Claudia Gardin Martins

Lucas Ribeiro Serejo Luz

De forma geral, o cidadão médio brasileiro desconhece o cânhamo industrial e, por esse motivo, muitas vezes este é erroneamente confundido com a maconha, apesar de existirem diferenças claras entre um e outro.
Dentro de uma perspectiva botânica, o cânhamo e a maconha pertencem a cultivar da mesma espécie: Cannabis sativa<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. De forma geral, cada subespécie desse cultivar possui características próprias, de modo que algumas contêm maior concentração de tetrahidrocanabinol (THC) – componente químico psicoativo – e outras maior concentração de canabidiol (CBD), conhecido em razão de suas propriedades terapêuticas.
A aplicação de cada uma das subespécies também varia de acordo com as caraterísticas morfológicas da planta. Algumas possuem caules longos, com fibras de alta qualidade e resistência, úteis à indústria têxtil. Outras são de grande valia para a indústria alimentícia por possuírem sementes e folhas com consideráveis níveis de fibras, vitaminas e minerais.
Aqui, destacamos que, por muito tempo, pairavam dúvidas acerca de qual seria a melhor forma de distinguir, taxonomicamente, as subespécies da Cannabis sativa, a fim de classificá-las como cânhamo ou como maconha<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>. Contudo, atualmente, essa problemática está mitigada.
Uma das soluções encontradas por alguns países e entidades multilaterais, a exemplo da Organização das Nações Unidas (ONU), foi a utilização de um critério químico, que diferencia o cânhamo da maconha a partir da concentração de THC presente na planta. A partir dessa categorização, cultivares da Cannabis sativa que contêm baixa quantidade de THC são classificados como cânhamo. Por sua vez, os da mesma espécie com alto teor de THC são classificados como maconha.
A China – maior produtora de cânhamo industrial do mundo –, por exemplo, estabelece como padrão o limite de 0,3% de THC por peso seco da planta<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. Assim, qualquer cultivar da espécie Cannabis sativa que disponha de percentual superior ao indicado deixa automaticamente de ser classificado como cânhamo. O mesmo critério é adotado pelos Estados Unidos<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> e Canadá<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
Outros países possuem legislação mais permissiva, a exemplo da Suíça<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a> e da Austrália<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>, que admitem o cultivo de variedade de cânhamo com nível de THC de até 1% por peso seco da planta – percentual este considerado por parte da comunidade científica como limiar para que a planta passe a apresentar finalidade entorpecente ou medicinal, devendo, assim, ser classificada como maconha.
No caso do Brasil, a legislação nacional ainda carece de disposições sobre o tema, sendo vedado o cultivo da Cannabis sativa, independentemente de suas características químicas, haja vista as disposições contidas na Lei de Drogas (Lei 11.343/2006) e no Regulamento Técnico sobre substâncias e medicamentos sujeitos a controle especial (Portaria SVS/MS 344/1998). Por esse motivo, mesmo os cultivares de Cannabis sativa com irrisórios teores de THC não podem ser cultivados em solo brasileiro, salvo raríssimas exceções, quando há permissão para fins medicinais.
Não almejando esgotar a discussão, para uma futura regulação no Brasil, quando da definição do limite de THC por peso seco da planta a ser adotado, é importante que se considere os aspectos geográficos/climáticos do país. De modo geral, cultivares da Cannabis sativa submetidos à elevadas temperaturas e à incidência solar tendem a possuir maior concentração de THC se comparados às culturas desenvolvidas em regiões mais frias, com baixa exposição ao sol<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>.
No caso do Brasil, onde se observa com frequência alta variação de temperatura e de incidência solar, ao se estabelecer parâmetros baixos de concentração de THC para fins de classificação da Cannabis sativa como cânhamo industrial, cria-se um cenário em que variações climáticas podem acabar acarretando na reclassificação indesejada de safras inteiras de Cannabis sativa.
Outro aspecto relevante que deve ser levado em consideração é a peculiaridade regulatória que envolve a Cannabis sativa, em virtude das possíveis destinações econômicas a ela atribuídas: ora pode ser considerada commodity agrícola quando classificada como cânhamo e, portanto, sujeita ao controle do Ministério da Agricultura e Pecuária; ora passível de controle especial pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) quando classificada como maconha. Diante desse cenário, é fundamental que sejam traçados arranjos político-institucionais claros, a fim de evitar possíveis conflitos entre as agências de regulação e órgãos ministeriais.
Deixar de associar o cânhamo e seus produtos à ideia de efeitos psicotrópicos, a partir da compreensão dos químicos da Cannabis sativa e da classificação químiotaxonômica adotada em diversos países, e realizar a adequada distinção de tratamento regulatório entre as diferentes aplicações econômicas da planta, são os primeiros passos para que se possa legalizar o cultivo e a comercialização do cânhamo industrial no Brasil.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Do ponto de vista taxonômico, a Cannabis sativa possui três subsespécies: Cannabis Sativa subsp. sativa: Cannabis Sativa subsp. indica e Cannabis Sativa subsp. ruderalis.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> John M. McPartland, em seu artigo Cannabis systematics at the levels of family, genus, and species, publicado pela Cannabis and cannabinoid research, em 2018, aponta que a classificação de acordo com a morfologia e a variação geográfica das subespécies da Cannabis Sativa acabou tornando um tanto quanto irrelevante nos tempos atuais, haja vista que a intensa intervenção humana na genética da Cannabis ao longo dos tempos provocou uma vasta gama de cruzamentos genéticos, o que acarretou em uma grande hibridização das características que usualmente seriam próprias de uma subespécie em específico.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Informação disponível em: <a href="https://www.chinesestandard.net/PDF.aspx/NYT3252.1-2018">https://www.chinesestandard.net/PDF.aspx/NYT3252.1-2018</a>. Acesso em: 1 mar 2023.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Informação disponível em: <a href="https://www.federalregister.gov/documents/2021/01/19/2021-00967/establishment-of-a-domestic-hemp-production-program">https://www.federalregister.gov/documents/2021/01/19/2021-00967/establishment-of-a-domestic-hemp-production-program</a>. Acesso em: 1 mar 2023.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Informação disponível em: <a href="https://www.canada.ca/en/health-canada/services/drugs-medication/cannabis/producing-selling-hemp/about-hemp-canada-hemp-industry/frequently-asked-questions.html#a6">https://www.canada.ca/en/health-canada/services/drugs-medication/cannabis/producing-selling-hemp/about-hemp-canada-hemp-industry/frequently-asked-questions.html#a6</a>. Acesso em: 1 mar 2023.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Informação disponível em:  <a href="https://www.fedlex.admin.ch/eli/cc/2011/363/de">https://www.fedlex.admin.ch/eli/cc/2011/363/de</a>. Acesso em: 1 mar 2023.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Informação disponível em: <a href="https://www.agriculture.gov.au/sites/default/files/sitecollectiondocuments/ag-food/industrial-hemp/national-standard-industrial-hemp"> https://www.agriculture.gov.au/sites/default/files/sitecollectiondocuments/ag-food/industrial-hemp/national-standard-industrial-hemp</a>. Acesso em: 1 mar 2023.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Tal fenômeno se dá em virtude do fato de que o ácido tetrahidrocanabinólico (THCa), composto não psicoativo presente na Cannabis Sativa, é termossensível, sendo convertido em THC quando exposto à luz e ao calor.

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