Alexandre Sankievicz

Guilherme Pereira Pinheiro

Este artigo inaugura uma série de três publicações<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> em que pretendemos analisar os impactos da tecnologia blockchain em diferentes ramos do direito, especialmente em relação à <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/lgpd">Lei Geral de Dados Pessoais (LGPD)</a>.
Neste primeiro artigo, iremos examinar a relação entre essa nova tecnologia e o direito em geral, a fim de verificar eventuais problemas existentes e a necessidade de regulação da matéria.
No segundo artigo, verificaremos as potencialidades da relação dessa tecnologia com variadas áreas jurídicas, apontando suas vantagens e desvantagens, e identificado os riscos e benefícios da sua adoção. Em seguida, veremos de que forma a blockchain se aplica a diversos setores específicos, como o de valores mobiliários, contratos inteligentes, cibersegurança, medicina, logística, registros imobiliários e o de Internet das Coisas (IoT).
Por fim, num terceiro texto, examinaremos a relação da blockchain com a proteção de dados pessoais, verificando os pontos de tensão existentes entre esse direito e a tecnologia, e aprofundaremos o problema da identificação e distribuição de responsabilidade entre os agentes de tratamento no uso da blockchain.
<h3>O que é blockchain?</h3>
Apesar de a blockchain utilizar uma tecnologia complexa, sua função básica é simples, qual seja, prover uma memória distribuída, descentralizada, e que seja, ao mesmo tempo, confiável. Todos podem manter uma cópia atualizada do registro e todas essas cópias são iguais, mesmo que inexista um administrador central do sistema.
Nisso há, portanto, dois benefícios. O primeiro é a possibilidade de confiar numa transação sem confiar necessariamente nas partes envolvidas, em governos ou em outros intermediários. O segundo é a substituição de vários registros privados por um único registro, centralizado e confiável, o que reduz significativamente os custos de transação.
O software da blockchain se utiliza de criptografia digital bem como de incentivos de teoria dos jogos a fim de tornar a fraude virtualmente impossível.
Há sete características tecnológicas da blockchain relevantes para o mundo jurídico. A primeira é que a tecnologia permite a desintermediação, geralmente fiando-se em softwares de open source. Segundo, a blockchain é bastante resistente à violação, por sua natureza descentralizada, com o uso de hashes, gerando identificadores únicos e irrepetíveis a partir de uma determinada informação. Em terceiro, a blockchain é transparente, no sentido de que os dados de transação são autenticáveis e visíveis. Em quarto lugar, pode-se dizer que a tecnologia é caracterizada por uma pseudoanonimização ou pseudonimização, já que permite que as partes envolvidas na transação participem do sistema sem revelar a sua identidade. Quinto, a blockchain possui certos incentivos particulares e custos estruturais, como recompensa por blocos ou taxas de mineração, que incentivam e compensam a manutenção de uma rede baseada em blockchains pelos usuários. Em sexto lugar, uma qualidade única da blockchain é a existência de mecanismos consensuais, que coordenam as atividades sociais na direção de um acordo dentro do sistema. Por último, e num nível mais profundo, a tecnologia proporciona um tipo específico de autonomia, facilitando a exceção de códigos de software que são independentes das partes envolvidas.
A combinação dos fatores elencados acima faz com que a blockchain tenha uma natureza dupla<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, podendo ser utilizada para o bem e para o mal. Ou seja, é moralmente neutra, como toda tecnologia. O potencial para o uso ilícito, porém, fica claro quando percebemos a dificuldade que a lei e a regulação têm para serem efetivas num ambiente que utiliza essa nova tecnologia.
Alguns autores defendem que a blockchain constitui um retorno aos primeiros anos da internet descentralizada, baseada no protocolo TCP-IP, em que os usuários finais e não os grandes intermediários, como é o caso das grandes plataformas, é que detêm poder. Seria um retorno ao modelo end-to-end, em que as pontas da rede, isto é, os usuários da internet, é que controlam o fluxo de dados e informações.
O interesse inicial em blockchain teve como foco justamente o bitcoin, uma moeda privada digital que se pretende além do controle dos governos. Tradicionalmente, transações em moedas são fortemente reguladas pelo Estado, a fim de evitar fraudes, lavagem de dinheiro, evasão de capitais, manipulação da moeda, financiamento ao terrorismo, entre outras medidas. Há ações estatais também para restringir o pagamento ou processamento de serviços que envolvam jogos ilegais, distribuição de materiais protegidos por direitos autorais e a disseminação de documentos governamentais, como no caso do WikiLeaks.
Contra tudo isso, o bitcoin parece operar como reserva de valor e mecanismo de transação que não possui tais constrições. Tome-se como exemplo o caso Silk Road, retratado recentemente em um filme da Netflix, em que foram negociados mais de US$ 1 bilhão em compra e venda de drogas, utilizando o bitcoin, até que seu idealizador foi preso e condenado à prisão perpétua.
Com os registros distribuídos, as partes podem confiar no resultado trazido pelo sistema de blockchain, sem necessariamente confiar individualmente nos demais participantes. Mas mesmo a confiança implica ainda alguma dose de incerteza e vulnerabilidade. Embora a blockchain promova uma solução genial para a verificação, a confiança plena demanda que o sistema jurídico esteja de alguma forma envolvido.
Isso porque, não obstante a blockchain continue sendo um sistema desenhado, implementado e usado por seres humanos, há sempre um elemento subjetivo implantado nos códigos de programação. Nesse sentido, são sistemas ainda sujeitos a comportamentos egocêntricos, ataques e manipulações. Até 2016, por exemplo, já haviam sido registrados vários incidentes de segurança em que houve furto no valor de pelo menos US$ 1 milhão, com o valor total dos crimes excedendo a quantia de US$ 600 milhões<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
<h3>A relação entre blockchain e o direito</h3>
Podemos afirmar que a relação da blockchain com o direito é bastante ambígua. Os defensores da tecnologia a consideram como uma alternativa democrática às falhas, burocracias e autoritarismo resultantes de amarras jurídicas anacrônicas. Já os seus críticos enxergam a blockchain como um truque inteligente para evitar aderir ao ordenamento jurídico e escapar à responsabilização legal.
Dada essa característica ambígua, não é estranho que, ao mesmo tempo em que muitos consideram a blockchain como uma tecnologia revolucionária, que mudará para melhor as próximas décadas, outros e consideram uma ameaça à segurança jurídica e um subterfúgio para o cometimento de crimes os mais variados.
A blockchain talvez seja a tecnologia mais importante desde o surgimento da internet. Criada para dar suporte ao bitcoin, acabou por se tornar algo mais complexo e com múltiplas possibilidades de uso. Como comenta Kevin Werbach, a blockchain é a solução para um dos problemas humanos mais antigos, a falta de confiança.
Vale notar que a criptomoeda bitcoin, baseada em blockchain, se valorizou centenas de vezes, causando um crescimento exponencial de moedas semelhantes, moedas que utilizam a mesma tecnologia. Já o investimento em startups baseadas em blockchain sofreu também um aumento vertiginoso nos últimos anos<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
Um dos problemas é que, para que um sistema de confiança realmente seja implementado, é necessário que haja uma governança que envolva leis e regulamentação. Do contrário a nova tecnologia pode ser contraproducente e mesmo perigosa, empregada para variados usos ilícitos e criminosos.
Por outro lado, a escolha de uma regulação excessiva e muita restritiva pode impedir o adequado desenvolvimento da tecnologia, gerando perda de oportunidades de exploração do seu máximo potencial.
Portanto, quando discutimos a relação entre a blockchain e o direito, devemos indagar não apenas como regular ou colocar amarras jurídicas sobre essa nascente tecnologia, mas como essa ela pode contribuir para regular e aperfeiçoar os mercados nas quais é utilizada.
De fato, a blockchain pode suplementar, complementar ou substituir vários aspectos da regulação e fiscalização estatal, por meio do provimento da segurança jurídica e da verificação e confirmação de determinadas situações legais. Nesse sentido, os desenvolvedores de blockchain podem trabalhar em conjunto com as instituições existentes, com cada parte reconhecendo a importância da outra.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Os textos basearam-se, principalmente, em artigos de Kevin Werbach (Werbach, Kevin. Trust, But Verify: Why The Blockchain Needs The Law. Berkeley Technology Law Journal, Vol. 33, 2019), de Antônio Maristrello Porto e outros (Porto, Antônio Maristrello et al. Tecnologia Blockchain e Direito Societário: Aplicações Práticas e Desafios para a Regulação. RIL Brasília a. 56 n. 223 jul./set. 2019 p. 11-30), de João Pedro Quintais e outros (Quintas, João Pedro, et al.  Blockchain And The Law: A Critical Evaluation. Amsterdam Law School Legal Studies Research Paper nº 2019-03, 2019) e no relatório do Parlamento Europeu (Blockchain and General Data Protection Regulation: can ledgers be squared with European data protection law?. European Parliamentary Research Service. In: <a href="https://www.europarl.europa.eu/RegData/etudes/STUD/2019/634445/EPRS_STU(2019)634445_EN.pdf">https://www.europarl.europa.eu/RegData/etudes/STUD/2019/634445/EPRS_STU(2019)634445_EN.pdf</a>)). Ressaltamos que, embora parte relevante dos artigos tenha se baseado nos referidos autores, não fizemos referência específica a eles a todo momento, a fim de não tornar a leitura demasiadamente cansativa.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Como aponta Manuel Rodrígues, são as chamadas tecnologías de doble uso. Ver em: Rodrígues, Manuel Cruz. El Filósofo Ante Las Nuevas Tecnologias. Telecomunicaciones, Infraestructuras y Libre Competencia. Valencia: 2004.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Ver em: <a href="https://steemit.com/bitcoin/@michaelmatthews/list-of-bitcoin-hacks-2012-2016">https://steemit.com/bitcoin/@michaelmatthews/list-of-bitcoin-hacks-2012-2016</a> . Acesso em 12/10/2021.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Ver em: <a href="https://www.cryptonewsz.com/investments-in-blockchain-start-ups-continue-to-rise-as-bain-capital-and-ripples-xpring-invest-in-scout-fund/">https://www.cryptonewsz.com/investments-in-blockchain-start-ups-continue-to-rise-as-bain-capital-and-ripples-xpring-invest-in-scout-fund/</a> . Acesso em 11/10/2021.

blockchain

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JOTA

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