Glauco Salomão Leite

O ministro Luís Roberto Barroso determinou ao Senado a abertura de uma CPI para investigar omissões do Governo Federal no enfrentamento da pandemia. Proposta pelos senadores Jorge Kajuru e Alessandro Vieira, a ação (MS n. 37.760/DF) se baseia no fato de que, embora seus autores tenham cumprido todos os requisitos necessários à abertura da CPI – quórum de 1/3 dos membros da respectiva da Casa Legislativa, fato determinado e prazo certo -, tem havido resistência por parte do Presidente do Senado em adotar as providências para a sua efetiva instalação. Diante dessa recalcitrância, a liminar do ministro Barroso apenas reafirmou antigo posicionamento do Supremo Tribunal Federal (STF), segundo o qual existe um direito público subjetivo das minorias parlamentares na abertura de uma CPI, não podendo sua instalação ser condicionada à vontade da maioria, nem à discricionariedade do Presidente da Casa. Trata-se, como se vê, de um easy case.
Apesar disso, o Presidente Jair Bolsonaro reagiu de maneira contundente contra o ministro Barroso, afirmando que lhe “falta coragem moral” e “sobra ativismo judicial”. Disse, ainda, que a liminar refletia uma “jogadinha casada” e “politicalha” entre o Ministro e Senadores visando desgastar o Governo, além de buscar desqualificá-lo com uma série de insinuações. Como desdobramento das declarações de Bolsonaro, o senador Carlos Viana (PSD-MG), vice-líder do Governo no Senado, começou a recolher assinaturas para protocolar um pedido de impeachment contra o ministro Barroso. Em seu perfil no Twitter, Carlos Viana afirmou que o “ativismo judicial chegou a um limite perigoso e inconstitucional” e que seria “hora de o Senado dar uma resposta corajosa ao STF”. É curioso que, na mesma semana, o ministro Nunes Marques concedeu liminar monocrática às vésperas da Páscoa para autorizar a realização presencial de missas, cultos e demais atividades religiosas, contrapondo-se ao plenário da Corte, e não recebeu rechaço quanto à prática de ativismo judicial, aí sim claramente existente.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>
Esse episódio da CPI da Pandemia merece atenção não tanto pela fundamentação utilizada pelo ministro Barroso, que não merece reparo algum, mas pela resposta afrontosa por parte do Presidente Bolsonaro e do senador Carlos Viana. Verifica-se, aqui, mais uma forma de ataque antidemocrático a membros da Corte, exprimindo o que venho denominando bullying constitucional<a href="applewebdata://35D6C023-B77F-4E2A-8F09-AFF255B684A4#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.   Não se cuida de ato isolado ou de uma simples e irrefletida manifestação de irritação, e sim de mais uma ocorrência de atos, mesmo verbais, de natureza antiinstitucional.
Ainda durante a campanha presidencial, Bolsonaro manifestou críticas a posições ativistas do STF, defendendo a necessidade de ampliação de seus integrantes de onze para vinte e um membros, de maneira a colocar “dez juízes isentos lá dentro”<a href="applewebdata://35D6C023-B77F-4E2A-8F09-AFF255B684A4#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>. Na mesma linha de interferência política no Tribunal, entrou no radar a tese da revogação da conhecida “PEC da Bengala” (EC n. 88/2015), de maneira a restabelecer a idade de aposentadoria compulsória dos membros da Corte para setenta anos, o que anteciparia a abertura de vagas que seriam preenchidas por indicação de Bolsonaro. No mesmo contexto, vale relembrar a divulgação de vídeo nas redes sociais em que o STF, além de outras instituições como o Congresso Nacional, a OAB e partidos políticos, por exemplo, foi representado como uma hiena que ameaçava o leão patriota e defensor dos interesses nacionais.
O nível dos ataques foi sendo recrudescido, como se viu pelas manifestações populares em prol do fechamento do STF, do Congresso Nacional e pelo retorno do AI-5.   Com a abertura dos inquéritos que investigam a disseminação de desinformações (fake news) por milícias digitais e a realização dos atos contra as instituições democráticas, constatou-se o aumento no número de pedidos de impeachment contra membros da Corte. Convém acrescentar a essa lista os ataques ao ministro Alexandre de Moraes, quando este suspendeu a nomeação de Alexandre Ramagem para o cargo de Diretor-Geral da Polícia Federal – e, mais recentemente, quando determinou a prisão do deputado federal Daniel Silveira pela divulgação de vídeo em que intimidava e ameaçava membros da Corte e seus familiares - ou a publicação de mensagem em rede social pelo Gal. Augusto Heleno, alertando para “consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional” caso o ministro Celso de Mello determinasse a busca e apreensão do aparelho celular do Presidente.
<blockquote class="jota-article__eye">É nesse ambiente de tensionamento impulsionado pelo Governo e seus apoiadores que os desdobramentos da CPI da Pandemia devem ser observados.  O bullying constitucional consiste na estratégia de promover agressões reiteradas e contínuas à Corte.</blockquote>
Tais investidas não se confundem com meras críticas às decisões do Tribunal, às disfunções internas ou ao seu processo decisório. Aliás, análises críticas do funcionamento das instituições, incluindo o STF, são obviamente legítimas e têm sido apresentadas por diversos atores - Academia, imprensa, partidos políticos, OAB, dentre outros – e sem qualquer risco à integridade institucional e à independência funcional. Em regra, tais críticas, quando formuladas em um ambiente democrático e de boa-fé, buscam identificar erros, apontar alternativas e, com isso, aperfeiçoar o próprio Tribunal. O bullying constitucional ultrapassa o questionamento legítimo de alguma prática ou decisão judicial, traduzindo-se como pressão política arbitrária, perpetrada de maneira incessante e com objetivo de intimidar membros da Corte, forçando-os, ainda que de maneira oblíqua, a rever decisões, arquivar inquéritos, poupar apoiadores do Governo ou decidir conforme suas preferências político-ideológicas para evitar uma nova onda de hostilidade.
O risco é não perceber o estilo próprio das agressões. Com efeito, a onda de intimidação contra o STF deve ser analisada sob a perspectiva de um modus operandi populista que se utiliza de ferramentas muitas vezes previstas na própria ordem constitucional, mas que são desvirtuadas para alcançar uma finalidade ilegítima e antidemocrática. Declarações reiteradas do Presidente, de membros da cúpula do Governo, ameaças de descumprimento de decisões judiciais, apoio a manifestações contra a própria instituição do STF e seus integrantes e a utilização indevida do mecanismo do impeachment são ataques que se passam em um plano simbólico-discursivo, mas que igualmente possuem um efeito erosivo à integridade e independência do Tribunal, atingindo, gradativamente, seu real funcionamento.
De fato, normalmente, a independência judicial é associada à existência de um desenho institucional que contemple mecanismos que assegurem autonomia aos magistrados – como vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídios – e que municiem o Poder Judiciário com independência financeira, administrativa, orgânica e iniciativa de leis sobre sua estrutura e funcionamento. Com esse aparato, não se pretende eliminar pressões políticas, econômicas ou sociais direcionadas aos juízes e Tribunais, mas certificar que estes tenham proteções institucionais capazes de filtrar e neutralizar essas pressões. Nos episódios de bullying constitucional, não se avançou qualquer proposta de alteração constitucional ou legislativa capaz de atingir as garantias formais do Poder Judiciário. Isso não significa que o bullying constitucional seja inofensivo, pois, embora não tenha, até agora, repercutido na estrutura constitucional (independência de iure) da Corte, pode, eventualmente, atingir sua independência de facto. Não é à toa que o Brasil se encontra em 4º lugar na lista dos países em processo de autocratização, sendo superado apenas pela Turquia, Hungria e Polônia<a href="applewebdata://35D6C023-B77F-4E2A-8F09-AFF255B684A4#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
Portanto, normalizar o bullying constitucional, sob o falso argumento de cuidar-se de livre manifestação de opinião e de crítica, é utilizar uma garantia da democracia para destruí-la aos poucos. Seria admitir que todo o esforço cívico e político que tornou possível a transição de um regime autoritário para a democracia - construindo uma ordem constitucional com governo limitado, direitos fundamentais e sistema de freios e contrapesos - pudesse, ele próprio, ter dado as armas que seriam, ao fim, usadas para o desfigurar essa mesma democracia.
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O episódio 56 do podcast Sem Precedentes discute a CPI da Covid-19 e o choque do Supremo Tribunal Federal com o presidente Jair Bolsonaro. Ouça:
https://youtu.be/LQiDzE-3T98
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<a href="applewebdata://35D6C023-B77F-4E2A-8F09-AFF255B684A4#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Cf. LEITE, Glauco Salomão. Juristocracia e Constitucionalismo Democrático: do ativismo judicial ao diálogo constitucional. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021 (no prelo).
<a href="applewebdata://35D6C023-B77F-4E2A-8F09-AFF255B684A4#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Jornal Folha de São Paulo. Caderno Poder. “Bolsonaro quer aumentar número de Ministros do Supremo”, 02.julho.2018.
<a href="applewebdata://35D6C023-B77F-4E2A-8F09-AFF255B684A4#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Cf. o último relatório do V-Dem Institute: “Democracy Report 2021. Autocratization Turns Viral”. Disponível em: https://www.v-dem.net/media/filer_public/74/8c/748c68ad-f224-4cd7-87f9-8794add5c60f/dr_2021_updated.pdf

o jurista bolsonarista

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JOTA

Bullying constitucional ocorre quando se ultrapassa o questionamento legítimo de alguma decisão judicial

Bullying constitucional, o STF e a CPI da Pandemia

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