A onda de novas discussões sobre uma imensa reviravolta no saneamento em razão dos Decretos 11.466 e 11.467, editados no último dia 5 de abril, revela a triste realidade de que a imensa polarização política e social também se entranhou no saneamento.

Há anos discute-se o desequilíbrio de forças, receitas e poderes dos entes federativos que compõem a República Federativa do Brasil, inclusive com discursos calorosos e embates públicos e um slogan já usado que resume, talvez, um pouco do que deveria ser o funcionamento do pacto federativo: "menos Brasília e mais Brasil".

Ocorre que, no saneamento básico, tipicamente de interesse local, ou em razão do fenômeno da conurbação advindo ou da implementação de Funções Públicas de Interesse Comum, regional/estadual, cabe à União unicamente estabelecer as diretrizes, conforme o já decorado artigo 21, XX da Constituição.

De forma alguma defende-se que não havia, ou que ainda não haja, necessidade de inúmeros ajustes e melhorias na regulamentação, organização e prestação dos serviços.

O que chamamos a atenção é para a continuação de embates de narrativas vinculadas a modelos prontos e herméticos como se somente uma solução existisse, de forma a conseguir convencer sobre quem tem razão e não a respeito de como o real problema será efetivamente solucionado.

Mas qual problema?

Ora, os milhões de brasileiros que certamente pouco se preocupam se há contrato de concessão, de programa, PPP ou prestação direta, desde que se tenha água e esgoto, a preço justo.

Continuar enxergando o saneamento como um serviço que pode ser organizado e gerido sob a batuta da União é um erro quase primário.

O mesmo remédio pode não funcionar para doenças diferentes. Repetir exaustivamente que, assim como na desestabilização dos serviços de energia elétrica e de telecomunicações, o saneamento precisa daquela mesma receita é fingir que a União é titular de um serviço que não lhe pertence.

E no limite do que pertence à União, a lei reservou o poder do dinheiro. O protagonismo da União enquanto financiadora do saneamento é mais que conhecido, remontando ao Planasa, e atualmente possui tratamento especial no artigo 50, inserido pela Lei 14.026/2020, o novo Marco do Saneamento.

Assim, a União e suas entidades só alocam recursos, inclusive financiamentos, onde houver aderência à política pública definida pela União, havendo papel de destaque dos bancos federais no financiamento do saneamento (BNDES, Caixa Econômica Federal e Banco do Nordeste).

O apoio, porém, depende de regulamentação que foi feita inicialmente por meio dos Decretos 10.588 e 11.030 e, agora, por meio do Decreto 11.467.

Há clara distinção entre as políticas de governo refletidas licitamente em regulamentações diferentes do mesmo assunto.

Façamos, então, um exercício a partir de uma previsão que, embora seja estritamente alinhada ao respeito da autonomia dos entes federativos locais e regionais, vem sofrendo ataques não razoáveis: a possibilidade de destinar recursos financiados a operações isoladas, ainda que se trate de município componente de uma estrutura de regionalização devidamente estruturada.

Isso porque o Projeto de Decreto Legislativo 98/2023 e outros apensos, aprovado pela Câmara dos Deputados, susta, dentre outros, os parágrafos 13 e 14 do artigo 6º do Decreto 11.467/2023 que reconhecem a possibilidade de prestadores distintos dentro da mesma estrutura ou mesmo a prestação direta isolada.

No PDL 111/2023, apenso àquele cujo substitutivo foi aprovado, é possível observar dentre as justificativas elencadas as seguintes afirmações:

“O conceito de prestação regionalizada da Lei 11.445/2007 pressupõe intrinsecamente a regionalização da prestação do serviço em si, e não somente uma estrutura regionalizada com prestações isoladas dentro dela.
Não poderia ser de outra forma, pois um dos fundamentos basilares da prestação regionalizada é a obtenção de ganhos de escala, o que só é possível se a prestação em si abranger todos os municípios que integram a entidade regionalizada.
Tanto é assim que a própria Lei 11.445/2007 prevê, em seu artigo 8º-A, que é facultativa a adesão dos titulares dos serviços de interesse local às estruturas das formas de prestação regionalizada. Ou seja, não faz qualquer sentido a adesão a uma estrutura regionalizada se a prestação em si permanece isolada, por interesse local do titular”.

Causa certa perplexidade pois, embora não haja dúvidas que a prestação regionalizada esteja inserida dentre os princípios fundamentais (artigo 2º, XIV da LNSB), o conceito defendido no PDL aproximar-se-ia daquele que foi expressamente revogado quando da aprovação da Lei 14.026, ou seja da redação original do artigo 14, II da LNSB.

O que o governo atual fez foi preservar as autonomias locais e regionais, de forma que os modelos de prestação que respeitem os princípios gerais sejam desenvolvidos, ainda que isso permita a existência ou continuidade de operações isoladas.

Essa tônica democrática, adequada ao pacto federativo, faz parte de modelos de regionalização em microrregiões, preservando a autonomia dos entes federados e conciliando os interesses mútuos de forma a permitir a prestação isolada, desde que viável e sem prejuízo à universalização. Assim é possível observar nas Leis Complementares Estaduais 455/2021 – PE (artigo 7º, VII e §5º, III), 968/2021 – ES (artigo 13, VII), 168/2021 - PB (artigo 7º, VII e §5º, III) e 237/2021 - PR (artigo 9º, VII e §5º, III).

Por outro lado, em consulta ao site da Abcon-Sindcon, é possível verificar concessões isoladas com prazos razoavelmente longos em municípios relevantes como Manaus-AM (2045), Blumenau-SC (2045), Niterói-RJ (2049) e Araçatuba-SP (2042).

No estado de São Paulo, nem mesmo na URAE 1-Sudeste, onde atua a gigante Sabesp, houve adesão integral dos municípios, sendo que, daqueles que aderiram, outros seis não haviam formalizado anuência aos aditivos tratados pelo Decreto 10.710/21.

Ou seja, no suposto intuito de resolver o complexo problema da universalização, há movimentos claramente voltados a unicamente buscar “ter a razão” nos contínuos e intermináveis debates jurídicos, políticos e ideológicos, independentemente dos resultados que possam vir a gerar aos usuários e às prestações que necessitem de financiamentos federais.

Entender da forma explicitada no PDL e sustar os efeitos do Decreto, ou mesmo eventual suspensão pelo STF no âmbito da ADPF 1055 terá, neste particular, o condão de forçar operações lícitas e aparentemente adequadas ou a serem encerradas antecipadamente de forma desnecessária para que haja uma nova licitação regionalizada ou a serem alijadas de acesso a recursos federais.

Além de não parecer razoável, releva-se como afronta direta à autonomia dos municípios e estados e ainda ao ato jurídico perfeito de prestadores que mantêm contratos de concessão ou de programa isolados ou em parte de cada região, ainda que se garantam indenizações prévias decorrentes de eventuais encampações.

O cidadão usuário não parece se beneficiar dessa solução, pois os recursos para tais indenizações sairão ou do caixa formado pelos tributos ou das tarifas do novo prestador obrigado a indenizar os anteriores.

Licitações realizadas ou em estruturação sob o manto do novo Marco do Saneamento como Crato-CE (Integrante da Microrregião de Água e Esgoto do Centro-Sul – Lei Complementar CE 247/2021), São Simão-GO (ainda não regionalizado) e Porto Alegre-RS (integrante da Unidade Regional de Serviços de Saneamento Básico 2 - URSB 2 – Lei Estadual 15.795/2022) deveriam, então, ficar sem acesso a recursos de financiamentos federais?

Da mesma forma deveria a Sabesp, que atuaria em região em que determinados municípios não aderiram e outros não aceitaram regularizar seus contratos, ser impedida de acessar recursos federais?

Cremos, por óbvio, que não. Não se pode admitir que a solução para o saneamento seja centralizada em Brasília e não espalhada pelo continental Brasil, e que para melhorar o cenário há que se destruir ou inviabilizar o que funciona e não buscar as medidas para solucionar o que não funciona.

Para se ter uma noção de parte do que funciona basta olhar as dez primeiras cidades do ranking divulgado pelo Instituto Trata Brasil em que oito tem serviços geridos por prestadores públicos, sendo cinco cidades atendidas por companhias estaduais e outras três por prestadores municipais isolados.

Destruir o que funciona bem para melhorar o todo não parece ser o caminho mais inteligente para universalização. Ter mais prudência e respeito às opiniões diversas, com menos vontade de ter razão, parece auxiliar mais para a universalização dos serviços.

Assim, talvez, embora acabemos não tendo a razão que pensávamos, consigamos cumprir a meta que a população exige: água potável e esgoto tratado.

A prestação isolada no âmbito da regionalização do saneamento

Destruir o que funciona bem para melhorar o todo não parece ser o caminho mais inteligente para a universalização