Walter Eler do Couto

O direito de autor é uma disciplina jurídica, mas também é um imaginário social. Como imaginário social, tem sido influenciado pelas narrativas adotadas pela indústria de conteúdo, difundidas por diversos meios, que vão desde campanhas publicitárias que associam qualquer uso sem a autorização dos titulares à “pirataria” (e esta ao tráfico de drogas), além de notificações extrajudiciais e a divulgação de avisos reproduzidos nas próprias obras, que tentam proibir o exercício de certos direitos por parte dos usuários através do apelo ao medo e do uso de pânicos morais.
Essas narrativas vendem a ideia de que os usuários não podem fazer nada com as obras a menos que tenham sido expressamente autorizados pelos titulares de direitos autorais. Por exemplo, em qualquer livro que se abra, há o aviso de que a reprodução parcial ou total da obra é proibida. Este aviso é juridicamente equivocado, já que a legislação garante expressamente o direito à cópia privada de pequenos trechos e reprodução de pequenos trechos para fins de crítica. O alerta está presente até mesmo em importantes livros de direitos autorais, cujo conteúdo doutrinal desmente o aviso que a própria obra reproduz. Na versão impressa da Constituição Federal, publicada por importantes editoras, também há esse aviso, como se fosse possível impedir a reprodução da Carta Magna (que pertence a todos os brasileiros) por meio de um pretenso direito de propriedade intelectual.
Estas teses jurídicas baseadas na ideia de um direito autoral absoluto são equivocadas do ponto de vista da doutrina e da jurisprudência, além de serem extremamente abusivas. São abusivas porque confundem. Fazem, por meio da narrativa, o aviso que escrevem de próprio punho na capa dos livros ter mais relevância, por comporem o imaginário social, do que o previsto na Lei de Direitos Autorais em seu capítulo sobre Limitações e Exceções.
Por muitos anos, a comunidade de profissionais da informação acreditou nessas narrativas, ativa e amplamente disseminadas e impregnadas em nosso imaginário social. O abuso de direito, resultante dessas reivindicações de direito absoluto por parte da indústria, impactou negativamente no interesse da sociedade.
A ideia de que qualquer forma de reprodução de livros é proibida sem a autorização dos titulares pode gerar um impacto irreversível na memória cultural da sociedade brasileira. Isso porque, na comunidade de profissionais que trabalham em bibliotecas, arquivos e museus, estas narrativas aparentemente inofensivas criaram um ambiente de medo e de paralisia. Com efeito, temos conhecimento de inúmeros relatos de profissionais da informação que se sentiram intimidados e, por isso, decidiram não realizar ações necessárias à preservação das obras, em situações em que tais ações eram importantes, pois essas requeriam a reprodução da obra – algo que a propaganda da indústria de conteúdo diz ser não apenas proibido, mas um crime por vezes comparado ao tráfico de drogas e ao crime organizado.
Quando tomam notícia de que tal proibição é parte do imaginário social, mas não parte da legislação, da doutrina e da jurisprudência, esses profissionais ficam, frequentemente, estarrecidos, sentimento que rapidamente se transforma em indignação. A constatação é dura: poderiam ter feito muito mais do que até então fizeram.
E, infelizmente, o impedimento da reprodução para fins de preservação é apenas um dos inúmeros casos em que o imaginário dos “direitos autorais absolutos” operou para impedir o exercício de direitos de usuários e da sociedade.
Por muitos anos, nós acreditamos, enquanto sociedade, nessas narrativas, esquecendo-nos que tais ideias são contrárias à justificação cultural que está na base do próprio direito de autor, i.e., a sua função social.
A questão que devemos enfrentar agora é saber como separar o imaginário social dos “direitos autorais absolutos” – cuja máxima é que nada pode ser feito sem passar previamente pela análise pelos titulares –, da disciplina jurídica dos direitos autorais, que contém leis, doutrinas e jurisprudências que aboliram, há muitos anos a possibilidade de um direito absoluto.
Parece cada vez mais claro, tanto para bibliotecários, quanto para juristas autoralistas, que o caminho para desfazer essas concepções, tão maléficas para as nossas instituições culturais, será disputar essa narrativa equivocada, divulgando os avanços que as doutrinas e as jurisprudências produziram no Brasil e no mundo nos últimos anos. Sim, elas existem, mas ainda são pouco conhecidas pelo público não-especialista.
Já se registrou, do ponto de vista das bibliotecas, muitas melhorias doutrinais e jurisprudências, não obstante o fato de a Lei de Direitos Autorais do Brasil ser uma das mais deficitárias do mundo em relação às instituições culturais. É na divulgação desses avanços, entre a comunidade de bibliotecas, que pode estar a saída para o pleno exercício dos direitos culturais, consagrados pela <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/constituicao-federal">Constituição Federal de 1988</a>.
Do ponto de vista do direito comparado, há inúmeros precedentes relacionados especificamente ao caso das bibliotecas, que mostram a tendência mundial de garantir os direitos das instituições bibliotecárias no cumprimento de suas funções mais básicas, independentemente de alegações de proteção de direitos autorais. Destes, destacam-se três.
(1) Williams &amp; Wilkins Co. v. United States. Este é um dos casos mais emblemáticos envolvendo litígio entre titulares de direitos autorais e bibliotecas. Na disputa, ocorrida nos anos de 1970 nos Estados Unidos, uma editora processou uma biblioteca porque esta realizava fotocópia de obras para fins de preservação. O caso foi julgado pela Suprema Corte dos EUA, que não apenas decidiu que a fotocópia no contexto bibliotecário era um caso de Fair Use (i.e., uma limitação aos direitos autorais), como enviou solicitação para que o congresso incluísse, no projeto que reformaria a lei, um capítulo específico para limitações e exceções em benefício de bibliotecas e arquivos, que mais tarde se tornaria a Seção 108 do Copyright Law de 1976.
(2) CCH Canadian Ltd v. Law Society of Upper Canada. Nos anos 2000, o mundo jurídico conheceu outro caso relevante envolvendo disputas entre uma editora e uma biblioteca. Este caso, bastante similar ao anterior, mas decidido pela Suprema Corte do Canadá, envolveu não apenas a fotocópia de obras da biblioteca, mas a sua digitalização e o envio dos documentos aos usuários da instituição (uma modalidade que era chamada de “cópias personalizadas”). A Suprema Corte julgou que este era um caso de Fair Dealing (que é o nome da regra geral de Limitação aos Direitos Autorais na legislação canadense), garantindo o direito de a biblioteca reproduzir as obras no contexto de sua própria função: emprestar e preservar. Além disso, este se tornou um caso paradigmático no campo dos direitos autorais, porque foi a primeira vez que uma corte superior utilizou a interpretação extensiva para afirmar que as limitações aos direitos autorais constituíam verdadeiros direitos de usuários, que faziam parte da legislação de direitos autorais, e que não eram meras lacunas, meras exceções diante de uma regra.
(3) University of Oxford v. Rameshwari Photocopy Service. Este caso, decidido pelo Tribunal Superior de Delhi em 2016, envolveu a disputa entre editoras universitárias, editoras científicas e um serviço de fotocópia (“xérox”) que atua na Universidade de Delhi e atende os alunos da instituição de maneira similar ao que ocorre no Brasil. Na decisão, os juízes repetiram o entendimento firmado no caso canadense e interpretaram as limitações aos direitos autorais extensivamente, afirmando que elas constituíam direitos de usuários. Por isso, a decisão é considerada um marco sem precedentes para os defensores do acesso aberto na Índia. A decisão criou um precedente poderoso, considerado ainda mais amplo do que os casos similares julgados em outros países, porque mais genérico e amplo. Com isso, o serviço de fotocópia pôde continuar as suas atividades livremente, reproduzindo os livros e os artigos no contexto universitário.
No Brasil, não há uma jurisprudência tão clara em prol das bibliotecas como as que descrevemos acima, mas há sim importantes precedentes que podem ser utilizados por todas as instituições de cultura na garantia da concretização de sua missão.
Neste particular, o caso das bibliotecas da USP é um dos mais notáveis. Por volta de 2004, as bibliotecas da Universidade de São Paulo foram alvo de fiscalização por entidades representativas dos interesses dos titulares, que entendiam que as bibliotecas da instituição estavam facilitando a violação de direitos autorais por conta da manutenção de fotocópias em seu interior e disponibilização destes à comunidade acadêmica. A interpretação dos titulares era de que apenas 3% das obras poderiam ser copiadas, o que impediria a realização da maior parte das reproduções previstas para realização dos cursos e que vinham sendo realizadas. Poderia ser um impacto sem precedentes para o acesso ao conhecimento, acesso e permanência de estudantes, especialmente os integrantes de grupos vulnerabilizados.
Em uma decisão inédita, publicada por meio da Resolução N°5213/2005, o Conselho Universitário da USP decidiu adotar interpretação  extensiva da legislação, especificamente quanto ao  Art. 46 da LDA, uma linha com respaldo jurídico significativo e devidamente documentada.
Com isso, a USP estabeleceu que a cópia de um capítulo de qualquer livro, de artigos científicos inteiros e de livros completos quando estrangeiros ou fora de catálogo há mais de 10 anos poderiam ser reproduzidos para fins educacionais e de pesquisa. Este precedente foi importante para que outras instituições tomassem caminho similar. A UFRJ estabeleceu interpretação similar por meio da Resolução N° 19 de 2010.
Os documentos redigidos e publicados pelas instituições garantiram segurança jurídica para os bibliotecários, que a partir de então não precisavam adotar a interpretação hiper-restritiva sugerida pelos titulares. Isso ocorreu porque os titulares estavam baseando a sua reivindicação no imaginário social que eles próprios ajudaram a construir, mas que não encontra respaldo no atual estado da doutrina e da jurisprudência modernas.
No Brasil, há precedentes importantes que garantem, sem sombra de dúvidas, a aplicação da interpretação extensiva das limitações aos direitos autorais, como o Recurso Especial 964.404/11 e o Enunciado 115 da III Jornada de Direito Comercial do Conselho da Justiça Federal.
A concepção de interpretação extensiva das limitações deriva do fato de que o rol das limitações é um rol meramente exemplificativo, porque lista o piso dos direitos dos usuários - não o seu teto. A noção de que existem “limitações extrínsecas”, i.e, que vêm de fora da LDA, é também um indicativo de que a legislação precisa se comportar sistematicamente, para garantir o devido equilíbrio entre os direitos dos usuários e dos autores e titulares.
Recentemente, a FEBAB (Federação Brasileira de Associações de Bibliotecários, Cientistas de Informação e Instituições) <a href="https://twitter.com/RemixPraGeral/status/1503740555498598400">lançou o “</a><a href="https://twitter.com/RemixPraGeral/status/1503740555498598400">Guia para bibliotecas: direitos autorais e acesso ao conhecimento, informação e cultura</a><a href="https://twitter.com/RemixPraGeral/status/1503740555498598400">”</a>, no qual utiliza esses princípios jurisprudenciais e doutrinários para ampliar o conhecimento e debate, na comunidade bibliotecária, sobre a interpretação extensiva das limitações aos direitos autorais.
A principal tese divulgada no Guia é que, embora a legislação não cite expressamente limitações em benefício das bibliotecas, estas instituições são resguardadas pela interpretação extensiva das limitações contidas tanto na LDA, como em outras legislações e na própria Constituição Federal. Os direitos culturais, o direito à educação, à informação e à pesquisa, resguardados pela Constituição Federal, protegem as ações das bibliotecas necessárias para a promoção do acesso e da preservação das obras, porque limitam os direitos dos autores em função dos direitos da sociedade.
A abordagem reconhece e respeita os direitos dos titulares, mas seu objetivo é realizar o equilíbrio entre os interesses privados e coletivos, que a legislação já consagra em inúmeros pontos, reforçados pelos precedentes citados.
O Guia está ancorado em dois ítens que funcionam como pontos de gravidade. O primeiro deles é a adoção da interpretação extensiva da cópia para uso privado, já consagrada no Brasil pelos precedentes da USP e da UFRJ. O segundo ponto, é a sugestão de que as instituições poderiam, seguindo também os exemplos da USP e da UFRJ, redigir documentos que funcionassem como uma declaração de Política Institucional, dando maior segurança para a atuação dos funcionários, levando o debate para o nível das instituições.
No entanto, o guia não se limitou ao caso da cópia para uso privado, mas fez uso desses exemplos para ampliar o debate para todas as ações que fazem parte do cotidiano das bibliotecas e que esbarram, de alguma maneira, no tópico dos direitos autorais. Isso foi feito partindo de dúvidas da própria comunidade, que enviou centenas de perguntas à FEBAB.
A interpretação extensiva das limitações aos direitos autorais também é aplicada a outros casos, como o muito atual e necessário do Empréstimo Digital Controlado - um conceito inovador aplicado pelas bibliotecas dos EUA e que poderia ser adaptado para o Brasil.
A digitalização para fins de preservação, um tema central para qualquer instituição de memória, também é abordado no Guia por meio da interpretação extensiva, assim como o empréstimo bibliotecário, a conversão das obras para o formato acessível, o uso das obras para pesquisa etc.
O Guia também sugere que os Direitos Autorais sejam tratados como um tipo de Competência Informacional por parte das bibliotecas. O conceito de competência informacional é utilizado por bibliotecários e cientistas da informação para designar as habilidades necessárias para um usuário de informação identificar suas necessidades de informação e saná-las por meio de dispositivos de informação. Ao considerarem os direitos autorais como um tipo de competência informacional, os bibliotecários começam a se instruir sobre este tema tão complexo, mas tão central para qualquer instituição cultural. Com sorte, este conhecimento será passado também para os leitores, usuários das bibliotecas, que poderão romper com o fantasma do pretenso direito autoral absoluto,por tantos anos determinante  em nosso imaginário social.
Quando usuários entendem que possuem direitos, tendem a agir dentro dos limites desses direitos; quando entendem que não podem nada, mas veem que a tecnologia é capaz de lhes dar tudo, podem preferir agir de maneira irrestrita ou mesmo irresponsável. Por isso, um Guia como esse é benéfico também para os titulares de direitos autorais, já que o que se busca é a harmonia entre os interesses de ambos os lados.

Biblioteca

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JOTA

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