Fernanda Santana de Souza

Pietra Vaz Diógenes da Silva

Você não leu errado. Elas podem ser e podemos provar. Antes de mais nada, reflita sobre o quão trabalhoso pode ser gerenciar uma simples horta em casa. As etapas são muitas: preparar a terra, adubar, plantar, regar, acompanhar, tratar pragas e ervas daninhas, colher – e cada tarefa tem seus macetes. Mesmo o semeio não pode ser realizado aleatoriamente para uma produção caseira de sucesso. O conhecimento tradicional mineiro já alerta para não plantar quiabo perto da hortelã e recomenda unir os canteiros de alface com os de rabanete. Existem <a href="https://ainfo.cnptia.embrapa.br/digital/bitstream/item/176716/1/folder-plantas-companheiras-na-horticultura.pdf">fundamentos científicos</a> que corroboram aquilo já há muito ensinado por meio da sabedoria tradicional, criada a partir da experiência e transmitida pelas gerações.
Utilizar características das próprias plantas para organizá-las é uma maneira simples e inteligente de potencializar o uso do solo e produzir mais. Para além da prática do <a href="https://www.gov.br/agricultura/pt-br/assuntos/sustentabilidade/organicos/fichas-agroecologicas/arquivos-producao-vegetal/6-consorcio-de-plantas.pdf">consórcio</a>, que consiste em cultivar mais de uma planta em uma mesma área simultaneamente, a lógica de usar a natureza a seu próprio favor é aprimorada quando há o manejo estratégico não só de espécies vegetais, mas de diversos agentes biológicos para proteger produções de determinadas pragas. Trata-se do controle biológico, definido como “<a href="https://www.embrapa.br/tema-controle-biologico/perguntas-e-respostas">o uso de organismos vivos para suprimir a população de uma praga específica, tornando-a menos abundante ou menos danosa</a>” pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).
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Nesse sentido, pequenos seres participantes do ecossistema em que uma plantação ou criação está inserida ganham relevância produtiva e econômica se visto a partir do seu emprego nos métodos de controle biológico: parasitoides, insetos, ácaros, bactérias, fungos, vírus, nematoides. Essa relevância está presente no plano normativo devido ao Programa Nacional de Bioinsumos e ao Conselho Estratégico do Programa Nacional de Bioinsumos, criados por meio do <a href="https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-n-10.375-de-26-de-maio-de-2020-258706480">Decreto nº 10.375, de 26 de maio de 2020</a> e coordenados pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.
As competências delimitadas na norma compreendem, entre outras, a análise da legislação correlata, de possíveis conflitos normativos e a elaboração de um marco regulatório e a consolidação de um catálogo nacional de bioinsumos. Ainda, há previsão para a criação de um Observatório Nacional de Bioinsumos, destinado à coleta, à sistematização e à divulgação de dados sobre as tendências de mercado, produção e consumo.
É uma iniciativa interessante, especialmente considerando que o campo normativo agroalimentar é um complexo sistema multinível, dotado de incoerências que muitas vezes dificultam a identificação do direito vigente e o acesso a informações sobre os temas, como identificado pelos estudos sobre <a href="https://pos.direito.ufmg.br/wp-content/uploads/2019/10/Miolo_Agroalimentar-Final.pdf">Elaboração Legislativa em Direito Agroalimentar</a> realizados pelo Observatório para a Qualidade da Lei da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
O conceito de bioinsumos trazido no referido Decreto é amplo e compreende o que são, a que são destinados e a forma como eles funcionam. Em relação à natureza dos bioinsumos, eles podem ser 1) produtos, 2) processos ou 3) tecnologias, em relação à origem, podem ser 1) vegetais, 2) animais ou 3) microbianos.
Sua destinação é diversa. Bioinsumos são utilizados na produção, no armazenamento e no beneficiamento de produtos agropecuários, nos sistemas de produção aquáticos ou de florestas plantadas. Quanto ao mecanismo de funcionamento, os bioinsumos devem atuar positivamente no crescimento, no desenvolvimento e no mecanismo de resposta de animais, plantas ou microrganismos e, ainda, interagir com produtos e os processos físico-químicos e biológicos nele envolvidos.
Um exemplo simples e acessível do uso de bioinsumos é o de joaninhas no combate aos pulgões. Capazes de comer <a href="https://www.agricultura.sp.gov.br/noticias/joaninhas-sao-eficientes-no-controle-de-pulgoes-em-hortalicas/">até 200 pulgões por dia</a>, as joaninhas têm feito jus ao seu simbolismo de boa sorte ao protagonizar pesquisas e políticas públicas que obtiveram êxito. A Universidade do Sul da Dinamarca, por exemplo, desenvolveu um projeto de <a href="https://www.sdu.dk/en/forskning/sdumechanicalengineering/researchprojects/completed+projects/ecodrone">ecodrone para espalhar joaninhas</a> e outros insetos – em vez de agrotóxicos – em áreas agrícolas. Além da simpatia e da sorte em torno da joaninha, a utilização do inseto como controle biológico envolve o fomento à pesquisa, a elaboração de políticas públicas que incentivam o emprego de conhecimentos tradicionais e mostra como é importante robustecer a legislação agroalimentar a partir dessas práticas.
Destaca-se também a experiência da França; mais especificamente, de Paris, cujo <a href="https://www.paris.fr/pages/le-saviez-vous-centre-de-production-horticole-de-rungis-6468">centro de produção hortícola</a> utiliza controle biológico e armadilhas coloridas e de feromônios como alternativa aos agentes químicos. A capital <a href="https://www.lexpress.fr/actualite/societe/environnement/40-000-coccinelles-a-paris-trois-questions-sur-une-alternative-aux-insecticides_1916348.html">distribui larvas de joaninhas para cidadãos</a> desde 2017, mesmo ano em que a <a href="https://www.legifrance.gouv.fr/jorf/id/JORFTEXT000028571536">Lei n° 2014-110, conhecida como Lei Labbé</a>, de abrangência nacional, proibiu a aplicação de agentes químicos em áreas verdes, florestas, estradas e trilhas abertas ao público em toda a França.
Em 2019, a mesma Lei passou a proibir a utilização de tais substâncias também em jardins privados franceses. Já existem esforços normativos para impedir o uso de agentes químicos também em espaços como cemitérios, parques de camping, quadras esportivas, etc., com algumas <a href="https://www.mairesdefrance.com/m/article/?id=651">exceções que abarcam áreas agrícolas</a>. É notável o esforço francês com as políticas de sustentabilidade urbana, apesar de <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/oui-nos-temos-bananas-mas-falta-sustentabilidade-16062021?amp">o cenário ser diferente em suas regiões ultramarinas</a>, o que suscita reflexões sobre a colonialidade.
Inspirada pelas ações parisienses, a Secretaria do Meio Ambiente da Prefeitura de Belo Horizonte, capital de Minas Gerais, desde 2018 mantém “<a href="https://prefeitura.pbh.gov.br/meio-ambiente/biofabrica">uma biofábrica de joaninhas e crisopídeos para o controle biológico de pragas em áreas verdes e hortas urbanas sem o uso de agrotóxicos ou pesticidas</a>.” A biofábrica funciona dentro do Parque das Mangabeiras e promove também uma agenda de educação ambiental, com palestras e exposições sobre bioinsumos e preservação ambiental.
Em um contexto mundial de expansão das preocupações com o meio ambiente, e em um cenário como o brasileiro, no qual é <a href="https://reporterbrasil.org.br/2020/05/96-agrotoxicos-sao-aprovados-durante-a-pandemia-liberacao-e-servico-essencial/">crescente a liberação de agrotóxicos</a> – <a href="https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2019/09/30-dos-ingredientes-de-agrotoxicos-liberados-neste-ano-sao-barrados-na-ue.shtml">muitos deles proibidos na União Europeia</a> –, pensar alternativas sustentáveis à utilização dessas substâncias é essencial. E, se esse é “<a href="https://ainfo.cnptia.embrapa.br/digital/bitstream/item/212490/1/CBdocument.pdf">um dos principais incentivos para o estudo e o desenvolvimento do controle biológico</a>”, também é um dos caminhos mais interessantes para um pensar agroecológico.
A agroecologia é <a href="https://www.redalyc.org/pdf/339/33925502010.pdf">um campo do saber autônomo e transdisciplinar</a>, que possui conceitos e métodos próprios para o estudo e a gestão de agroecossistemas e recursos naturais. Nesse sentido, o enfoque agroecológico visa a sustentar novos modelos de produção e desenvolvimento, unindo o conhecimento científico com outros tipos de conhecimento, como o tradicional, e agregando <a href="https://nte.ufsm.br/images/identidade_visual/PrincipiosAgroecologia.pdf">dimensões políticas, ecológicas, éticas, culturais, sociais e econômicas</a> a cada produção, por menor que seja.
Assim, “um agricultor que está interessado em produzir continuamente, no mesmo local, não pode prestar atenção apenas no seu espaço físico (....) A produção agrícola é um sistema muito mais complexo e que transcende os limites da unidade de produção individual”, como explica o <a href="https://nte.ufsm.br/images/identidade_visual/PrincipiosAgroecologia.pdf">material da Universidade Federal de Santa Maria</a> (UFSM). A agroecologia enfatiza a sustentabilidade em todas as suas etapas e de maneira sistêmica, provendo arcabouço para <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/oui-nos-temos-bananas-mas-falta-sustentabilidade-16062021?amp">a efetivação do direito humano à alimentação adequada</a>, impossível de se alcançar em uma cadeia produtiva não sustentável.
A adoção dos bioinsumos <a href="https://www.camara.leg.br/noticias/815055-especialistas-alertam-para-riscos-da-producao-de-bioinsumos-em-fazendas/">tem seus riscos</a>, especialmente acerca da biossegurança. No entanto, uma política nacional com bases agroecológicas parece ser uma alternativa promissora para produções verdadeiramente sustentáveis. Até o momento, apenas <a href="https://legisla.casacivil.go.gov.br/pesquisa_legislacao/103967/lei-21005">o estado de Goiás desenvolveu também uma política estadual</a>, que reforça a importância de uma estrutura de informação com relação aos bioinsumos ao estabelecer o Mapa Estadual da Sustentabilidade, voltado para coletar, sistematizar e divulgar dados sobre mercado, produção e consumo de bioinsumos, indicando atores envolvidos e boas práticas.
O programa goiano, no entanto, não apresenta a base orgânica e agroecológica em seus objetivos e diretrizes, como faz o <a href="https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-n-10.375-de-26-de-maio-de-2020-258706480">Programa Nacional</a>. Não parece ser uma exclusão terminológica arbitrária, mas sim uma supressão que reduz as dimensões do que se entende como sustentabilidade e limita o alcance estrutural das transformações que o controle biológico e os bioinsumos, dentro da perspectiva agroecológica, podem promover no modelo de agronegócio globalizado.
O <a href="https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-n-10.375-de-26-de-maio-de-2020-258706480">Programa Nacional de Bioinsumos</a> está em consonância com a agroecologia, que até mesmo figura como um de seus objetivos: o incentivo ao sistema orgânico de produção e de base agroecológica. Uma de suas diretrizes é exatamente a valorização da biodiversidade brasileira a partir do estímulo às experiências locais e regionais de uso e de conservação dos recursos genéticos, o que abre espaço para a agricultura familiar e as comunidades tradicionais, indispensáveis para a construção de um paradigma agroecológico.
A criação do Programa, assim como do Conselho, é um importante passo para o amadurecimento do cenário normativo agroalimentar no Brasil e para a promoção de políticas públicas setoriais e fundamentadas em práticas sustentáveis, e espera-se que seu desenvolvimento no âmbito de estados e municípios reproduzam a tendência de agroecologia e de boa gestão da informação, para o benefício da natureza e das boas práticas legislativas.

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JOTA

O Programa Nacional de Bioinsumos como um caminho para a agroecologia no Brasil

E se joaninhas fossem o centro de uma política pública?

O Programa Nacional de Bioinsumos como um caminho para a agroecologia no Brasil