Carlos Alberto Vilhena
Procurador Federal dos Direitos do Cidadão

Desde 2002, um dos programas mais populares da TV brasileira é o Big Brother Brasil (BBB), um reality show em que pessoas são confinadas em uma casa e monitoradas por câmeras de vídeo 24 horas por dia, sete dias por semana. A audiência, a cada rodada, elimina por meio do voto um(a) dos(as) participantes, até sobrar apenas o(a) vencedor(a), que recebe uma bolada em dinheiro.
O que talvez boa parte da audiência não saiba é que o nome do reality faz alusão ao personagem Grande Irmão (Big Brother) do romance distópico 1984, escrito pelo britânico George Orwell.
O Grande Irmão é o líder de Oceânia, potência em que as pessoas são monitoradas todo o tempo e em todo lugar por teletelas, aparelhos parecidos com televisores, mas que também funcionam como câmeras. O Big Brother sempre vigia a população, daí o nome do programa da TV.
Oceânia é uma ditadura. Como todo regime autocrático, viola direitos humanos e busca manipular as memórias, alterando constantemente jornais arquivados, conforme seus interesses: fatos ocorridos são negados e substituídos por outros, novos em folha, com a finalidade de modificar os registros do passado. Nas palavras do narrador de 1984: “Quem controla o passado controla o futuro; quem controla o presente controla o passado”.[1]
Refazer o passado, ou esquecê-lo, é instrumento comum dos regimes ditatoriais, não importa sua ideologia. Nas nações acometidas pelo mal da autocracia, tentar “varrer para baixo do tapete” as atrocidades ali cometidas é quase uma regra.
No Brasil, infelizmente esse objetivo tem sido atingido. No período final da ditadura militar, a aprovação da Lei 6.683/1979 – conhecida como Lei da Anistia – isentou de pena os agentes do Estado que cometeram, entre 2 de setembro de 1961 e 15 agosto de 1979, quaisquer tipos de crimes, inclusive os de tortura e assassinato.[2]
Em 2010, o Supremo Tribunal Federal (STF), ao julgar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 153, decidiu que o artigo 1º dessa lei, justamente o que concedia a anistia irrestrita a todos os crimes, era constitucional.[3]
Qualquer democrata respeita a decisão de nossa corte mais alta, mas qualquer defensor dos direitos humanos não pode aceitá-la graciosamente. Nossa constituição estabelece como princípio a dignidade do ser humano, repudiando a tortura e a pena de morte, posicionamento antagônico ao entendimento do Supremo.
A decisão do STF impediu a persecução penal de todos os agentes estatais cometedores de crimes comuns, deixando intocados um conjunto atroz de violações aos direitos humanos.
Barrientos-Parra & Mialhe, em um artigo sobre a ADPF 153, definem bem a decisão do STF: Mais preocupado com a afirmação da governabilidade, estabilidade social, ordem, segurança ou valores semelhantes, de fato, o Supremo Tribunal Federal paradoxalmente abdicou do valor justiça.[4]
No mesmo artigo, os autores sublinham o fato de a decisão do STF colidir frontalmente com o entendimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que declarou a Lei de Anistia incompatível com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos[5], promulgada no Brasil em 1992.
Na prática, o acolhimento da Lei de Anistia inviabilizou em grande medida no Brasil o estabelecimento em bases mais robustas de uma Justiça de Transição.
A Organização das Nações Unidas define esse conceito como o conjunto de processos e mecanismos, jurídicos ou não, usados por uma sociedade para superar um legado de violações de direitos humanos em larga escala, de forma a garantir a responsabilização dos autores dos crimes, a administração da justiça e a reconciliação social.[6] Sem julgamentos, como haver justiça transicional plena?
A decisão do STF facilitou também, em certa medida, a possibilidade da criação de versões alternativas sobre os anos de chumbo no Brasil. Narrativas falaciosas exaltando o período de exceção, criando um falso passado glorioso para nosso país e construindo uma cultura de repúdio aos direitos humanos.
A tentativa de alteração histórica se reflete até mesmo na fala de um ministro do Supremo, feita em outubro de 2018: na ocasião, ele disse não mais se referir aos eventos de 1964 como “golpe militar” ou “revolução”, mas como um “movimento” [7]. A escolha desse termo claramente esvazia o significado de ruptura institucional ocorrida naquele ano.
Até o ano passado, as Forças Armadas celebravam a quebra do regime democrático ocorrida em 1964, num comportamento no mínimo afrontoso ao Estado democrático de Direito.
Do mesmo modo, o mais notório torturador do período militar, Carlos Alberto Brilhante Ustra, é saudado como herói por pessoas que lideraram o Executivo brasileiro entre 2019 e 2022. A impunidade cria o paradoxo de mandatários de um Estado democrático louvarem um violador de direitos humanos.
A tortura em si tornou-se prática comum por agentes do Estado. Ao visitar o Brasil em 2015, o então relator da ONU para esse tema, Juan Méndez, foi categórico ao afirmar que a tortura em presídios e na atuação policial era instrumento herdado da ditadura militar.[8]
Apesar disso, há avanços no combate à impunidade dos violadores de direitos humanos e no conhecimento da verdade quanto ao período militar.
O Ministério Público Federal (MPF), desde 1999, atua incansavelmente em prol da responsabilização de agentes estatais que torturaram, estupraram e mataram durante o regime militar. A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), órgão do MPF, mantém um grupo de trabalho dedicado a conservar a memória e divulgar a verdade sobre aquele período.
Além disso, a Comissão Nacional da Verdade (CNV), instituída em 2012 pelo governo federal, apurou as violações de direitos humanos entre 1946 e 1988, concentrando-se especialmente naquelas ocorridas durante o regime iniciado em 1964.
A partir desses esforços, foi possível não só denunciar as violações de direitos humanos cometidas por agentes do Estado, mas também expor a colaboração da sociedade civil, destacadamente a de empresas, com o regime de exceção.
Em 2020, a Volkswagen firmou Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Ministério Público, comprometendo-se a pagar 36 milhões de reais por ter colaborado com a ditadura.[9] Assim como ela, foram identificadas cerca de 80 empresas que igualmente cooperaram com o regime de exceção brasileiro, conforme informações da Comissão Nacional da Verdade.[10]
Em outra frente, o Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2) decidiu, em março deste ano, que um carcereiro da chamada Casa da Morte, em Petrópolis (RJ), seja processado por estupro, sequestro e tortura. Antônio Waneir Pinheiro de Lima, também conhecido como Camarão, fora absolvido em primeira instância com base na lei de anistia e na prescrição dos crimes cometidos.
Na apreciação de recurso apresentado pelo Ministério Público, o TRF2 entendeu que devem ser aplicados os princípios da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, segundo os quais o Brasil deve seguir as decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos, cujo entendimento é de que crimes contra a humanidade cometidos por agentes do Estado não podem ser favorecidos por leis de anistia ou por prescrição.[11]
É oportuno abrir um parêntese em relação à Casa da Morte: ela foi tombada em 2018, com a finalidade de se tornar um lugar de memória das violações ocorridas durante a ditadura[12]. Em 2020, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) anulou o tombamento, em resposta a um mandado de segurança impetrado pelos proprietários do imóvel[13]. Em 2021, o STJ confirmou a perda do tombamento em nível municipal[14]. Porém, no último dia 26 de junho, o Instituto Estadual do Patrimônio Cultural, declarou o tombamento provisório do imóvel, reacendendo a esperança de que este local seja transformado em memorial[15].
Feita tal digressão, é relevante mencionar que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) analisa recurso sobre indenização a ser paga pelas herdeiras de Brilhante Ustra à família do jornalista Luiz Eduardo Merlino, torturado e morto pelo militar em 1971[16]. Trata-se de caso emblemático de responsabilização civil por violação de direitos humanos.
Esses são primeiros passos para o estabelecimento de uma Justiça de Transição possível no contexto brasileiro. Lutar pelo restabelecimento e divulgação da verdade, bem como pela responsabilização, ainda que civil, dos autores de crimes contra a humanidade mostra-se fundamental a uma maior solidez de nossa democracia.
Sem responsabilização, o ambiente democrático segue ameaçado, pois os amantes da autocracia buscam restabelecê-la. Foi isso que vimos em 8 de janeiro, quando houve uma nova tentativa de ruptura institucional, com a invasão e depredação das sedes dos Três Poderes em Brasília. A impunidade traz também a repetição do delito.
Com o intuito de debater essa problemática, a PFDC participou da Reunião Regional sobre Verdade, Justiça, Reparação e Garantias de Não Repetição, ocorrida em Santiago, no Chile, em junho e promovida pelo escritório do Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU.
Na ocasião discutiram-se os gargalos para o progresso da Justiça de Transição no Cone Sul, com enfoque especial nas experiências argentina, chilena e uruguaia. Mesmo depois de décadas do fim de regimes autocráticos nesses países, a preocupação com a verdade e a justiça permanecem em pauta, especialmente no sentido de evitar que as barbaridades de outrora se repitam.
A democracia neste país jamais estará plenamente consolidada enquanto não encararmos os fantasmas do regime militar. Esquecer o ocorrido na ditadura é apagar da memória as atrocidades ali patrocinadas, é deixar o passado em branco, pronto a ser reescrito por quem deseja ou ocupa o poder. Quem controla o passado, controla o futuro. Se não cuidarmos de nosso passado, que futuro teremos?
[1] ORWELL, George. 1984. São Paulo, Companhia das Letras, 2009.
[2] Lei 6.683/1979, art. 1º. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6683.htm. Acesso em 22/06/2023.
[3] https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=612960. Acesso em 23/06/2023.
[4] BARRIENTOS-PARRA, Jorge e MIALHE, Jorge Luís. Lei de Anistia – Comentários à sentença do Supremo Tribunal Federal no caso da ADPF 153. Revista de Informação Legislativa ano 49, nº 194 abr/jun 2012. Disponível em https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/49/194/ril_v49_n194_p23.pdf. Acesso em 26/06/2023.
[5] BARRIENTOS-PARRA, Jorge e MIALHE, Jorge Luís. Lei de Anistia – Comentários à sentença do Supremo Tribunal Federal no caso da ADPF 153. Revista de Informação Legislativa ano 49, nº 194 abr/jun 2012. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/49/194/ril_v49_n194_p23.pdf. Acesso em 26/06/2023.
[6] https://justicadetransicao.mpf.mp.br/entenda. Acesso em 26/06/2023.
[7] https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2018-10/toffoli-diz-que-militares-fizeram-movimento-e-nao-golpe- em-1964. Acesso em 26/06/2023.
[8] https://oglobo.globo.com/politica/relator-da-onu-diz-que-tortura-nos-presidios-do-brasil-heranca-da-ditadura-militar- 17187364. Acesso em 26/06/2023
[9] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/09/volkswagen-ira-desembolsar-r-36-milhoes-por-ter-entregado- funcionarios-a-ditadura.shtml. Acesso em 27/06/2023.
[10] https://brasil.elpais.com/brasil/2014/09/08/politica/1410204895_124898.html. Acesso em 26/06/2023.
[11] https://www.mpf.mp.br/rj/sala-de-imprensa/noticias-rj/ditadura-militar-carcereiro-da-casa-da-morte-deve-responder- por-tortura-e-estupro-decide-justica. Acesso em 27/06/2023.
[12] https://g1.globo.com/rj/regiao-serrana/noticia/2018/12/16/casa-da-morte-no-rj-e-tombada-e-transformada-em-patrimonio-para-preservar-historia-da-ditadura.ghtml. Acesso em 29/06/2023.
[13] https://www.conjur.com.br/2020-jan-30/tombamento-casa-morte-anulado-tj-rj. Acesso em 29/06/2023.
[14] https://tribunadepetropolis.com.br/noticias/justica-nega-novo-recurso-e-casa-da-morte-perde-o-tombamento/. Acesso em 29/06/2023.
[15] http://www.ioerj.com.br/portal/modules/conteudoonline/mostra_edicao.php?session=VFRCVk0xSlVXa1ZPVkZsMFRYcEplbEZUTURCT2VsSkRURlZLUlZKRWEzUk9hbFpHVGxSbk5GSnJXWHBSYW1oR1RWUlpORTlFUVR GT1ZFVXdUMUU5UFE9PQ==. Acesso em 29/06/2023.
[16] https://agenciabrasil.ebc.com.br/justica/noticia/2023-06/stj-adia-julgamento-de-recurso-para-restabelecer- condenacao-de-ustra. Acesso em 27/06/2023.