Eric Hadmann Jasper

Bárbara De' Carli Cauhy

A prática de preços predatórios é um dilema e um mistério. Dilema porque a teoria econômica e jurídica ensina que a estratégia de predação por preço pode, em tese, constituir ilícito de caráter exclusionário, mas reduções agressivas de preços são também os benefícios da concorrência mais tangíveis aos consumidores. Já o mistério é o seguinte: já houve alguma condenação por preço predatório no Brasil?
Sobre o dilema, melhor deixarmos em mãos mais habilidosas de economistas e juristas neobrandeisianos. Neste artigo resolveremos o mistério e, spoiler, sim já houve (ao menos uma) condenação no Brasil<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Antes de passarmos aos fatos, precisamos voltar ao Brasil do início da década de 1980, pois foi exatamente nessa época que encontramos o que Nassim Taleb chamaria de cisne negro do antitruste brasileiro. O Brasil era um país bem diferente. A lei de defesa da concorrência em vigor era a <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1950-1969/l4137.htm">Lei 4.137/62</a>. A presidência era ocupada por João Figueiredo, o último presidente da ditadura militar. O governo militar intervinha intensamente no mercado, por meio do controle de preço realizado pelo Conselho Interministerial de Preços (CIP) e implementado por órgãos como a Superintendência Nacional do Abastecimento (Sunab). O Estado estava primordialmente ocupado com o controle de preços, evitar desabastecimento e desenvolvimento industrial. O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/cade">Cade</a>) não tinha a relevância econômica e política atual.
Em 10 de dezembro de 1980, quando ainda vivíamos o luto do assassinato de John Lennon a tiros nas ruas de Nova York e pouco antes da morte de Nelson Rodrigues aos 68 anos, a empresa Nortox Agro Química S.A (Nortox) fez uma denúncia de dumping contra a Central de Cooperativas de Produtores Rurais do Rio Grande do Sul Ltda. (Centrasul) e a empresa Defensa – Indústrias de Defensivo S.A (Defensa)
A Nortox era empresa sediada em Arapongas (PR) e fabricante do herbicida trifluralina, essencial nas lavouras de algodão, feijão e outras. A representante alegou que a Defensa – sociedade criada em 1978, pela associação de diversas empresas, entre elas, empresa subsidiária da Centrasul – teria passado a industrializar a trifluralina com matérias-primas de propriedade da Centrasul e sob encomenda desta por preços abaixo dos custos.
Com intuito de comprovar a referida conduta, a Nortox comparou os preços da trifluralina e destacou que, enquanto seu preço mínimo era de 144 cruzeiros, a Centrasul e a Defensa vendiam o mesmo produto por apenas 88 cruzeiros. Afirmou, na sequência, que “[s]e a Representante tem seus preços disciplinados pelo Ministério da Agricultura e ratificados pelo CIP, é evidente que tais preços são justos e corretos. Vendendo as Representadas seus produtos por preço tão inferior, como exposto acima, é evidente que estão praticando preço abaixo do custo”.
Segundo a Nortox, tal conduta configuraria dumping e, por meio dela, a Centrasul e a Defensa teriam (i) criado dificuldades ao seu funcionamento e desenvolvimento e, também ao de outras empresas no ramo (art. 2º, item I, alínea “g” da Lei 4.137/62) e (ii) provocado condições monopolísticas, com a retira de concorrentes do mercado por meios artificiosos de oscilações de preços (art. 2º, inciso III, alínea “d”). A venda abaixo do custo, de acordo com a Noxtox, teria sido possível em razão de desvios de créditos subsidiados pelo governo federal destinados à agricultura e um empréstimo do Banco do Brasil de 4 bilhões de cruzeiros.
A defesa das representadas, por sua vez, apresentou os fatos de forma bem diferente. De acordo com elas, o ponto fundamental da representação da Nortox está relacionado à matéria-prima da trifluralina: o dinitro. Até 1979, quando a Centrasul começou a produzir o dinitro, a Nortox possuía o monopólio de fornecimento desse insumo. De acordo com as representadas, a denúncia da Nortox teria por “fundamento o seu desespero, em virtude de ter perdido o monopólio na produção de dinitro no Brasil, e verificar a sua incapacidade de concorrer no mercado da trifluralina, pela sua inoperância funcional". Além disso, as representadas defenderam que a Nortox teria “mentido” sobre os preços de trifluralina das representadas e sobre seus próprios preços e que a Centrasul nunca vendeu trifluralina por preços menores do que o custo de produção.
A instrução desse caso contou com oitivas de testemunhas, cópias de depoimentos e debates da Comissão de Agricultura e Política Rural da Câmara dos Deputados, variadas matérias de jornais, entre outros. Contudo, o único ato instrutório relevante para decisão do Cade foi uma perícia contábil, cujo laudo foi juntado aos autos em 7 de novembro de 1983.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>
A referida perícia mereceria maior aprofundamento, contudo no presente espaço destacamos, em primeiro lugar, os peritos responsáveis, que aqui apelidamos carinhosamente de “avôs do DEE”, os srs. Alberto Almada Rodrigues, economista e contador, à época professor titular da UFRJ, e Jayme de Mello Fonseca, contador e oficial da Marinha de Guerra.
Além disso, o laudo pericial, que respondeu 41 quesitos formulados pela Procuradoria Geral do Cade e 13 pelas partes, já começa informando que os cálculos apresentados no decorrer do laudo não eram confiáveis porque as investigadas não adotavam sistema de custo integrado a contabilidade, ou seja, não possuíam dados contábeis seguros e exatos. Outros três pontos merecem destaque:
<ul>
<li>Ausência de venda de trifluralina abaixo do custo pelas representadas. No quesito 8, questionou-se se a venda de 1.101.497 litros de trifluralina feita pela Centrasul à Defensa em 1980 teria sido realizada a preço abaixo do custo. O laudo pericial concluiu que “aparentemente” não. De forma semelhante, questionou, no quesito 9, se a venda de trifluralina pela Defensa à Cooperativa Agrícola de Cotia em 1980 teria sido realizada por preço abaixo do custo. Os peritos, mais uma vez, responderam que “aparentemente” não.</li>
<li>Conceito de dumping. Na resposta ao quesito 1 das representadas, o laudo pericial sustentou que a expressão dumping possui duplo significado. O primeiro estaria inserido no contexto do comércio internacional e não se aplicava ao caso. O segundo, de acordo com os peritos, se caracterizaria como “[...] discriminação de preços, o aviltamento do preço na prática da concorrência desleal, podendo, eventualmente, até ser inferior ao custo, não sendo, contudo, a venda abaixo do custo uma condição essencial da política” (g.n.). Assim, concluiu o laudo pericial que “fora do contexto do comércio internacional [...] vê-se que dumping é termo que se emprega para designar a venda de um produto a diferentes preços em mercados distintos”.</li>
<li>Existência de prática de dumping pela Centrasul e Defensa contra a Nortox. Em resposta ao quesito 2 das representadas, entendeu-se que "[e]ncarada sob o ponto de vista de política de discriminação de preços dentro do conceito acima enunciado de venda de um produto a diferentes preços em mercados distintos, as operações realizadas pelas denunciadas podem ser caracterizadas como dumping, isto porque a venda a preço inferior ao custo, bem como o volume ou quantidades de vendas, não são condições essenciais para expressar a política discriminatória de preços".</li>
</ul>
Explicando em maiores detalhes os pontos destacados acima, observa-se que o laudo pericial chega a duas conclusões aparentemente opostas: (i) ausência de venda de trifluralina abaixo do custo de produção pela Centrasul e Defensa e (ii) existência de prática de dumping.
As duas conclusões do laudo coexistem sem contradição somente porque o conceito de dumping defendido pelos “avôs do DEE” não se relacionava com a venda abaixo por preço abaixo do custo. Diferente da análise atual, para os “avôs do DEE”, a configuração da prática de dumping se verifica com constatação de uma política de discriminação de preços.
Vale destacar que à época, apesar de já ter sido publicado no âmbito acadêmico, o teste de Areeda-Turner ainda não havia sido aplicado em um caso concreto. O primeiro processo com aplicação do Areeda-Turner, nos Estados Unidos, o Matsushita v. Zenith, aconteceu somente em 1986 – três anos depois do caso brasileiro em análise.
A decisão do Cade foi emitida em maio de 1987<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> e, como adiantado, concluiu-se pela “configuração de abuso do poder econômico através da venda de herbicida por preço inferior ao real, provocando condições monopolísticas” (g.n.).
Para chegar a essa decisão, o então presidente do Cade, Weter Rotunno Faria, extraiu as seguintes conclusões da perícia: (i) a Centrasul praticou preços abaixo do seu “valor real”, ao não incluir custos financeiros, como correção monetária, no valor das vendas de trifluralina; (ii) a Centrasul utilizou de isenções tributárias ao importar os equipamentos industriais o que também reduziu os preços para níveis inferiores ao reais e (iii) a Defensa se beneficiou de preços inferiores aos praticados pelo mercado, tendo chegado a tais preços por práticas da Centrasul que não seriam repassáveis.
Apesar de a decisão ter se pautado no laudo pericial, verifica-se que o conceito de dumping utilizado pelos “avôs do DEE” e pelo presidente não foi o mesmo. A decisão concluiu pela existência de dumping por verificar a prática de preços abaixo do “valor real” e não por apurar a existência de política discriminatória, tal como o laudo. Ambos, entretanto, concordam não ser necessário para caracterização do dumping a venda por preços abaixo do custo.
Por fim, as representadas foram multadas no valor equivalente a mil vezes o valor de referência vigente no país e à cessação da prática considerada abusiva, exigindo a adoção de “preços reais”.
Observa-se, portanto, que o cisne negro do antitruste que, até agora, era um verdadeiro mistério é bastante peculiar. Além de percorrer exatamente o momento da transição do regime militar para a retomada democrática, coabitar a política de controle de preços e subsistir em momento de baixa relevância na defesa da concorrência no Brasil, o caso adota o curioso parâmetro de preço abaixo “preço real” ou do “preço de mercado” e não do hoje tradicional “preço inferior ao custo”.
*
Os autores agradecem, em primeiro lugar, à servidora Tanise Brandão Bussmann pela gentileza de ter localizado e compartilhado conosco os autos do processo tratado no presente texto. Agradecemos também ao Caio Godoy Godinho, o “arqueólogo-jurídico” que fez a primeira análise dos presentes autos.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Processo Administrativo n. 65/1981.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Destaca-se que o processo administrativo passou por uma discussão de competência do Cade em se avaliar condutas anticompetitivas de cooperativas. Em 19.3.1982, a Procuradoria pediu o arquivamento do processo com base em decisão anterior do Cade que decidiu ser do Incra a competência para intervir em cooperativas. Na sequência, o Incra se manifestou e disse ser do Cade a competência para decidir sobre o abuso do poder econômico. Diante disso, a Procuradoria “desistiu” do seu pedido de arquivamento e deu prosseguimento ao feito.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Aos curiosos, nesses quatro anos que se passaram entre o laudo pericial e a decisão, verificou-se intensas discussões midiáticas entre as empresas, por meio de jornais, que inclusive resultou em queixa-crime por difamação; discussões sobre inclusão de representados no polo passivo, acusações de desativação do Cade pelo, então Presidente, João Figueiredo: “[q]uando estava para ir a julgamento, o General Figueiredo desativou o CADE permitindo caducar os mandatos dos juízes, e lá ainda está o processo”; pedidos ao Ministro da Justiça para reativação do processo.

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JOTA

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