Iasmin Nascimento Gonçalves

Segundo o professor de Arqueologia da Universidade de Roma Rodolfo Lanciani (1892), a paixão dos romanos pelos jogos de azar era tão intensa que, todas as vezes em que ele escavava o chão de um pórtico, basílica, banheiro ou de qualquer outro lugar acessível ao público, encontrava tabuleiros esculpidos nos mármores e mesas de pedra. Esses objetivos serviam para divertir os homens ociosos, sempre prontos para trapacearem uns aos outros<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Apesar dos jogos de azar serem uma prática antiga, o Brasil viveu a era de ouro dos cassinos apenas nas décadas de 1930 e 1940. No auge, funcionavam mais de 70 casas de apostas no país — do Rio, capital da República, à São Lourenço, no sul de Minas. Nos salões, homens de terno e mulheres de longo apostavam dinheiro nas roletas e nas cartas de baralho<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
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Logo em seguida, o Decreto-Lei 3.688/1941 (Lei de Contravenções Penais) instituiu a criminalização em relação ao estabelecimento ou exploração de jogo de azar em lugar público ou acessível ao público mediante o pagamento de entrada ou sem ele (art. 50)<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. No entanto, as normas brasileiras não dispunham sobre nenhuma previsão quanto a prática de apostas.
É importante destacar que os jogos de azar são caracterizados como jogos ilícitos (ou proibidos) em que a sorte possui caráter predominante no resultado<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>. Esses se diferenciam dos jogos de apostas que possibilitam o acompanhamento dos resultados e realização de cálculos sobre os possíveis lucros. No Brasil, os jogos de loteria foram disciplinados pelo Decreto-Lei 204/1967, de modo a constituir um serviço da União, executado pelo Conselho Superior das Caixas Econômicas Federais, por meio da Administração do Serviço de Loteria Federal<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
Com a promulgação da Constituição de 1988, as práticas desportivas se tornaram um direito constitucional (art. 217)<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>. Além disso, a responsabilidade pelo financiamento da seguridade social foi atribuída à sociedade, de forma direta e indireta, por meio de recursos dos orçamentos da União, estados, Distrito Federal e municípios. Entre as fontes de receita, também se incluem os concursos de prognóstico, como as loterias federais (art. 195, III)<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>.
No entanto, os jogos de apostas somente foram regulamentados em 2018, com a promulgação da Lei 13.756/2018<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>, que tratou das apostas de quota fixa (AQF’s). Essas apostas foram definidas como “sistema de apostas relativas a eventos reais ou virtuais em que é definido, no momento de efetivação da aposta, quanto o apostador pode ganhar em caso de acerto do prognóstico”, conforme o disposto no art. 29, §1º, da referida norma<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>.
Em seguida, a <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/l14790.htm">Lei 14.790/2023</a> instituiu a possibilidade de as apostas de quotas fixas serem realizadas por meio de eventos virtuais de jogos online<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>. Com isso, as casas de apostas estrangeiras passaram a operar com mais liberdade no Brasil, o que resultou em uma publicidade em larga escala direcionado ao público brasileiro. Contudo, essa norma apenas legalizou as AQF’s, sem regulamentar, de modo que contribuiu para o surgimento de um mercado sem regras claras.
O cenário de apostas cresceu e se desenvolveu no país, de modo que as apostas não se limitaram ao setor de esportes, expandiram-se para outras áreas, como o setor político (conhecida como bets eleitorais) principalmente durante as <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/eleicoes-2024">eleições municipais de 2024</a>.
Com o aumento significativo desses jogos de apostas, o <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/ministerio-da-fazenda">Ministério da Fazenda</a> divulgou nota afirmando que a prática é ilegal, ressaltando que há apenas duas modalidades permitidas de apostas de quota fixa: (i) as de temática esportiva e (ii) as de eventos virtuais em jogos online. Além disso, destacou que as apostas eleitorais ultrapassam essas modalidades e não estão previstas na legislação<a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a>.
Em seguida, o senador Randolfe Rodrigues (PT-AP) propôs o PL 3563/2024, que proíbe a publicidade de plataformas de apostas esportivas no país, veta o patrocínio a pessoas físicas, como influenciadores, bem como impede apostas sobre eleições, plebiscitos e referendos<a href="#_ftn12" name="_ftnref12">[12]</a>.
Diante da ausência de legislação específica, o plenário do Tribunal Superior Eleitoral (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/tse">TSE</a>) aprovou, por unanimidade, duas alterações na <a href="https://www.tse.jus.br/legislacao/compilada/res/2024/resolucao-no-23-735-de-27-de-fevereiro-de-2024">Resolução TSE 23.735/2024</a>: (i) o art. 1º, inciso IV, que agora faz menção ao crime previsto no artigo 334 da Lei nº 4.737/1965 (Código Eleitoral); e (ii) o art. 6º, §7º, que caracteriza o uso de plataformas de apostas eleitorais como ilícito eleitoral, de forma a poder configurar abuso de poder econômico e captação ilícita de votos<a href="#_ftn13" name="_ftnref13">[13]</a>.
Antes da regulamentação do TSE, já era necessário que as plataformas de apostas eleitorais esclarecessem que as odds (índices de probabilidade) não eram correspondentes às enquetes eleitorais, mas sim projeções probabilísticas, para evitar possíveis demandas judiciais.
Isso se justifica pela proibição de realização de enquetes relacionadas ao processo eleitoral durante o período de campanha eleitoral (art. 33, §5º, da Lei 9.504/97). O descumprimento dessa exigência pode resultar em multa no valor de R$ 53.205 a R$ 106.410, conforme o art. 17 da Resolução TSE 23.600/2019.
Outro ponto importante é que, se muitos apostadores direcionarem suas apostas para um candidato específico, isso poderia ser interpretado como uma forma indireta de propaganda eleitoral, gerando a impressão de que determinado candidato possui maiores chances de vencer.
Nesse contexto, o avanço das apostas eleitorais levanta preocupações sobre o seu real impacto no processo democrático, em razão da possível influência dessas apostas na percepção pública em relação às chances dos candidatos, que pode criar imagem de favoritismo para determinado concorrente.
Além disso, a prática das apostas políticas também já poderia configurar violação à legislação eleitoral como compra de votos ou influências ilícitas – essas práticas poderiam configurar o abuso de poder econômico, caso grandes quantias fossem apostadas para influenciar o resultado da eleição. Esse problema estaria mais vinculado ao uso de recursos ilegais, como o caixa dois, do que às apostas em si.
Embora ainda tenhamos poucas evidências sobre o impacto dos jogos de apostas nas eleições municipais de 2024, bem como não haja um estudo aprofundado sobre o efeito que essas projeções podem ter na formação da vontade popular, levantamento do site Metrópoles mostrou que há ao menos seis bets oferecendo apostas nas eleições para prefeituras de 13 capitais brasileiras: Belém, Belo Horizonte, Curitiba, Florianópolis, Fortaleza, Goiânia, Manaus, Natal, Palmas, Porto Alegre, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo<a href="#_ftn14" name="_ftnref14">[14]</a>.
Vale destacar, portanto, que é fundamental assegurar a igualdade de oportunidades e a paridade de armas nas disputas por cargos políticos, a fim de gerar igual acesso à competição eleitoral e às oportunidades de visibilidade dos candidatos<a href="#_ftn15" name="_ftnref15">[15]</a>. Somente com regras claras e equitativas é possível manter a integridade do processo eleitoral e garantir que as decisões políticas reflitam a vontade popular de forma transparente e justa.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> LANCIANI, Rodolfo. Gambling and cheating in Ancient Rome. The North Americam Review, University of Northern Iowa, vol. 155, nº 428, p. 27, jul. 1892.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> WESTIN. Ricardo. Por 'moral e bons costumes', há 70 anos Dutra decretava fim dos cassinos no Brasil. Agência Senado. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/02/12/por-201cmoral-e-bons-costumes201d-ha-70-anos-dutra-decretava-fim-dos-cassinos-no-brasil. Acesso em 03 mar. 2022.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Art. 50. Estabelecer ou explorar jogo de azar em lugar público ou acessivel ao público, mediante o pagamento de entrada ou sem ele:
Pena – prisão simples, de três meses a um ano, e multa, de dois a quinze contos de réis, estendendo-se os efeitos da condenação à perda dos moveis e objetos de decoração do local.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: Contratos. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Art 2º A Loteria Federal, de circulação, em todo o território nacional, constitui um serviço da União, executado pelo Conselho Superior das Caixas Econômicas Federais, através da Administração do Serviço de Loteria Federal, com a colaboração das Caixas Econômicas Federais.
Parágrafo único. As Caixas Econômicas Federais, na execução dos serviços relacionados com a Loteria Federal, obedecerão às normas e às determinações emanadas daquela Administração.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Art. 217. É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um, observados:
I - a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento;
II - a destinação de recursos públicos para a promoção prioritária do desporto educacional e, em casos específicos, para a do desporto de alto rendimento;
III - o tratamento diferenciado para o desporto profissional e o não- profissional;
IV - a proteção e o incentivo às manifestações desportivas de criação nacional.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:  (...)
III - sobre a receita de concursos de prognósticos.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Art. 29. Fica criada a modalidade lotérica, sob a forma de serviço público, denominada aposta de quota fixa, cuja exploração comercial ocorrerá no território nacional.
<ul>
<li>
1º A modalidade lotérica de que trata o caput deste artigo consiste em sistema de apostas relativas a eventos reais ou virtuais em que é definido, no momento de efetivação da aposta, quanto o apostador pode ganhar em caso de acerto do prognóstico.
</li>
<li>
2º A loteria de apostas de quota fixa será autorizada, em caráter oneroso, pelo Ministério da Fazenda e será explorada, exclusivamente, em ambiente concorrencial, sem limite do número de autorizações, com possibilidade de ser comercializada em quaisquer canais de distribuição comercial, observado o disposto em lei especial e na regulamentação.
</li>
<li>
3º O Ministério da Fazenda regulamentará o disposto neste artigo.
</li>
</ul>
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> Art. 29. Fica criada a modalidade lotérica, sob a forma de serviço público, denominada aposta de quota fixa, cuja exploração comercial ocorrerá no território nacional
<ul>
<li>
1º A modalidade lotérica de que trata o caput deste artigo consiste em sistema de apostas relativas a eventos reais ou virtuais em que é definido, no momento de efetivação da aposta, quanto o apostador pode ganhar em caso de acerto do prognóstico.
</li>
</ul>
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> Art. 2º Para fins do disposto nesta Lei, considera-se: (...)
<ol>
<li>
b) por organizações de administração do esporte sediadas fora do País;
</li>
</ol>
VIII - jogo on-line: canal eletrônico que viabiliza a aposta virtual em jogo no qual o resultado é determinado pelo desfecho de evento futuro aleatório, a partir de um gerador randômico de números, de símbolos, de figuras ou de objetos definido no sistema de regras;
IX - evento virtual de jogo on-line: evento, competição ou ato de jogo on-line cujo resultado é desconhecido no momento da aposta;
X - agente operador de apostas: pessoa jurídica que recebe autorização do Ministério da Fazenda para explorar apostas de quota fixa; e
XI - aplicações de internet: o conjunto de funcionalidades que podem ser acessadas por meio de um terminal conectado à internet.
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> Disponível em: https://www.poder360.com.br/poder-sportsmkt/brecha-no-tse-faz-bets-abrirem-apostas-para-eleicoes-municipais/
<a href="#_ftnref12" name="_ftn12">[12]</a> Art. 2º A Lei nº 13.756, de 12 de dezembro de 2018, passa a vigorar com as seguintes alterações:
“Art. 29-B. É vedada, em todo o território nacional, a exploração comercial, por agentes operadores de apostas, de eleições para cargos públicos, referendos e plebiscitos, em todas as esferas e níveis de poder, bem como de seus resultados.”
<a href="#_ftnref13" name="_ftn13">[13]</a> Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/eleicoes/tse-proibe-bets-com-apostas-sobre-resultado-da-eleicao/
<a href="#_ftnref14" name="_ftn14">[14]</a> Disponível em: https://www.metropoles.com/brasil/ao-menos-6-bets-entram-em-mercado-de-apostas-nas-eleicoes-municipais
<a href="#_ftnref15" name="_ftn15">[15]</a> OSORIO, Aline. Direito Eleitoral e Liberdade de Expressão. Belo Horizonte: Fórum, 2017.

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JOTA

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