Pandemia

Big Little Brother Brasil: pais quarentenados, filhos expostos e vigiados

Sharenting é o uso excessivo das mídias sociais pelos pais para compartilhar conteúdo com base em seus filhos

Crédito: Reprodução/BBB

Grande parte da população brasileira tem acompanhado os momentos finais da vigésima temporada do reality show Big Brother. A edição, que já vinha sendo festejada, teve um incremento na sua audiência a partir do momento em que as pessoas do lado de fora também foram confinadas, ou melhor, quarentenadas em virtude do coronavírus.

O BBB se tornou, assim, uma das poucas atrações de entretenimento genuinamente em tempo real, despertando paixões e torcidas nas redes sociais. No entanto, existe outro Big Brother paralelo acontecendo desde antes desta edição do reality e que agora, mais do que nunca, também está batendo recordes de audiência: o “Big Little Brother”, ou, num termo mais dogmático: Sharenting.[1]

O neologismo vem da junção das palavras de língua inglesa share (compartilhar) e parenting (cuidar, exercer a autoridade parental) e consiste, basicamente, na prática de pais ou responsáveis que postam, de maneira exagerada, em suas redes sociais, fotos, vídeos e informações dos seus filhos menores. Trata-se, portanto, de um exercício disfuncional da liberdade de expressão e da autoridade parental dos genitores, que acabam minando a privacidade de seus filhos nas redes sociais.

Não pratica sharenting o pai ou mãe que posta uma foto de seu filho para os amigos e familiares curtirem. Pratica sharenting aquele genitor que transforma a vida de seu filho em verdadeiro Big Brother, devassando a esfera mais íntima de liberdade da criança, tornando-a uma celebridade mirim sem que ela sequer tenha o direito de se insurgir, pois, na maioria dos casos, não tem o mais remoto discernimento para compreender o alcance da projeção de sua imagem nas redes sociais.

Esta prática é mais comum no meio dos chamados “influenciadores digitais”,[2] que são pessoas famosas, ou que se tornam famosas em virtude de sua atividade na internet, e se utilizam de redes sociais para produzir conteúdo que se assemelha ao de diários em tempo real.

Desse modo, os influenciadores transmitem suas vidas cotidianamente para seus seguidores, que se tornam muitas vezes íntimos da sua convivência familiar e de quem está ao seu redor. Na maioria dos casos, os influenciadores monetizam suas aparições nas redes, por meio de permutas de produtos e serviços, além de publicações patrocinadas.

Diante da relação de intimidade criada com os seguidores, a confiança naquele influenciador se destaca, o que, associado à velocidade de divulgação, permite que haja uma verdadeira explosão do consumo, pois os consumidores/seguidores têm maiores referências sobre aquele produto/serviço e também desejam copiar o estilo de vida daquele influenciador. O sucesso da atual edição do BBB, recheada de influenciadores digitais, reforça esses argumentos.

No entanto, o que se observa da prática, é que, para cativar determinado nicho de seguidores, diversos influenciadores digitais, acabam expondo também os seus filhos.

Usualmente no Instagram, o dia a dia dos filhos vai parar quase todo em transmissões (lives) e stories da plataforma: registra-se a criança quando acorda, quando chora, faz pirraça, toma banho (com as partes íntimas ocultadas), indo para a escola, divulga-se até o nome das professoras, além de serem mostrados os seus hábitos e preferências alimentares.

A criança vive, assim, num verdadeiro BBB. Em alguns casos, as crianças também participam comercialmente das postagens feitas pelos pais, tirando fotos e fazendo vídeos com produtos e serviços permutados ou patrocinados. Há, até mesmo, aqueles que são conhecidos como “influenciadores mirins”, já que possuem seus próprios canais e páginas, os quais, em tese, são alimentados pelos pais, uma vez que as plataformas, como regra, não autorizam o ingresso de menores desacompanhados.

Se esta situação já era uma realidade antes da pandemia do coronavírus, parece ter havido, tal qual no Big Brother da televisão, um aumento na audiência. Se grande parte da população, e por consequência, dos influenciadores, está em casa, a tendência natural é que esse tipo de publicação em forma de “diário pessoal” se avolume. O dia a dia em casa passa a ser um dos poucos entretenimentos que não são requentados, já que são produções feitas ao vivo e dialogam mais diretamente com os “influenciados”, que também estão quarentenados em casa, em virtude das determinações de distanciamento social.

É o momento de influenciadores fazerem lives, divulgarem aplicativos de entrega, restaurantes que estão abertos, além de promoções e vouchers de compra que estão sendo vendidos, apesar do isolamento. O problema é que boa parte desses influenciadores acaba divulgando mais que produtos: os filhos viram alvo do entretenimento. Mas será que os pais podem exibir os filhos livremente em suas publicações? Se existem limites, quais são eles?

Dando um verniz mais jurídico à questão, a presente análise se debruça sobre os limites da chamada autoridade parental, em face das novas tecnologias, especialmente das redes sociais.

A partir da constitucionalização do Direito, que também incidiu sobre o Direito Civil e, consequentemente, sobre o Direito de Família, o então chamado “pátrio poder”[3] deixou de ser tutelado como um valor em si mesmo, passando a ser concebido como um poder-dever, isto é, tornou-se um poder familiar/autoridade parental, cujo exercício, de igual hierarquia entre homem em mulher, deve ser compatibilizado com outros princípios do ordenamento, sobretudo o melhor interesse da criança e do adolescente. Daí se depreende que o poder dos pais não pode tudo, encontrando, antes, limites impostos pelo ordenamento.

Na lição de Pietro Perlingieri, a intimidade nas relações familiares, marcadas pela solidariedade, revela-se como “uma condição para o livre desenvolvimento da pessoa”[4], já que diante da situação complexa do indivíduo, que possui tanto direitos como deveres em relação aos demais componentes do núcleo familiar, cada um passa a ter em relação aos parentes próximos o direito “a que fatos e comportamentos de natureza existencial, relativos a ele e à sua família em sentido lato, não sejam divulgados ao externo.”[5]

Despontam, assim, duas ordens de questionamentos: num primeiro momento, os aspectos de matriz existencial reforçam a necessidade de tutela da privacidade e intimidade dos menores expostos nas redes sociais, que acabam sendo, de certa forma, vulnerados pelos pais que revelam ao grande público detalhes íntimos de suas personalidades, gerando reações e, por que não dizer, paixões para o bem e para o mal de seus seguidores: “que criança fofa” ou “que criança chata”. Quais são os possíveis danos para o desenvolvimento da personalidade de crianças que crescem aos olhos do grande público? Há um dano indenizável?

Por outro lado, há questões eminentemente patrimoniais (artigos 1.689 e seguintes do Código Civil), como saber se eventual remuneração recebida pelos pais pela cessão ou exploração da imagem dos filhos está sendo revertida em benefício das crianças.

Além disso, há que se questionar o que deve ser feito caso um dos genitores (ou mais de um, no caso de multiparentalidade) não concorde com a exploração da imagem do menor pelas redes sociais.

Seria o Poder Judiciário o locus para resolver este impasse quanto ao exercício da autoridade parental, na forma do parágrafo único do artigo 1.631 do Código Civil e do artigo 21 do Estatuto da Criança e do Adolescente/ECA, Lei nº 8.069/90? Como resolver esta questão em tempos de isolamento social? Qual dos pais vai ser “eliminado no paredão”?

Como se tem diuturnamente reafirmado em doutrina, as crianças são pessoas humanas em desenvolvimento, cuja vulnerabilidade demanda uma tutela ainda mais intensa por parte do Direito. Faz-se preciso, assim, antecipar-se ao momento patológico, quando o conflito chega ao Judiciário, observados os limites para intervenção estatal[6], por meio também do Ministério Público.[7]

Deve-se, pois, lançar luzes sobre a condução de uma parentalidade responsável, que, funcionalizada ao melhor interesse da criança e cumprindo o “dever de fiscalização e educação que compõem o conteúdo da autoridade parental”[8], atue na emancipação da criança, auxiliando-a na tomada de decisões, não mais como um censor com poder de vida e morte, mas como um membro do grupo familiar, com direitos e deveres.

Isso porque, em muitos casos, a interação da criança com as redes sociais é sadia e ser influenciador mirim é motivo de felicidade e inserção social para ela. Daí a necessidade de se avaliar a questão sob o prisma do seu melhor interesse, reconhecendo-lhe algum grau de autonomia.

Percebe-se, assim, que não é só o Big Brother da televisão que está entretendo a população, e a casa dos Estúdios Globo não é a única vigiada do Brasil. A diferença é que os big brothers e sisters da TV são maiores, capazes e assinam contratos.

Já os little brothers e sisters da vida real, em muitos casos, sequer têm conhecimento que já são famosos e que as fotos que seus pais compartilharam viraram figurinhas de WhatsApp, circulando pelo mundo. Quais os riscos e os custos da “espiadinha” de milhões de pessoas na casa das crianças? Já é tempo de despertar para este fenômeno, dando-lhe a devida importância e ressaltando que a infância não deve ser entretenimento lucrativo para os pais. É, ao contrário, cuidado, proteção, empoderamento, e, sobretudo, um gesto de amor.

 


[1] Sobre o tema, recomenda-se: EBERLIN, Fernando Büscher von Teschenhausen. Sharenting, liberdade de expressão e privacidade de crianças no ambiente digital: o papel dos provedores de aplicação no cenário jurídico brasileiro, In: Rev. Bras. Polít. Públicas, Brasília, v. 7, nº 3, 2017, pp. 265-267.

[2] MEDON AFFONSO, Filipe José. Influenciadores digitais e o direito à imagem de seus filhos: uma análise a partir do melhor interesse da criança. In: Revista Eletrônica da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, v. 2, nº. 2, 2019. Disponível em: <https://revistaeletronica.pge.rj.gov.br:4432/atualidades/2019/08/influenciadores-digitais-e-o-direito-a-imagem-de-seus-filhos-uma-analise-a-partir-do-melhor-interesse-da-crianca> Acesso em 02 mai. 2020.

[3]“Contemplado pelo Código Civil de 1916 sob a designação de pátrio poder, o instituto refletia a orientação hierarquizada e patriarcal que enxergava no pai o chefe da família, submetendo ao seu comando e arbítrio os filhos. O pátrio poder fincava raízes no patria potestas dos romanos, ‘dura criação de direito despótico’, que se assemelhava a autêntico direito de propriedade sobre os filhos”. (SCHREIBER, Anderson. Manual de Direito Civil Contemporâneo. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 863).

[4] PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Tradução: Maria Cristina de Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 850.

[5] PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Tradução: Maria Cristina de Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 850.

[6] Recomenda-se, nesse sentido: MULTEDO, Renata Vilela. Liberdade e família: limites para a intervenção do Estado nas relações conjugais e parentais. Rio de Janeiro: Processo, 2017.

[7] BARBOZA, Heloisa Helena. O poder discricionário do Ministério Público na avaliação dos interesses indisponíveis, In: Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, vol. 1, n. 2, jul.-dez. 1995.

[8] TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RETTORE, Anna Cristina de Carvalho. A autoridade parental e o tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes.  In: TEPEDINO, Gustavo; FRAZÃO, Ana; OLIVA, Milena Donato (coords.). Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais e suas repercussões no Direito Brasileiro. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 523.