infração, cumulada com remédios excessivamente abrangentes. Em termos práticos, isto significa combinar a percepção de um risco menor de over-enforcement na caracterização de uma infração com maior disposição para assumir riscos de over-enforcement na aplicação de remédios, e vice-versa.
Pensar na concepção de remédios desde uma perspectiva que minimize deste “risco composto” é útil porque torna claras duas importantes diferenças entre a caracterização de infrações e a implementação de remédios.
A primeira é que a concepção de remédios é um processo não binário. A caracterização  de violações ou de decisões de intervenção ex ante em mercados geralmente são escolhas binárias onde os Autoridades assumem riscos discretos de erro: violação/intervenção ou não-violação/não-intervenção. A aplicação de remédios, entretanto, está mais próxima de refletir uma distribuição contínua de possibilidades que podem e devem ser moduladas em intensidade: as autoridades podem escolher uma ou algumas soluções dentre uma gama de intervenções disponíveis para corrigir determinado problema concorrencial.
Uma segunda consideração conexa, mas distinta, é que exatamente porque a concepção de remédios não é uma atividade binária, as intervenções podem e devem ser adaptadas ao longo do tempo. A criação de procedimentos de revisão dos remédios deveria permitir às autoridades ajustar remédios excessivamente amplos ou excessivamente restritos,  à medida em que elas obtêm melhores informações sobre os impactos de suas intervenções nos diferentes mercados afetados  pelo remédio. Exatamente porque refletem uma escolha dentro de uma gama contínua de possibilidades, um processo de adaptação de remédios não deve jamais ser visto como um fracasso da intervenção, mas deve sim ser compreendido como o resultado de um processo de aprendizado e redução de assimetrias informacionais que permite a minimização de erros no desenho de políticas públicas.
Em suma, a aplicação desta moldura analítica de custos dos erros, que identifica a possibilidade de um erro composto em dois estágios (identificação da infração e desenho dos remédios), demonstra como a implementação de remédios antitruste em mercados digitais é em si mesmo um processo complexo, exercido sob grande incerteza. Também ajuda a demonstrar porque a concepção de intervenções não deve se limitar às páginas finais de uma decisão do CADE, mas preferencialmente ser entendida como um processo que exigirá recursos dedicados a garantir não apenas um desenho inicial adequado, mas também a supervisão e adaptação ao longo do tempo, na medida que as autoridades compreendam melhor como suas intervenções impactam as condições de mercado.
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JOTA

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