Bruce Bastos Martins

De acordo com a Confederação Nacional da Indústria (CNI), nos últimos dez anos, no Brasil, as medidas para o controle das importações consideradas com preços desleais (medidas antidumping) caíram 54%.
Não obstante, no restante do mundo essas medidas subiram 25%. Aliás, segundo o relatório da Organização Mundial do Comércio (OMC), em comparação com o último semestre 2019, no primeiro semestre de 2020 houve um aumento de 69% de investigações dos casos de antidumping.
<a href="https://conteudo.jota.info/jota-pro-tributos" rel="attachment wp-att-291213"><img class="size-medium wp-image-291213 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-tributos-v2.jpg" alt="" width="300" height="300" /></a>Mas é preciso voltar alguns anos para entender melhor o que isto significa. Em 1979, no início das políticas alcunhadas de “neoliberais” – políticas que favorecem os “ritmos de mudança”, na expressão do economista Karl Polanyi –, o Brasil assinou o tratado internacional de Acordos Antidumping, do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT), para se proteger das práticas desleais oriundas do comércio internacional.
Esta expressão “ritmos de mudança” refere-se aos movimentos de desincrustação da economia de mercado do controle social, ou seja, de autonomia do mercado em relação à política, o que por sinal caracteriza a singularidade da nossa sociedade moderna<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Representa, portanto, mudanças que garantem a separação da sociedade em duas ordens relativamente independentes: a econômica e a política. Quanto mais a ordem econômica se desregula, mais rápido é o ritmo de mudança na sociedade.
Assim, no final do século XX, o mundo presenciou um dos movimentos de mais contundentes de desincrustação: a desregulamentação dos mercados financeiros e de capitais.
O resultado disto entrou para a história como crises cambiais e “bolhas” financeiras que colocaram em xeque até este momento a legitimidade como um todo das instituições liberais-democráticas.
A propósito, apenas assim entendemos como o povo se voltou contra a democracia, como nos explica o cientista político Yascha Mounk, e o surgimento de instituições tecnocráticas que se afastam, paulatinamente, do exercício da democracia (direitos sem democracia), e de líderes que afastam, autoritariamente, a democracia das instituições (democracia sem direitos).
De qualquer jeito, foi na ressaca desta onda dita “neoliberal” que os Estados reagiram, impondo limites para a desregulação dos mercados. Até porque o GATT, em 1994, havia formalizado o Acordo Antidumping, autorizando os países a implementarem medidas domésticas de proteção contra práticas desleais do comércio internacional. No Brasil, por exemplo, a Lei nº 9.019/1995 disciplina a aplicação dos direitos previstos neste Acordo.
<blockquote class="jota-article__eye">Este movimento de regulação do comércio, de incrustação da economia no controle social recebe a expressão, em Polanyi, de “ritmo de ajustamento”<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.</blockquote>
É neste sentido que a medida antidumping classifica-se como um “ritmo de ajustamento”, uma vez que representa o interesse público no controle da livre circulação das mercadorias, principalmente daquelas cujo preço praticado entre os países é desleal.
Em muitos casos, quando se dispensa este controle, também se renuncia o desenvolvimento industrial, sobretudo nos países emergentes. Nestes casos, a opção pelo desincrustamento vem acompanhada com a redução da participação das indústrias – setor produtivo que gera os melhores empregos – na formação do PIB.
Em uma frase, a abertura para os “ritmos de mudanças” de desregulamentação do mercado leva os países em desenvolvimento, como o Brasil, a uma inexorável desindustrialização. Nas palavras do diretor de Desenvolvimento Industrial da CNI, Carlos Eduardo Abijaodi: “Na prática, quando reduz o número dessas medidas [antidumping] justamente em um momento em que o mundo a amplia, o Brasil deixa sua indústria à mercê de práticas desleais de mercado”<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
Portanto, o Brasil renunciar das medidas antidumping, neste momento, não poderia ser mais desastroso, quando a participação da indústria de transformação já representa 11% do PIB (no passado representou 30%, aproximadamente), e a Ford, para dar um exemplo emblemático dos efeitos da desindustrialização, decide fechar as suas fábricas no país.
Sabe-se dos efeitos perniciosos de um protecionismo obtuso, voltado para manter ineficiências de empresas nacionais pela não-concorrência, e para tanto até se faz pleitos injustificados de antidumping.
Todavia, o óbvio precisa ser dito, não se pode a pretexto de resolver um problema circunstancial, criar um outro ainda maior pondo um fim ou reduzindo abruptamente os mecanismos de defesa do país contra as práticas desleais do comércio internacional.
É preciso entender, finalmente, que não se trata de trocas comerciais entre países envolvendo vinhos e sedas. As vantagens comparativas não dão conta de resolver esta equação competitiva. Aliás, são conhecidos por todos os efeitos de uma balança comercial estruturalmente deficitária, a exemplo da desestabilização cambial e monetária, no país.
Torna-se um verdadeiro moinho satânico, na expressão de Polanyi, que vem triturar os laços sociais em nome da desregulamentação da economia de mercado entre os países, de tal modo que o interesse privado de um prevalece sobre o interesse público do outro. As condições assimétricas de competição entre eles – capital humano, domínio tecnológico, acesso ao crédito, câmbio etc. – garantirão este resultado.
Por tudo isto o fenômeno econômico do “dumping” revela sua dimensão política entre os países. Nas palavras do historiador Edward H. Carr, “o uso do ‘dumping’ como instrumento político é incontestável; e os países poderosos encontraram seus mercados ‘naturais’ em áreas onde residem seus interesses políticos, e onde sua influência política pode mais facilmente afirmar-se”<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
Em última instância, o movimento de desincrustação provocado pelos “ritmos de mudança”, a exemplo no Brasil da abrupta queda das medidas antidumping, não apenas significa declinar do controle social de um mercado que se vê livre dos interesses públicos, na busca (legítima, preciso afirmar) dos seus próprios interesses, mas também significa se sujeitar ao controle político de outros países por ficar à mingua do desenvolvimento tecnológico, da capacitação humana e da competitividade internacional.
Embora seja fato consolidado desde o século XIX, é época de afirmar o evidente: não há solução nacional possível que se faça pela crença na harmonia dos interesses internacionais. É improtelável o controle social.
<hr />
O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça:
https://youtu.be/-hMj5lwWXEE
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> “Um mercado auto-regulável exige, no mínimo, a separação institucional da sociedade em esferas econômica e política. Do ponto de vista da sociedade como um todo, uma tal dicotomia é, com efeito, apenas um reforço da existência de um mercado auto-regulável. Pode-se argumentar que a separação dessas duas esferas ocorra em todos os tipos de sociedade, em todos os tempos. Uma tal inferência, porém, seria baseada numa falácia. É verdade que nenhuma sociedade pode existir sem algum tipo de sistema que assegure a ordem na produção e distribuição de bens. Entretanto, isto não implica a existência de instituições econômicas separadas. Normalmente a ordem econômica é apenas uma função da sociedade, na qual ela está inserida. Como já demonstramos, não havia um sistema econômico separado na sociedade, seja sob condições tribais, feudais ou mercantis. A sociedade do século XIX revelou-se, de fato, um ponto de partida singular, no qual a atividade econômica foi isolada e imputada a uma motivação econômica distinta” (POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. 2. ed. Rio de Janeiro: Campus, 2000, p. 76-77)
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Polanyi exemplifica “Esses fatos são suficientes para identificar a mudança da terra arável para a pastagem e o movimento de cercamentos que a acompanhou como tendência do progresso econômico. Entretanto, não fosse a política consequente mantida pelos estadistas Tudors e os primeiros Stuarts, o ritmo desse progresso poderia ter sido ruinoso, transformando o próprio desenvolvimento em um acontecimento degenerativo, ao invés de construtivo. Justamente desse ritmo dependia, principalmente, saber se os despojados poderiam ajustar-se às condições modificadas sem danificar fatalmente a sua substância humana e econômica, física e moral; se eles encontrariam novos empregos nas áreas de oportunidades indiretamente ligados à mudança; e se os efeitos do incremento de importações, induzido pelo aumento de exportações, permitiria àqueles que perderam seus empregos com a mudança encontrar novas fontes de subsistência. Em cada um dos casos, a resposta dependia dos ritmos relativos de mudança e ajustamento” (POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. 2. ed. Rio de Janeiro: Campus, 2000, p. 55-56)
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Disponível em: &lt;https://valor.globo.com/brasil/noticia/2021/01/12/industria-reclama-da-reducao-de-medidas-antidumping-pelo-brasil.ghtml&gt;.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> CARR, Edward Hallett. Vinte anos de crise: 1919-1939: uma introdução ao estudo das relações internacionais. Brasília, DF: Ed. da UnB, 2001, p. 165.

WhatsApp Image 2020-11-05 at 16.59.50

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Não há solução nacional possível que se faça pela crença na harmonia dos interesses internacionais

Brasil e antidumping sob a ótica dos 'ritmos de mudança' de Karl Polanyi

Não há solução nacional possível que se faça pela crença na harmonia dos interesses internacionais