Marina Senese

A economia digital nos traz inúmeros desafios regulatórios. Afinal, devemos regular plataformas digitais? Se sim, como preservar a inovação? Para responder a essas e outras perguntas, <a href="https://www.jota.info/tributos-e-empresas/regulacao/da-persuasao-ao-vicio-direito-concorrencial-e-regulacao-das-plataformas-digitais-08062021">diversos estudiosos estão se debruçando e produzindo importantes conteúdos sobre a temática</a>.
Para contribuir ao tema, este artigo aborda alguns pontos importantes sobre o poder dos dados para as big techs na economia digital.
De início, cabe uma importante ponderação: o caminho a ser escolhido deve ser o resultado de um esforço contínuo e interdisciplinar sobre a adequação entre institutos jurídicos tradicionais, a realidade brasileira e a inovação na era das plataformas digitais, <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/fronteiras-concorrencia-regulacao/caminhos-e-atalhos-na-regulacao-de-plataformas-27112022">sem atalhos temerários</a>.
No contexto da economia digital, o big data é uma ferramenta extremamente relevante. O termo foi criado para expressar um conjunto massivo de dados capaz de qualificar uma série de variáveis informacionais que, uma vez processadas, fornecem resultados altamente acurados para tomada de decisão nos mais diversos segmentos da sociedade. Esse processamento massivo de dados só é possível graças ao avanço das tecnologias digitais. Com o uso de computadores de alto desempenho e inteligência artificial, torna-se viável a padronização de dados esparsos.
Roberto Augusto Castellanos Pfeiffer compreende que não há uma definição unívoca para a expressão big data, de modo que o tema deve, sobretudo, ser analisado como uma estratégia de “impulsionamento da economia digital”.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> Estratégia essa que tem repercutido em uma grande concentração da atividade digital diária na internet ao redor do mundo.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>
É sabido que algumas empresas dominam a presença digital e induzem nossos comportamentos e a nossa forma de interação com a própria internet. São as big techs, como Facebook e Google, plataformas consolidadas, que já chamaram a atenção das autoridades concorrenciais quanto ao impacto de seus modelos de negócios em casos paradigmáticos, como, por exemplo, o Google/DoubleClick e a FitBit, ou a aquisição do WhatsApp pelo Facebook. Mas o mercado está sendo movimentado com a grande presença de plataformas de entretenimento como o TikTok, aplicativo de vídeos curtos que hoje conta com cerca de 1 bilhão de usuários ativos mensalmente<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> e com grande adesão de usuários menores de idade. O que tem gerado preocupações também dos órgãos de proteção da privacidade infantil.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>
Tal como esclarece Pfeiffer<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>, os dados possuem um importante valor econômico a ensejar uma análise também na perspectiva concorrencial. Esse valor econômico dos dados, contudo, deve ser balanceado diante do elevado risco na captura de dados de grupos vulneráveis, como, por exemplo, de crianças e adolescentes.
Em termos de volume e variedade, a coleta de dados é gerada a partir de todas as atividades de usuários na internet. Para se ter uma dimensão do acúmulo de informações produzidas por todas essas interações, Sagiroglu e Sinanc explicam que, até 2003, os humanos criaram 5 exabytes de dados, mas, hoje, essa mesma quantidade é produzida em apenas dois dias, tornando o big data realmente “big”.<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>
Há diversas estratégias de obtenção de dados, uma vez que os modelos de negócios das plataformas digitais precisam do big data. Contudo, o modelo preço zero ao usuário final é o mais adotado porque possibilita grande adesão e escalabilidade do negócio. Esse modelo costuma exigir, em troca do serviço ou produto gratuito, o consentimento dos usuários para coleta e tratamento de dados por meio de termos de uso.<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>
Em virtude do modelo de negócios dessas plataformas, o tratamento dos dados coletados costuma ter como finalidade a publicidade. Sobre a questão, Marcela Mattiuzzo esclarece que “[o]s dados pessoais são um ativo para muitas empresas e, em particular para aquelas que, como a Google<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>, centram seu modelo de negócio na publicidade online”.<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>
Essa ideia de dados como um ativo é essencial para o retorno financeiro dessas plataformas digitais. Isso ocorre porque, segundo Pfeiffer, os dados pessoais, uma vez tratados, permitem um direcionamento bastante preciso de oferta de produtos e serviços.<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>
Para atrair usuários, especialmente o público infanto-juvenil, dentro do modelo de preço zero, é comum que plataformas utilizem o modelo “freemium”, que decorre da disponibilização de serviços com uma versão gratuita (free) e outra com assinatura (premium). Na versão gratuita, existirá um limite de experiência do usuário com a plataforma, exigindo em troca do serviço gratuito a coleta de seus dados. Na versão premium, o usuário terá uma experiência melhor, uma vez que seus dados serão usados para melhorar a oferta de serviços e produtos, suprindo a sua necessidade.<a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a> No entanto, Beatriz Kira reforça que “não existe almoço grátis”, uma vez que o custo zero dessas plataformas digitais decorre da extração dos dados pessoais dos usuários de maneiras diferentes.<a href="#_ftn12" name="_ftnref12">[12]</a> No caso de plataformas utilizadas majoritariamente por crianças, o consentimento sobre os termos de uso e coleta de dados prescinde da responsabilidade parental, o que não quer dizer, que os riscos da coleta massiva de dados estão automaticamente afastados.
A dinâmica de captura massiva de dados pode repercutir de diversas maneiras no ambiente concorrencial. Há impactos positivos, gerando inovação tecnológica e aumentando a competição, mas também, impactos negativos, concentrando mercados, criando monopólios, bolhas de informação, assimetria na entrada de novos players, com repercussões aos consumidores que podem se tornar vulneráveis a práticas abusivas.
Nesse sentido, Zanatta e Abramovay explicam que “[o] que está em jogo não é apenas o poder de mercado dos gigantes digitais contemporâneos, mas a formação de um sistema econômico apoiado inteiramente na coleta, na armazenagem e na análise de dados pessoais".<a href="#_ftn13" name="_ftnref13">[13]</a>
Essas gigantes digitais, atuam com grande influência na sociedade, de modo que, em uma perspectiva concorrencial, podem contribuir para a criação de monopólios digitais.
De acordo com Beatriz Kira, uma das possíveis condutas de alavancagem de forma anticompetitiva das big techs está na concentração de dados de forma proposital, criando-se monopólios de dados. Entretanto, Kira explica que “[o] fato de uma empresa ser muito grande ou ter muitos dados não deve ser considerado uma questão competitiva por si só, mas o abuso dessa posição de domínio de dados pode suscitar preocupações das autoridades de concorrência”.<a href="#_ftn14" name="_ftnref14">[14]</a>
A Gafa (acrônimo para Google, Apple, Facebook e Amazon), por exemplo, representa um modelo econômico de dominância persistente. Esse modelo explora os efeitos de rede indiretos para mercados de dois lados, com restrição de compatibilidade e interoperabilidade entre seus produtos e componentes, como forma de manter seu modelo dominante. Tais estratégias ilustram a construção de um poder de mercado e dominância.<a href="#_ftn15" name="_ftnref15">[15]</a>
A exemplo do que já está sendo feito, os estudos na temática têm destacado as reformas na legislação de defesa da concorrência na Alemanha. Conforme aduz Pfeiffer, o órgão federal antitruste alemão, Bundeskartellamt, recomendou uma maior compreensão do controle sobre dados estratégicos como possível forma de constituição de posição dominante.<a href="#_ftn16" name="_ftnref16">[16]</a> O que, posteriormente, resultou na alteração da legislação atinente ao tema e passou a ser aplicada pelo Bundeskartellamt, como ocorreu no caso Facebook, em que a autoridade reconheceu abuso de posição dominante por compartilhamento compulsório de dados de terceiros.<a href="#_ftn17" name="_ftnref17">[17]</a>
Pfeiffer explica que o raciocínio da autoridade antitruste alemã ressaltou que o “poder de mercado revelava-se pela capacidade da plataforma impor condições contratuais desfavoráveis aos seus consumidores, extraindo mais dados do que seria lícito”.<a href="#_ftn18" name="_ftnref18">[18]</a>
Desse modo, nota-se o especial impacto do big data na dinâmica concorrencial das plataformas digitais. Tal perspectiva é relevante para compreender os desafios e possibilidades de entrada de novos players no mercado.
Com a consolidação de big techs como Facebook, Instagram e Google, novas plataformas estão provocando uma disrupção dentro da disrupção.<a href="#_ftn19" name="_ftnref19">[19]</a> O TikTok, por exemplo, traz evidências de um novo momento para as plataformas digitais, no uso de algoritmos e do big data. Dentro do contexto das plataformas digitais e a coleta de dados massiva, a proteção de dados pessoais de pessoas vulneráveis é assunto que demanda atenção extra. Especialmente porque as plataformas de entretenimento são voltadas ou, ao menos, possuem maior adesão por crianças e adolescentes, como é o caso do TikTok, Discord e Twitch.
Dessa forma, as reflexões sobre a regulação das plataformas devem também levar em consideração a defesa da concorrência na economia digital, especialmente na forma com que essas plataformas digitais utilizam o big data para preservar sua posição e poder de mercado. A opção regulatória a ser escolhida deve levar a adequação e, eventualmente, ressignificação dos institutos tradicionais. Nesse sentido, Kira esclarece que "a defesa da concorrência exige um arranjo institucional que seja flexível o suficiente para fomentar a inovação tecnológica”.<a href="#_ftn20" name="_ftnref20">[20]</a> Essa flexibilidade deve ser conduzida de forma interdisciplinar e levando em consideração os desafios próprios impostos pelo cenário nacional.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> PFEIFFER, Roberto Augusto Castellanos. Direito da concorrência, plataformas digitais e dados pessoais. Tese de Livre-docente em direito comercial (Edital FD 08/2021). Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2021, p. 61.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Passamos em média 2 horas e 27 minutos por dia conectados em redes sociais como Facebook e Instagram. KEMP, Simon. Digital 2022: Global Overview Report, 26 jan. 2022. Data Report, 2022.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Hootsuite. The Global State of Digital 2022 (July 2022). Disponível em: https://www.hootsuite.com/en-GB/resources/digital-trends-q3-update.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> BEUC. BEUC files complaint against TikTok for multiple EU consumer law breaches. BEUC. 15 fev, 2021. Disponível em: <a href="https://www.beuc.eu/press-releases/beuc-files-complaint-against-tiktok-multiple-eu-consumer-law-breaches">https://www.beuc.eu/press-releases/beuc-files-complaint-against-tiktok-multiple-eu-consumer-law-breaches</a>
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> PFEIFFER, Roberto Augusto Castellanos. Direito da concorrência, plataformas digitais e dados pessoais, 2021, p. 59-60.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> SAGIROGLU, Seref; SINANC, Duygu. Big data: A review. In: 2013 international conference on collaboration technologies and systems (CTS). IEEE, pp. 42-47, 2013, p. 43.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Sobre os riscos potenciais do consentimento de termos de uso, ver: CARNEIRO, Ramon, Mariano. “Li e aceito”: violações a direitos fundamentais nos termos de uso das plataformas digitais. In: Revista Internet &amp; Sociedade, n. 1, vol. 1, Fevereiro de 2020.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> A Google é uma empresa que disponibiliza a preço zero uma infinidade de recursos e funcionalidades desde a ferramenta de busca principal de acesso dos usuários da internet ao redor do mundo, passando pelo e-mail (gmail), arquivamento de dados em nuvem (drive), até geolocalização (maps).
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> No original “Personal data is an asset for many companies, and particularly for those which, like Google, center their business model on online advertising.” MATTIUZZO, Marcela. Propaganda online e privacidade – O varejo de dados pessoais na perspectiva antitruste. Revista do Ibrac – Direito da Concorrência, Consumo e Comércio Internacional, São Paulo, v. 26, p. 295-314, 2014, p. 195.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> PFEIFFER, Roberto Augusto Castellanos, 2021, p. 72.
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> PFEIFFER, Roberto Augusto Castellanos, 2021, p. 72.
<a href="#_ftnref12" name="_ftn12">[12]</a> KIRA, Beatriz. A defesa da concorrência na era digital: desafios práticos e teóricos em face das plataformas de internet (Competition policy in the digital age: challenges in the context of internet platforms). Revista Direito e as Novas Tecnologias-RDTec, v. 2. n. 2, 2019, p. 5.
<a href="#_ftnref13" name="_ftn13">[13]</a> ZANATTA, Rafael AF; ABRAMOVAY, Ricardo. Dados, vícios e concorrência: repensando o jogo das economias digitais. Estudos avançados, v. 33, p. 421-446, 2019, p. 431.
<a href="#_ftnref14" name="_ftn14">[14]</a> KIRA, Beatriz. A defesa da concorrência na era digital: desafios práticos e teóricos em face das plataformas de internet, 2019, p. 7.
<a href="#_ftnref15" name="_ftn15">[15]</a> CIRIANI, Stephane, LEBOURGES, Marc. The Market Dominance of US Digital Platforms: Antitrust Implications for the European Union (April 20, 2018), p. 9-10.
<a href="#_ftnref16" name="_ftn16">[16]</a> PFEIFFER, Roberto Augusto Castellanos, 2021, p. 106.
<a href="#_ftnref17" name="_ftn17">[17]</a> “Using and actually implementing Facebook’s data policy, which allows Facebook to collect user and device-related data from sources outside of Facebook and to merge it with data collected on Facebook, constitutes an abuse of a dominant position on the social network market in the form of exploitative business terms pursuant to the general clause of Section 19(1) GWB. Taking into account the assessments under data protection law pursuant to the General Data Protection Regulation (GDPR), these are inappropriate terms to the detriment of both private users and competitors.” Bundeskartellamt prohibits Facebook from combining user data from different sources. Disponível em: <a href="https://www.bundeskartellamt.de/SharedDocs/Meldung/EN/Pressemitteilungen/2019/07_02_2019_Facebook.html">https://www.bundeskartellamt.de/SharedDocs/Meldung/EN/Pressemitteilungen/2019/07_02_2019_Facebook.html</a>.
<a href="#_ftnref18" name="_ftn18">[18]</a> PFEIFFER, Roberto Augusto Castellanos, 2021, p. 107.
<a href="#_ftnref19" name="_ftn19">[19]</a> Cf. NEWPORT, Cal. TikTok and the fall of social-media giants. The New Yorker. 28 jul. 2022. Disponível em: <a href="https://www.newyorker.com/culture/cultural-comment/tiktok-and-the-fall-of-the-social-media-giants">https://www.newyorker.com/culture/cultural-comment/tiktok-and-the-fall-of-the-social-media-giants</a>.
<a href="#_ftnref20" name="_ftn20">[20]</a> KIRA, Beatriz, 2019, p. 8.

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