Paulo Fernando Pinheiro Machado

<blockquote class="jota-article__quote">“Até hoje temos vivido sob a influência de uma legislação, parte estrangeira e parte nacional, heterogênea às Instituições juradas pela Nação, própria só por isso mesmo para demorar a nossa civilização, retardar o engrandecimento da nossa indústria, e por consequência de nossa riqueza, e opulência Nacional.”
<footer class="jota-article__quote-cite">Francisco Gê Acayaba de Montezuma (1843)</footer>
</blockquote>
2022 é realmente um ano especial para o Brasil. A leitora atenta desta coluna já deve ter percebido que nem bem chegamos à metade do ano e a quantidade de efemérides significativas salta aos olhos. Nesta semana foi a vez da celebração do bicentenário da criação do Ministério da Justiça que, em 3 de julho de 1822, constituía-se como a primeira pasta do Brasil, antes mesmo da declaração de nossa independência às margens do rio Ipiranga em 7 de setembro do mesmo ano.
A criação da Secretaria de Estado dos Negócios da Justiça foi um marco fundamental no processo de independência nacional, constituindo-se como uma consequência direta do famoso Dia do Fico. Como a leitora deverá se recordar, ao findar a dominação francesa sobre Portugal, inicia-se, na metrópole, um processo de constitucionalismo que culmina com a Revolução do Porto (1820), que exige o retorno da família real para Lisboa e a recolonização do Brasil, que em 1815 havia sido elevado ao status de Reino Unido a Portugal e Algarves.
Assim, para não perder o trono de Portugal, D. João VI atende ao chamado das cortes e retorna em abril de 1821, deixando seu filho, D. Pedro I, como regente, já com o intuito de conduzir o processo de independência sob a unidade monárquica. “Pedro, se o Brasil se separar, antes seja para ti, que me hás de respeitar, que para alguns desses aventureiros,” teria dito D. João VI a seu filho antes de partir.
Em janeiro de 1822, as cortes de Lisboa exigiram também o retorno de D. Pedro I, o que significaria a recolonização do Brasil. Aconselhado por José Bonifácio de Andrada e Silva, o “patriarca da independência”, D. Pedro I recusa-se a aceitar o ultimato e, em 9 de janeiro de 1822, declara publicamente sua famosa frase: “se é para o bem de todos e felicidade geral da nação, estou pronto. Diga ao povo que fico.” A independência era uma questão de tempo. Antes, contudo, era preciso por ordem na casa. Como tudo nesta vida, não seria fácil.
O Brasil singulariza-se, entre as nações contemporâneas, por uma série de especificidades, isto é, situações político-sociais incomuns, que aqui tornaram-se o marco da nossa nacionalidade. Em primeiro lugar, está o <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/brasil-assumiu-fragilidade-logistica-virar-costas-tradicao-maritima-21012022">processo de interiorização da metrópole, magistralmente analisado pela professora Maria Odila da Silva Leite Dias e já abordado aqui nesta coluna</a>, pelo qual, com a vinda da família real para o Rio de Janeiro em 1808, inverteu-se os termos da relação metrópole-colônia, transformando o Brasil no centro do Reino Unido<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Uma outra especificidade importante em nosso processo de construção nacional foi o fato de que, no Brasil, a independência se produziu antes da formação do Estado e da nação. Ao passo em que na maioria dos processos nacionais, uma nação singularmente identificada inicia um processo de independência e, em seguida, um processo de construção do Estado, aqui se deu o contrário. Ficamos primeiro independentes para, em seguida, construirmos um Estado e, somente depois disso, iniciarmos um processo de construção de uma identidade nacional, processo esse no qual ainda hoje estamos envolvidos.
E nesse processo de construção do Estado brasileiro, a criação da Secretaria de Estado dos Negócios da Justiça, em 3 de julho de 1822, antes mesmo da proclamação da independência, adquiri uma significação fundamental. No momento de nossa independência, o Brasil não possuía nem uma estrutura jurídica, nem uma administração judiciária próprias para a sua realidade concreta. À parte de algumas adaptações das Ordenações Filipinas, não havia um Direito brasileiro que pudesse servir de estrutura fundamental para a construção do Estado e da nação do Brasil. Faltava, em suma, um projeto nacional.
A fundação da pasta da Justiça, assim, foi o primeiro passo concreto na construção do Estado brasileiro e de estruturação de um projeto nacional. A função primordial do Ministério da Justiça, na sua concepção, era a de dotar o país nascente de um Estado moderno, baseado na racionalização do Direito e na garantia das liberdades individuais.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> Como já tivemos a oportunidade de salientar em <a href="https://www.editorajc.com.br/justica-e-diplomacia-na-formacao-do-brasil/">artigo para a Revista Justiça e Cidadania</a><a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, o Brasil nasce sob a égide da busca pela concretização de um ideal concreto de Justiça, isto é, pela construção de uma sociedade justa nos trópicos. E isso é um fato cuja importância simbólica não deve ser minimizada.
As competências iniciais da Secretaria da Justiça, assim, eram bastante amplas. Segundo Dilma Cabral e Fábio Campos Barcelos, “suas atribuições originais eram todas as matérias de justiça civil e criminal, a gestão sobre os assuntos eclesiásticos, o despacho das nomeações dos magistrados e demais cargos sob sua jurisdição, a manutenção da segurança pública, a inspeção das prisões e a promulgação das leis, decretos, resoluções e outras determinações legais referentes aos objetos sob sua responsabilidade, comunicando-as às instâncias competentes e fiscalizando sua execução”<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>. Não era pouca coisa, ainda mais em meio ao um processo de independência e formação do Estado nacional.
Havia, contudo, o já mencionado problema da ausência de um Direito brasileiro, o que restringia a capacidade de atuação da nova pasta. Dilma Cabral e Fábio Campos Barcelos ressaltam que “ainda que constituísse um país independente de Portugal, diante da falta de normas jurídicas próprias ficava estabelecido pela lei de 20 de outubro de 1823, emitida pela Assembleia Constituinte, que se mantinha em vigor a legislação que regia o Brasil até 25 de abril de 1821, bem como as leis promulgadas durante a regência de d. Pedro e alguns decretos das Cortes Portuguesas. Esse ato restringiu o papel da secretaria, nos anos iniciais do Império, ao de mero intérprete da legislação existente”<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
A solução desse problema teve um encaminhamento lento, ao longo de todo o período monárquico, encontrando solução plena somente no período republicano. Nos seus anos iniciais, a Secretaria de Estado da Justiça sequer contava com um regulamento interno. Ainda que a Constituição de 1824 previsse as atribuições e competências das pastas, foi somente em 15 de março de 1830 que a Secretaria da Justiça ganhou seu primeiro regulamento, que a organizava em cinco divisões internas. Dilma Cabral e Fábio Campos Barcelos ressaltam que “essa reforma foi complementada pela lei de 4 de dezembro de 1830, que, ao extinguir a Chancelaria-Mor do Império, transferiu suas funções para a Secretaria de Justiça, acumulando o secretário desta pasta o cargo de chanceler”<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>.
De extrema importância nesse processo de construção de um Direito legitimamente brasileiro foi a atuação do Ministro da Justiça, Francisco Gê Acayaba de Montezuma, o visconde de Jequitinhonha, nomeado pelo Regente Diogo Antônio Feijó em 1837. Montezuma foi, também, o fundador e primeiro presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), do qual este escriba atua como vice-presidente da Comissão de Direito Internacional. O IAB foi fundado em 1843, como entidade governamental, com o objetivo primordial de organizar a profissão da advocacia no Brasil, por meio da criação de uma Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) — o que somente viria a acontecer em 1930 — e de atuar como órgão consultivo do imperador e do Parlamento na criação do Direito do novo país independente.
Vale notar que o IAB surgiu sob os auspícios da Secretaria de Estado da Justiça. A professora Enéa de Stutz e Almeida, em seu clássico estudo sobre a história e o papel do IAB, “Ecos da Casa de Montezuma”<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>, ressalta que os estatutos do IAB foram, de fato, aprovados por aviso de 7 de agosto de 1843, assinado pelo então secretário de Estado dos Negócios da Justiça, Honório Hermeto Carneiro Leão, o marquês do Paraná.
Outro vulto de vital importância nesse processo de desenvolvimento do Direito brasileiro foi o membro fundador do IAB Augusto Teixeira de Freitas, cuja obra foi recentemente objeto de uma brilhante <a href="https://www.youtube.com/watch?v=O9auAeVZSvw">palestra do professor Francisco Amaral, da qual a gravação ser acessada aqui</a>. Teixeira de Freitas produziu, no âmbito do IAB, a sua Consolidação das Leis Civis, obra que, depois de refinada por José Thomas Nabuco de Araújo, foi finalmente concluída com o Projeto de Clóvis Bevilaqua, que se tornou nosso Código Civil de 1916, já no período republicano<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>. Vale notar, também, que o IAB, sob a presidência Joaquim Saldanha Marinho, em muito contribuiu para a redação da Constituição de 1891<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>. A atuação de ambas as instituições, o Ministério da Justiça e o IAB, atualmente separadas, na construção do Brasil, prolonga-se ao longo do século 20 atingindo os dias atuais. Contribuem, em parte, para singularizar positivamente o nosso país no concerto internacional, que se desenvolve, assim, ao longo dos seus 200 anos de vida independente sob o moto de uma busca incessante pela materialização de uma sociedade justa nos trópicos.
E essa busca se constitui na construção de um Direito e de um modelo de ordem individual e específico a partir das circunstâncias histórico-concretas do país. Não pode, jamais, adotar modelos importados, que aqui não florescem. A importação de modelos e ideias estrangeiras é, no quadro maior das grandes contradições históricas de uma sociedade, o elemento antinômico aos ideais que imbuíram nosso processo de independência. A transposição de modelos estrangeiros para os trópicos tem a consequência invariável de inverter-lhes o sentido, dando-lhes um efeito contrário ao pretendido no seu ambiente originário, no processo batizado por Roberto Schwarz de “as ideias fora do lugar”, magistralmente analisado em seu ensaio clássico de mesmo título<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>.
A leitora que porventura visite Brasília poderá perceber que, na Esplanada dos Ministérios, duas pastas distinguem-se das outras por estarem abrigadas em palácios: o Ministério da Justiça, no palácio de mesmo nome, e o Ministério das Relações Exteriores, no palácio Itamaraty. Ambos os palácios inauguram a fileira dos ministérios e estão posicionados um defronte ao outro, tendo o Congresso Nacional ao centro. Foi um reconhecimento de Oscar Niemeyer de registrar na arquitetura da capital federal a importância fundamental dessas duas pastas na criação do Estado e da nação brasileiros. Neste duplo bicentenário, não nos esqueçamos de que Brasil nasceu sob a égide da busca da Justiça. Iustitia fundamentum regni<a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a>.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Dias, Maria Odila da Silva Leite. A interiorização da metrópole e outros estudos. São Paulo: Alameda, 2005.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> CABRAL, Dilma et al (orgs.). Ministério da Justiça 190 anos: justiça, direitos e cidadania no Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2012. p. 15.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> PINHEIRO MACHADO, Paulo Fernando. “Justiça e Diplomacia na Formação do Brasil”, in Revista Justiça &amp; Cidadania, ed. 257, Rio de Janeiro, jan. 2022.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> CABRAL, Dilma et al (orgs.). Ob. Cit. p. 16.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Ibid.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Ibid., pp. 17-18.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Almeida, Enéa de Stutz e. Ecos da Casa de Montezuma: o Instituto dos Advogados Brasileiros e o Pensamento Jurídico Nacional. Rio de Janeiro: Conceito, 2006.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> https://memorias.iabnacional.org.br/fase1/
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> https://memorias.iabnacional.org.br/fase2/
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> SCHWARZ, Roberto. As Ideias Fora do Lugar: ensaios selecionados. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> A Justiça é o fundamento de um reino.

Palácio da Justiça

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Fundação da Secretaria de Estado dos Negócios da Justiça foi um marco no processo de independência

Bicentenário da criação do Ministério da Justiça

Fundação da Secretaria de Estado dos Negócios da Justiça, embrião do Ministério da Justiça, foi um marco no processo de independência