Gesner Oliveira
Professor da FGV, sócio da GO Associados, ex-presidente do Cade, membro da Academia Internacional de Direito e Economia e ex-secretário de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda
Têm crescido os rumores de uma possível fusão entre Gol e Azul no mercado aéreo brasileiro. As empresas têm estreitado laços e, há pouco mais de um mês, anunciaram acordo comercial de codeshare. Segundo a imprensa, tal parceria já acendeu sinal amarelo no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), o qual solicitou informações às partes para melhor compreender o caso. Mas a fusão em si reúne todos os ingredientes para um sinal vermelho.
Não faltam evidências de que uma concentração desta ordem elevaria preços das passagens aéreas, reduziria incentivos para inovação e limitaria as opções do consumidor. Para se ter uma ideia, nos Estados Unidos, país também de dimensões continentais e com mercado menos concentrado e maior competição de outros modais, as autoridades antitruste já levantaram preocupações e bloquearam operações muito menores.
Um exemplo neste sentido foi a tentativa de aquisição, no ano passado, da Spirit Airlines pela JetBlue Airways. Assim como Gol e Azul, as empresas americanas competem em centenas de rotas, servindo milhões de passageiros. A diferença é que lá a concorrência é mais acirrada: Delta, American, Southwest e United, somadas, possuem cerca de 70% do mercado aéreo americano.
A aquisição da Spirit levaria a JetBlue a no máximo algo em torno de 10% desse mercado. Mas já foi suficiente para a reprovação por parte da divisão antitruste do Departamento de Justiça (DoJ), um dos órgãos americanos responsáveis pela defesa da concorrência naquele país.
De acordo com o DoJ, a operação prejudicaria os consumidores, especialmente aqueles mais sensíveis a preços, por eliminar a rivalidade entre as empresas (head-to-head competition), inclusive em rotas ainda não operadas pela Spirit. Em sua decisão, a autoridade americana destacou que não só a JetBlue muito provavelmente elevaria preços pós-aquisição, como as demais companhias teriam maior facilidade para coordenação. Por fim, destacou que a operação JetBlue/Spirit reduziria opções do consumidor e capacidade no mercado, além de prejudicar os incentivos à inovação.
Caso de 2021 também envolvendo a JetBlue, desta vez com a American Airlines, evidencia a sensibilidade do mercado aéreo a concentrações. O conjunto de acordos entre as duas empresas na época, chamado de Northeast Alliance, contemplava cerca de dois terços das operações da JetBlue e consolidava as operações das companhias nas cidades de Boston e Nova York, em quatro importantes aeroportos: Boston Logan, JFK, LaGuardia e Newark. Se combinadas, a participação de mercado das empresas que integravam aquela aliança resultaria em 22,4%.
Tais acordos também foram bloqueados pelo DoJ, que mostrou preocupação tanto nos aeroportos diretamente afetados, como em toda a malha aérea das empresas. O argumento se baseou no fato de que as companhias iriam combinar toda sua estratégia de planejamento, desde quais rotas operar até as receitas obtidas nos quatro aeroportos.
Na visão da autoridade, isso eliminaria incentivos de competir em outros estados americanos. O DoJ entendeu ainda que novas entradas não eram prováveis, eficiências oriundas dos acordos não superavam seus efeitos negativos, os remédios propostos não eram suficientes e mesmo a Covid-19 não representava justificativa para causar danos aos consumidores.
Os mercados domésticos na Europa são menos comparáveis ao Brasil do que os Estados Unidos, em grande parte devido às menores distâncias e à extensa rede ferroviária. Lá o modal serve como alternativa para muitas das rotas aéreas, o que é inviável no caso brasileiro. Ainda assim, mesmo com maior pressão competitiva, merece destaque caso recente envolvendo o grupo IAG – que detém a Iberia e a Vueling e lidera o mercado aéreo na Espanha – e a Air Europa, terceira maior companhia espanhola.
No início de agosto, o IAG anunciou, pela segunda vez em menos de quatro anos, a desistência em adquirir a Air Europa, tendo em vista que o conjunto de remédios propostos não foram capazes de endereçar os riscos identificados pela Comissão Europeia.
De acordo com a Comissão, a partir de seu hub em Madri, as duas companhias são fornecedores-chave de conectividade tanto dentro da Espanha quanto para o restante da Europa e as Américas. Dessa forma, após detalhada análise, concluiu que a operação causaria importantes efeitos negativos na concorrência, especialmente nas rotas em que as empresas competem diretamente. Dentre os efeitos destacam-se os prováveis aumentos de preço e redução na qualidade dos serviços. Tal como em 2021, o IAG apresentou remédios que foram considerados insuficientes diante dos riscos concorrenciais.
O cenário é muito mais problemático no mercado aéreo brasileiro. A começar pela estrutura de mercado: de acordo com dados da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), Gol (32,3%), Azul (30,5%) e Latam (36,3%) detinham 99,1% do mercado de passageiros pagos em 2023.
Uma eventual fusão entre Gol e Azul, portanto, levaria o mercado a um duopólio, tendo a empresa líder quase 63% do mercado, quase o dobro da Latam e mais de seis vezes a participação combinada de JetBlue e Spirit que gerou reprovação nos Estados Unidos. Some-se a isso o fato de que novas entradas no Brasil são pouco prováveis e seriam certamente insuficientes para exercer pressão sobre a empresa líder resultante.
Um risco relevante de eventual fusão entre Gol e Azul, tal como levantado pelo DoJ nos casos citados, seria o aumento do preço de passagens aéreas. O tema já tem preocupado o governo federal devido aos impactos sobre o IPCA e foi objeto de análise recente do Departamento de Estudos Econômicos do Cade.
Em documento de trabalho publicado em 2023, o departamento avaliou os impactos da operação GOL/Webjet, notificada em 2011 e aprovada em 2012. Na época, a Webjet exercia um papel tanto de concorrente efetiva quanto potencial da Gol, cenário em que ambas as empresas atuavam em dois aeroportos conectando uma dada rota.
Os resultados apontaram para elevação da tarifa média da Gol no período pós-operação, em particular nas rotas em que havia ameaça de entrada por parte da Webjet. Tais aumentos variaram de 7,68% a 16,42%. Segundo o próprio Cade, o exercício sugere que a eliminação de um concorrente potencial pode resultar em redução das restrições competitivas da empresa fusionada, criando incentivos para aumentos de preço e redução do bem-estar do consumidor.
É evidente, portanto, que uma operação entre Gol e Azul seria problemática. Se transações recentes muito mais simples tanto nos EUA quanto na Europa, onde há mais concorrência, levantaram preocupações, o que dirá de operação envolvendo duas das três maiores companhias aéreas brasileiras. Difícil imaginar que o Cade encontre remédios capazes de compensar os danos à concorrência e ao bem-estar do consumidor no caso brasileiro.