Ivar A. Hartmann

Konstantinos Stylianou

O órgão norte-americano de regulação das telecomunicações decidiu na quinta-feira (26/02) que a internet é um serviço de utilidade pública. Como tal, os provedores de acesso à internet passam a respeitar as mesmas regras que as empresas de telefonia, por exemplo. Podem discriminar usuários pela quantidade de dados ou velocidade, mas não pelo conteúdo dos sites que visitam ou o aplicativo que usam. Claro que o final da história está longe, seja porque existem alguns problemas com partes das regras, seja porque elas provavelmente serão contestadas no Congresso e no Judiciário. Ainda assim, a decisão é histórica e vem em um momento no qual também o Brasil está prestes a dar passo importante no sentido de garantir o futuro inovador da internet. A movimentação nos EUA merece atenção por pelo menos dois motivos: a importância econômica do país, especialmente no setor de tecnologia, e seu papel central no desenvolvimento da internet. Além disso, há muitas semelhanças entre o desenrolar da batalha pela neutralidade da rede nos dois países.
Essa batalha é cada vez mais visível para os brasileiros, começando pelo Marco Civil da Internet. A lei que entrou em vigor no ano passado custou a passar justamente pela pressão de empresas de telecomunicação que não queriam a neutralidade. Perderam. Agora, ao longo de 2015, serão dados passos decisivos na regulamentação da neutralidade, inclusive com períodos de consulta e debate público, com importantes contribuições técnicas já disponibilizadas à sociedade e ao governo, como a do Centro de Tecnologia e Sociedade (CTS) da FGV Direito Rio.  Mesmo se não fosse pelo Marco Civil, a importância da questão já fica clara com a multiplicação do zero-rating no Brasil. Aqui, trata-se normalmente de ofertas de operadoras de telefonia celular que permitem ao consumidor acessar serviços como Facebook ou Whatsapp sem que isso seja descontado do seu plano de dados. Não é nenhuma generosidade das empresas. Ou o Facebook paga às telecoms para garantir que esses consumidores tenham um incentivo forte para usarem apenas a sua rede social ou a própria empresa de telefonia banca o custo porque acredita ser uma boa estratégia para atrair clientes. De um jeito ou de outro, são prejudicadas as chances de qualquer startup que ofereça uma rede social melhor, o que subverte a lógica de livre inovação da internet.
A decisão da Federal Communications Commission (FCC) é histórica porque marca o encerramento de uma longa etapa na definição de regras que garantam a continuidade da internet como a conhecemos. Há vários anos a Comissão vem tentando criar e impor regras de neutralidade para proteger internautas e jovens empresas inovadoras, mas sempre esbarrava no Judiciário. Em 2010 e 2014 decisões em nível de apelação na Justiça Federal dos EUA derrubaram as regras determinando que a FCC não tinha o poder regulatório para proibir os provedores de acesso à internet de discriminar conteúdo e serviços porque o órgão governamental tinha autoridade apenas limitada sobre serviços de acesso à internet, diferentemente de serviços de telecomunicações.
Isso parecia levar a um beco sem saída. Todos consideravam politicamente inviável que a FCC viesse a refazer essa classificação porque isso resultaria na possibilidade de regras muito mais rígidas que aquelas propostas (já sob alguma crítica) pelo órgão nos anos anteriores. E aí entra uma das primeiras semelhanças do caso norte-americano com o brasileiro.
Em abril de 2014 as regras aprovadas nessa quinta nunca estiveram tão longe. Na época, o líder da FCC, Tom Wheeler, dava sinais de que pretendia dar liberdade aos provedores para criarem os planos de cobrança que bem entendessem.  A posição gerava suspeita em razão do passado de Wheeler: lobista para a indústria que agora regula. A manifestação popular contra essa liberdade efêmera foi maciça, tanto que a FCC recebeu 4 milhões de comentários à proposta de regulação da neutralidade apresentada por Wheeler inicialmente. O presidente Barack Obama então manifestou-se publicamente de maneira enérgica em favor de regras efetivas para garantir que provedores de acesso não pudessem discriminar o conteúdo acessado pelos consumidores. Instou Wheeler e respeitar a posição daquele que o havia nomeado para o cargo. As regras que acabaram de ser aprovadas são drasticamente diferentes da proposta do início do ano passado. O presidente chegou a ser criticado por sua intervenção, que poderia prejudicar a autonomia regulatória da FCC.
Também no Brasil o principal responsável pelo oversight do mercado de telecomunicações, o Min. Paulo Bernardo, adota posições favoráveis às empresas de telefonia. Fica em claro e constante descompasso com a clara posição do Partido dos Trabalhadores e da presidente da Dilma Rousseff. Há um ano, quando o Marco Civil corria o risco de não ser aprovado pela pressão das telefônicas, Bernardo jogava contra a neutralidade e seu próprio partido. Resta saber se na rodada de regulamentação que está por vir a presidente Dilma precisará aplicar o mesmo puxão de orelha que Obama.
A outra semelhança entre Brasil e EUA pode ser evitada. As regras recém aprovadas pela FCC se estendem por mais de 300 páginas. São complexas e obscuras demais. Trazem o potencial de criar mais dúvidas que soluções. Quando as regras adotam essa característica o litígio administrativo e judicial sobre a questão é inevitável e se arrasta por muito mais tempo que o necessário. Nesse contexto quem ganha com a demora é a empresa regulada ou o governo, dependendo de quem tem maior interesse no impasse e inércia. Mas o consumidor perde sempre. O Brasil tem a oportunidade de produzir uma regulamentação clara e objetiva da neutralidade.
Entretanto, há diversas outras questões em aberto, como os limites de configuração dos contratos de interconexão, estabelecidos entre os donos da infraestrutura de comunicações para ditar a maneira como os dados circulam. Esses contratos têm enorme impacto na experiência dos internautas e merecem atenção - mas historicamente passaram à margem da regulação porque parecia desnecessária. Tampouco está claro ainda qual o melhor caminho a seguir com os serviços especializados, como televisão sobre IP (IPTV), telemedicina e voz sobre IP, o VoIP.
O órgão governamental norte-americano usou corretamente a oportunidade que lhe foi dada e optou por proteger a internet com a neutralidade. O legislador brasileiro fez o mesmo ano passado. Mas a FCC tem pela frente um longo e árduo caminho para esclarecer e definir as regras que resultam dessa escolha, que de qualquer modo será atacada política e judicialmente. Também no Brasil a fase atual de regulação será espinhosa. O diabo está sempre nos detalhes.

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