Renato Godoy

Há 15 anos, o país assistiu às imagens do documentário "Falcão, meninos do tráfico". Exibido em rede nacional, o filme dirigido por MV Bill e Celso Athayde, explicitou o cotidiano de meninos soldados do tráfico no Rio de Janeiro, que prestaram depoimentos sobre seu cotidiano de violência empunhando fuzis. As cenas causaram incredulidade e deram início a um debate público sobre o fenômeno dos meninos-soldados.
No dia 30 de setembro de 2021, em Belo Horizonte, um senhor de 66 anos, ao lado de uma criança vestida de soldado, simulou disparos com um fuzil de brinquedo. A cena provocou aplausos de apoiadores.
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Ao contrário das imagens de "Falcão", a cena de 2021 não ocorreu na clandestinidade, à revelia do poder estatal, mas sim no centro do poder Executivo, com o tétrico protagonismo do presidente da República.
A ação recorrente do presidente é condizente com aquilo que vociferou durante a campanha presidencial que o elegeu em 2018. Em um único dia, 23 de agosto de 2018, o então candidato deixou bastante evidente sua opinião sobre qual deveria ser a relação das crianças com as armas. Em Araçatuba (SP), pela manhã, a um menino vestido de soldado da PM, o candidato perguntou se ele saberia "atirar, dar tiro" e, posteriormente, incentivou a fazer o gesto de arma com a mão, que acabou se concretizando como o símbolo de sua campanha e de sua corrente ideológica.
À tarde, em sua cidade natal, Glicério (SP), o então presidenciável comentou o gesto. "Meus filhos todos atiraram com cinco anos de idade, real, não é de ficção nem de espoleta não, tá ok?", declarou, em resposta à imprensa.
Ao ser questionado sobre a eventual ilegalidade da ação, com base no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o candidato respondeu: "Esse ECA tem que ser rasgado e jogado na latrina". A resposta do candidato pode ser tachada como violenta, anti-democrática ou extremista, só não pode ser chamada de dúbia.
A despeito de todos arroubos presidenciais e da campanha, há um esforço da sociedade civil e de instituições para que o ECA e outras conquistas civilizatórias permaneçam no nosso ordenamento jurídico, ao invés da latrina.
Assim, as ações do candidato e, posteriormente, do presidente da República configuram crime, previstos em legislações que, à revelia de sua vontade, permanecem vigentes.
O Estatuto do Desarmamento, em seu artigo 26, veda "a fabricação, a venda, a comercialização e a importação de brinquedos, réplicas e simulacros de armas de fogo, que com estas se possam confundir”. Ainda que a ocasião se refira a uma arma de brinquedo, é importante considerar que o ECA, prevê que "vender, fornecer ainda que gratuitamente ou entregar, de qualquer forma, a criança ou adolescente arma, munição ou explosivo" é crime passível de reclusão de 3 a 6 anos.
Não à toa, o Comitê da ONU dos Direitos da Criança (OHCHR) condenou a atitude do presidente Jair Bolsonaro. Em nota, a entidade afirmou que "condena com veemência o uso de crianças pelo presidente Bolsonaro, vestidas com trajes militares e com o que parece ser uma arma de fogo, para promover sua agenda política".
A nota também chamou a atenção para a divulgação da criança nessa situação: "A circulação de imagens dessas crianças perpetua ainda mais o dano causado a elas e corre o risco de contribuir para a falsa percepção de que o uso de crianças em hostilidades é aceitável."
De forma explícita, essa atitude viola direitos fundamentais de crianças e adolescentes que devem ser colocados a salvo de toda forma de violência, com prioridade absoluta, como determina o artigo 227 da Constituição Federal. Aliás, fundamentar políticas e assegurar a aplicação de ambos estatutos citados neste artigo – o ECA e o Estatuto do Desarmamento –  é garantir o melhor interesse da criança, dever este que é de responsabilidade compartilhada não apenas entre famílias e sociedade, mas também com o Estado e com o Governo Federal.
Crianças e adolescentes não devem ser tratados ou expostos como “meninos-soldados”. Crianças e adolescentes estão em estágio peculiar de desenvolvimento físico, cognitivo, emocional e sociocultural e, por serem mais vulneráveis, exigem cuidado e respeito enquanto sujeitos de direito protegidos constitucionalmente.
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JOTA

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