Andalessia Lana Borges Câmara

As distinções que compõem os meios social, cultural e econômico atuais, feitas entre homens e mulheres, estão atreladas à definição do que se concebe como gênero. Gerda Lerner<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> e Silvia Federici<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> afirmam ter havido o apagamento de metade da humanidade ao longo dos registos históricos documentados, fenômeno sociocultural que solidifica a invisibilidade das mulheres. Gerda Lerner fixa, ainda, que as bases do patriarcado estão em instituições basilares da coletividade como a família, a religião, as escolas e as leis (Estado). Instituições, criadas por homens, que reconstroem a força masculina e a inferioridade das mulheres.
A estrutura organizacional da economia, ainda em tempos atuais, salienta a primazia e a superioridade masculinas e limita as mulheres aos espaços privados, associando suas atividades àquelas que são consideradas como trabalho não remunerado, ou seja, trabalho invisível. E é certo que a obrigatória aderência de mulheres a tarefas domésticas e maternais ― a divisão sexual do trabalho ― desagua, inevitavelmente, em sua exclusão do trabalho assalariado ou na desvalorização da remuneração que a ela é revertida.
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As comparações de dados divulgadas pelo IBGE<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> e pelo Insper<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> dão conta da inferioridade do salário das mulheres, brancas e mais agravada em relação às mulheres pretas e pardas, e do acúmulo de horas de trabalho, o visível e o invisível<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>. Apontam também que ano a ano cresce o número de famílias brasileiras chefiadas por elas.
As diferenças abismais entre o mercado de trabalho da mulher e o mercado de trabalho do homem, porque sim, são dois cenários profissionais com características específicas e muito distintas, estão refletidas em estatísticas, e, se diminuídas, poderiam trazer incremento econômico e crescimento do produto interno bruto, de acordo com dados do Banco Mundial<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>.
Resultados de estudos, divulgados pelo site InfoMoney<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>, em março passado, indicam a classificação global de 152 países, na qual o Brasil ocupa o 92º lugar, quando avaliada a igualdade salarial entre homens e mulheres que desempenham trabalhos idênticos.
Nesse contexto, o debate sobre a vinculação da tributação às questões de gênero, principalmente sobre como os tributos agravam discriminações existentes ou podem ser utilizados para superá-las, ganhou espaço na literatura internacional ao longo dos anos. Mais recentemente, a discussão sobre tais questões passou a ser algo mais palpável também no Brasil, embora há bem pouco tempo essa relação não fosse automaticamente reconhecida. Para algumas pessoas, ela ainda não é.
A primeira reação é questionar: o que os tributos têm a ver com possíveis abrandamentos das desigualdades sociais e econômicas de gênero? No mínimo, muito.
A conexão é concreta e deve ser analisada da perspectiva do papel da tributação, sua funcionalidade constitucional, suas possibilidades para alcançar a simetria de tratamento entre homens e mulheres. Há uma estreita amarração entre tributação e igualdade; tributação e direitos humanos; tributação e justiça social.
Quando visualizada dessa perspectiva ― como ferramenta estatal que pode consolidar igualdades e materializar direitos humanos ―, a relação da tributação com a superação das desigualdades de gênero torna-se clara e incontestável.
Medidas fundamentadas em diferenciações positivas seriam parte da fórmula para a mitigação e redução das referidas diferenças patrimoniais. A tributação indutora pode configurar possível meio de acesso e de promoção da mulher no mercado de trabalho. Uma das perspectivas dessa sistemática de incentivos envolveria benefícios fiscais direcionados a empresas que se adequassem a programas de contratação de mulheres<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>.
Em tempos de crise, propor concessão de benefícios fiscais pode gerar questionamentos. No entanto, os incentivos tributários são realidade no país e, muitas vezes, criticados duramente pelos tributaristas, porque privilegiam empresas atuantes, por exemplo, em áreas nocivas à saúde, prejudiciais ao meio ambiente, sem cumprir com os mandamentos constitucionais. É indiscutível que o sistema de entrega dessas vantagens, não raro, verdadeiras regalias, deve ser revisitado. O tema é urgente.
Todavia, é inegável que as definições políticas fiscais oferecem uma grande oportunidade de trazer para o máximo grau de prioridade o problema da efetivação de direitos, entre eles, os direitos das mulheres e aqui, mais especificamente, o direito à inserção no mercado de trabalho, dadas as dificuldades socioeconômicas vivenciadas por elas, nessa difícil inserção, bem como em sua manutenção no exercício de atividades remuneradas.
O artigo 3º da Constituição arrola os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Essas as diretrizes máximas, esse os vetores de todos os sistemas normativos, entre eles o sistema tributário nacional. Inarredavelmente todos esses objetivos conversam intimamente com a necessidade de correção das desigualdades econômicas de gênero.
As alterações legislativas, e, por óbvio, a criação de mecanismos que as implementem, devem ocorrer em todos os conjuntos normativos, com o objetivo de dar corpo aos princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade e à construção de uma sociedade livre, justa e solidária.
Não caberia ao direito tributário a solução de todos os problemas. A discussão está distante disso. A proposição é que o sistema tributário nacional caminhe ao lado de outros sistemas normativos, trabalhista, cível, penal, para dar às mulheres condições econômicas de trabalhar, produzir e receber salários equivalentes àqueles que são pagos aos homens nas mesmas circunstâncias. O percurso não é apenas do direito tributário, e não é só fundado em renúncia fiscal, como indicarão aqueles que discordam dessa linha de raciocínio. A trajetória de modificações é de cada um dos microssistemas normativos. De todos eles, simultânea e conjuntamente.
Frente à iminência de uma reforma tributária que não ostenta qualquer tendência de reparo a desigualdades de gênero, pesquisadoras ― incluindo procuradoras da Fazenda Nacional, nessa condição, advogadas e professoras ―, reuniram-se no Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Tributação e Gênero FGV Direito SP, Tributos a Elas e WIT, o qual elaborou proposições que agregam à reforma tributária a função de contornar assimetrias de gênero no Brasil. O trabalho, denominado “Reforma tributária e desigualdade de gênero: contextualização e propostas”, foi tornado público e encontra-se disponível<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>.
Os textos encaminhados ao Congresso Nacional dividiram-se em dois eixos temáticos: a tributação do consumo e a tributação da renda. No primeiro grupo de alterações, a maioria das propostas visa à desoneração de bens essenciais para mulheres e de consumo majoritariamente feminino, como absorventes íntimos e assemelhados, fraldas, infantis e geriátricas, e anticoncepcionais; itens atinentes à cesta básica e medicação hormonal utilizada no tratamento de menopausa.
As demais propostas, que tocam à renda, voltaram-se a meios normativos de estimular o emprego, a contratação e a permanência das mulheres no mercado de trabalho, com enfoque naquelas que se encontram em situação de vulnerabilidade econômica e social. Entre os meios suscitados, a dedução, do imposto de renda das pessoas jurídicas para empresas que contratem mulheres chefes de família e/ou mulheres negras, que tenham políticas de inclusão de mulheres em cargos de gestão e que contratem mulheres vítimas de violência doméstica.
Resultado dos textos encaminhados ao gabinete da deputada federal Lídice da Mata (PSB-BA), os Projetos de Lei <a href="https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2281266">1.740/2021</a> e <a href="https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2281267">1.741/2021</a><a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>, apresentados em 7 de maio de 2021, criam a espécie de diferenciação positiva antes comentada, ao instituírem  o “Programa de contratação de mulheres vítimas de violência doméstica e financeiramente dependentes (PCMVF), que estabelece a concessão de incentivo fiscal no âmbito do Imposto sobre a Renda das Pessoas Jurídicas às empresas tributadas com base no lucro real que contratarem mulheres nessas condições” e o “Programa de Contratação de Mulheres de Baixa Renda Chefes de Família (PCMF), que estabelece a concessão de incentivo fiscal no âmbito do Imposto sobre a Renda das Pessoas Jurídicas às empresas tributadas com base no lucro real que contratarem mulheres nessas condições”.
Olhando as possibilidades de solução das assimetrias com as lentes do direito tributário, indubitavelmente, cabe ao Estado induzir e impulsionar o agente privado na consecução de finalidades sociais e estimular a sua participação em programas que visem à maior igualdade entre homens e mulheres. O engajamento das empresas privadas propicia triplo resultado positivo, aguçado pelas políticas públicas, entre elas as de possíveis benefícios fiscais. Ganha a empresa, ganha a mulher, ganha a sociedade ― ganham todas e todos.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> LERNER, Gerda. A Criação do Patriarcado – História da Opressão das Mulheres Pelos Homens. Trad. Luiza Sellera. São Paulo: Cultrix, 2019.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> FEDERICI, Silvia. ​O Ponto Zero da Revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. Trad. Coletivo Sycrorax. São Paulo: Elefante, 2018.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> BRASIL. Agência IBGE.  Disponível em &lt;<a href="https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/27598-homens-ganharam-quase-30-a-mais-que-as-mulheres-em-2019">https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/27598-homens-ganharam-quase-30-a-mais-que-as-mulheres-em-2019</a>&gt; Acesso em 4 de nov. 2020.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> INSPER. Diferenciais Salariais por Raça e Gênero para Formados em Escolas Públicas ou Privadas. Policy Paper – nº 45, julho 2020. Centro de Gestão e Políticas Públicas. Disponível em &lt;<a href="https://www.insper.edu.br/wp-content/uploads/2020/07/Policy-Paper-45.pdf">https://www.insper.edu.br/wp-content/uploads/2020/07/Policy-Paper-45.pdf</a>&gt;. Acesso em 13 de mar. 2021.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> BRASIL. Agência IBGE. Disponível em &lt;<a href="https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/27877-em-media-mulheres-dedicam-10-4-horas-por-semana-a-mais-que-os-homens-aos-afazeres-domesticos-ou-ao-cuidado-de-pessoas">https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/27877-em-media-mulheres-dedicam-10-4-horas-por-semana-a-mais-que-os-homens-aos-afazeres-domesticos-ou-ao-cuidado-de-pessoas</a>&gt;. Acesso em 4 de nov. 2020.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Disponível em &lt; <a href="https://openknowledge.worldbank.org/bitstream/handle/10986/33396/146622.pdf?sequence=2&amp;isAllowed=y">https://openknowledge.worldbank.org/bitstream/handle/10986/33396/146622.pdf?sequence=2&amp;isAllowed=y</a>&gt;. Acesso em 10. Mar. 2021.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Disponível em &lt;<a href="https://www.infomoney.com.br/colunistas/alem-do-dinheiro/o-preco-da-desigualdade-de-generos/">https://www.infomoney.com.br/colunistas/alem-do-dinheiro/o-preco-da-desigualdade-de-generos/</a>&gt;. Acesso em 10 de mar. 2021.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> CÂMARA, Andalessia Lana Borges. MULHERES E ACESSO AO MERCADO DE TRABALHO: a tributação como ferramenta de minimização das desigualdades de gênero no Brasil. In: O Poder Feminino: entre percursos e desafios. Análises sobre políticas públicas, liderança feminina e tributação. Herta Rani e Juliana Pita (Org.). Belo Horizonte: Arraes Editores, 2021. pp. 179-203.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS. Direito. São Paulo. Reforma Tributária e desigualdade de gênero. Disponível em: &lt;https://direitosp.fgv.br/sites/direitosp.fgv.br/files/arquivos/reforma_e_genero_-_final_1.pdf&gt;. Acesso em 15 de mar. 2021.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> BRASIL. CÂMARA LEGISLATIVA &lt;<a href="https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2281266">https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2281266</a>&gt;. Acesso em 30 de maio 2021.

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