Micaela Barros Barcelos Fernandes

A campanha Black lives matter (Vidas pretas importam) surgiu nos EUA em 2013, após o assassinato de um estudante negro pelo segurança de um condomínio que foi inocentado em processo judicial sob a alegação de legítima defesa. O fato deu sequência a manifestações que apontavam o racismo como motivo do crime. Nos últimos dias, o movimento voltou a ganhar força com a morte de George Floyd em abordagem policial captada em vídeo e divulgada na rede mundial de computadores. 
Há uma onda de protestos em curso por todos os Estados Unidos, apontada como sem precedentes, ou, no mínimo, não vistos nos últimos 50 anos<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote1sym" name="sdfootnote1anc">[1]</a>, questionando não apenas a violência policial contra pessoas negras, mas a estrutura que leva a esta violência.
A campanha teve repercussão na sociedade brasileira pela aderência à nossa realidade<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote2sym" name="sdfootnote2anc">[2]</a>. Lá, como cá, as crises sanitária e econômica só agravaram uma situação de desigualdade que já existia em níveis alarmantes. As manifestações são fruto de uma situação complexa que envolve (não apenas) frustração de expectativas e divisão da sociedade, crescimento de pautas extremistas, mas, sobretudo, o odioso problema do racismo, que não vai se resolver sozinho e que é resultado da ação de todas as pessoas, inclusive aquelas que se anunciam antirracistas, mas que não enxergam o racismo em uma série de estruturas e relações sociais.
Exemplo desta cegueira (deliberada ou não) é a resposta imediata que surge ao movimento Black Lives Matter: a campanha All Lives Matter, que se pretende, com a substituição do termo Black (preto) por All (todos), como inclusiva, pois declarada em proteção a todas as vidas, e não somente às vidas de pessoas de cor. 
Embora se apresente em sua intencionalidade como inclusiva para todos, na realidade não contribui para uma solução do problema da violência contra pessoas negras, sobretudo a violência policial, pois retira o foco da questão do racismo estrutural e sistêmico e da importância das vidas das pessoas que estão, de fato, precisando de visibilidade e proteção. A campanha distrai e diminui a mensagem do movimento Black lives matter. 
É preciso reconhecer que frequentemente se contribui com o racismo por omissão, mais do que por ação, inclusive quando não se enxerga onde ele existe. Em outras palavras, deve-se focar em quem precisa. Justamente porque formalmente todos têm direito ao reconhecimento e acesso a direitos, mas não materialmente, o desafio é garantir que aqueles que não têm passem a ter.
<a href="https://conteudo.jota.info/risco-politico"><img class="aligncenter wp-image-244336 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/04/cta-risco-politico.png" alt="" width="1080" height="1080" /></a>
Se quisermos uma sociedade mais inclusiva e empática, lógico que em benefício de todos, é necessário que nos questionemos, principalmente as pessoas brancas, sobre a visibilidade que prioriza algumas pessoas em detrimento de outras em inúmeras situações cotidianas. 
A solidariedade pode e deve ser valorizada, e pessoas que não dependem do reconhecimento (porque já o têm em todas as esferas de suas vidas, no amor, no reconhecimento dos direitos, e na solidariedade social, ou simplesmente, já o têm em maior grau em comparação a outras) podem, sim, se engajar na luta pelo reconhecimento daqueles que não têm, e com o cuidado de não jogar os holofotes para si próprios.
Qualquer ator social, tendo ou não consciência do seu papel, influi no estado de coisas, portanto deve buscar o pensamento crítico e ação responsável, com impacto na conduta e na tutela de interesses e direitos, sobretudo existenciais. Este é não apenas um comando constitucional, inserido em nosso quadro de valores fundantes<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote3sym" name="sdfootnote3anc">[3]</a>, é também o único caminho capaz de viabilizar uma existência pacífica. 
O Brasil é violento. Com todos. Mas sobretudo com seus cidadãos negros. E este gravíssimo problema não vai se resolver sozinho, exige a participação de todos com atenção para onde ela é necessária e eficiente.
A violência aparece de diversas formas, escancaradas ou sutis. Por exemplo, é comum ver quem emprega em vagas de baixa renda, principalmente ocupadas pela população negra, em autocomiseração, alegando que cria oportunidades, quando o que há é uma relação jurídica de serviços regida pelo direito contratual, e que exige respeito ao ajustado entre as partes e à legislação, impondo proteção específica em relações reconhecidamente desiguais.
 Pagar justamente, respeitar horários, oferecer ferramentas adequadas de trabalho e ambiente seguro, oferecer treinamento quando necessário, entre o cumprimento de outras obrigações, não é mérito do empregador, é cumprimento de dever jurídico. Empregados também têm suas questões existenciais, família, desejos e necessidades (de privacidade, espaço, respeito a horários, entre outros). Não ver esta obviedade revela nossa herança escravocrata.
Por que não se encontram pessoas negras em certos espaços, salvo servindo? Por que a sociedade – e em consequência os próprios integrantes do nosso sistema de (in)justiça, que é espelho da sociedade – julga por abandono parental a mulher que trabalha e deixa o filho adolescente em casa, mesmo sabendo que ela não tem outra opção? Qual a alternativa? Não existir?
É preciso enxergar que há uma construção social, resultado do entrelaçamento de muitos fatores que desaguam em tratamento desigual de fatos semelhantes, a depender da cor da pessoa. U
ma questão de tal complexidade que não tem saídas simples, mas não é possível deixar de buscá-las. É doloroso demais ver casos como o de João Pedro, Kauan, Ágatha, Jenifer, Kauê, entre tantas crianças vitimadas em confrontos armados. E esta é a violência mais gritante, mas há outras. Miguel, por exemplo, morto após cair do nono andar de um edifício residencial, não foi vítima de arma de fogo, mas sofreu a violência de um olhar desatento à sua vulnerabilidade enquanto criança.
E, embora o problema da morte seja o mais dramático, não basta o respeito à vida. É preciso o respeito em vida. Como o fotógrafo e ativista Marcelo Rocha mencionou em live promovida em 1º de Junho no Instagram com Gabriela Prioli, “as vidas pretas importam em vida, e não apenas quando morrem. Não queremos apenas virar camisetas”. Precisamos respeitar a vida e seus diversos modos. Reconhecer e abraçar nossa diversidade. O Brasil tem potencial para ser exemplo desta riqueza ao mundo, mas está sendo referência de intolerância e violência.
Caminhos? O Direito indica alguns – basicamente, cumprir a Constituição! Mas o Direito não pode tudo (e até mesmo atrapalha, quando é invocado para manter o status quo). Este é um desafio multidisciplinar. 
Envolve, entre muitas iniciativas necessárias, o ensino e a prática de valorização da herança africana e da negritude, a visibilidade das pessoas pretas em todas as esferas da sociedade. Precisamos ver e escutar. 
Em sugestão, alguns nomes, entre tantos valorosos: Abdias Nascimento (O genocídio do negro brasileiro – Processo de um racismo mascarado), Achille Mbembe (Necropolítica), Adilson José Moreira (Pensando como um negro – Ensaio de hermenêutica jurídica), Angela Davis (Mulheres, raça e classe), Carolina de Jesus (Quarto de Despejo), Chimamanda Adichie (Para educar crianças feministas), Conceição Evaristo (Ponciá Vicêncio), Djamila Ribeiro (Quem tem medo do feminismo negro?, Pequeno manual antirracista, e Lugar de Fala), Grada Kilomba (Memórias da plantação – Episódios de racismo cotidiano), Iray Cardone e Maria Aparecida Silva Bento (Psicologia social do racismo – Estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil), Neusa Santos Souza (Tornar-se negro), Patricia Hill Collins (Pensamento feminista negro), Rodney William (Apropriação cultural), Sidnei Nogueira (Intolerância Religiosa), e Silvio de Almeida (Racismo Estrutural).

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<a class="sdfootnotesym" style="font-family: inherit; font-style: inherit; font-variant-ligatures: inherit; font-variant-caps: inherit;" href="#sdfootnote1anc" name="sdfootnote1sym">[1]</a> Disponível em: &lt;<a href="https://www.newyorker.com/news/q-and-a/a-black-lives-matter-co-founder-explains-why-this-time-is-different">https://www.newyorker.com/news/q-and-a/a-black-lives-matter-co-founder-explains-why-this-time-is-different</a>&gt;.
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote2anc" name="sdfootnote2sym">[2]</a> Em verdade, como apontam Caroline Ramos e Irapuã Santana, o problema do racismo no Brasil é muito maior. Em 2019, por exemplo, foram mortos 253 negros nos EUA, e 4.353 negros no Brasil pelo braço armado do Estado: &lt;<a href="https://ponte.org/artigo-protestos-raciais-e-certo-comparar-brasil-e-estados-unidos/amp/">https://ponte.org/artigo-protestos-raciais-e-certo-comparar-brasil-e-estados-unidos/amp/</a>&gt;.
<div id="sdfootnote3">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote3anc" name="sdfootnote3sym">[3]</a> Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...) III - a dignidade da pessoa humana;
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: 
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
</div>

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JOTA

Este é um desafio multidisciplinar. Envolve, entre muitas iniciativas, o ensino e a prática de valorização da herança africana e da negritude

Black Lives Matter: precisamos enxergar nosso racismo para combatê-lo

Este é um desafio multidisciplinar. Envolve, entre muitas iniciativas, o ensino e a prática de valorização da herança africana e da negritude