Rafael Tubone Magdaleno

É indiscutível para aqueles que percorrem as páginas de seus artigos, de seus livros e de seu website: Luís Roberto Barroso, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), tem preocupações que transcendem a pura técnica forense ou a atuação político-jurisdicional própria de quem é integrante de um tribunal superior constitucional. Em tonalidade crítica, mas reconhecedora, já se afirmou que “ele é, talvez, o constitucionalista  brasileiro, desde Rui Barbosa, que mais importância teve e tem para o direito constitucional. Foi ele quem mais se comprometeu em fundamentar teoricamente a necessidade de se romper com nosso passado constitucional" (LYNCH, p.982). Portanto, uma coisa é certa: o que Luís Roberto Barroso escreve, devemos ler.
E fui lê-lo. Nos fins do último ano, o eminente ministro publicou o livro “Sem Data Vênia”, pelo selo História Real, da Editora Intrínseca, onde pretende divulgar para um público mais amplo uma espécie de “Ce que je crois”, misto de biografia, forma em que enxerga a história do Brasil e do mundo, e opiniões das mais diversas sobre diversos aspectos da vida política, jurídica, econômica e moral brasileira. Este texto é um convite à leitura<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. 
<a href="https://conteudo.jota.info/poder-contato"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>Já na introdução, Luís Roberto Barroso insere uma epígrafe de André Gide que dá o tom do que vem: “Creia nos que buscam a verdade/ Duvide dos que a encontram”. O ministro Barroso que sobressai das páginas de seu livro é um espírito cético que não sucumbiu a um desespero pirrônico, mas sim manteve a possibilidade de ter ideias, movimentando-o para uma ativa transformação de seu país.
O livro se divide em três partes. Na primeira, o autor narra alguns fatos marcantes de sua vida e que marcaram sua trajetória. Lá lemos sobre suas remotas raízes greco-judaicas, sobre sua infância em Vassouras, o drama do abandono dessa cidade interiorana para aventurar-se em um Rio de Janeiro pré-golpe militar, em 1963. Dificuldades: por ser de origem judaica<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, não poderia estudar nos principais colégios do Rio à época, todos confessionais e católicos. Teve de buscar os colégios públicos: prestou e passou tanto no Colégio Pedro II, quanto no Colégio Pedro Álvares Cabral.
Matriculou-se no Pedro Álvares por ser mais próximo de sua residência. Ingressou na faculdade em 1976, época da ditadura militar, no governo de Ernesto Geisel. Durante alguns anos, cursou concomitantemente, o curso de Direito da UERJ e o curso de Economia na PUC-RIO, desistindo desse último mais tarde.
Na faculdade de Direito, compôs um oficialmente desautorizado Centro Acadêmico de esquerda, denominado Centro Acadêmico Luiz Carpenter - Livre, com nomes que vieram a se tornar importantes políticos e juristas brasileiros. Criou o jornal universitário Andaime, segundo Barroso, de esquerda liberal. Ele nos conta que gastou muitas noites imprimindo-o às escondidas na gráfica da Tribuna da Imprensa, após o fim do expediente desse jornal carioca. A narrativa continua: ela é a história da formação de um intelectual em uma universidade pública brasileira.
O impacto da leitura de Os donos do Poder, livro de Faoro, que até hoje marca sua interpretação da realidade brasileira, deu-se nesse período, mesmo momento em que, diz, “de 1976 a 1978, eu estudava de manhã na UERS e à noite na PUC. À tarde, procurava ler tudo o que podia, e não apenas direito. Lia história, ciências sociais, poesia, marxismo. E implicava com filosofia, psicologia, psicanálise. Obcecado pela transformação social, na fase juvenil do esquerdismo, eu achava que eram dispersões que desviavam o foco. Ah, a ignorância!”(BARROSO, p. 27). É corajoso, em momentos de cegueira ideológica, que o ministro assuma suas posições juvenis tão calma e serenamente.
Não traçarei toda a sua biografia. O sucesso profissional já conhecemos: procurador do estado, advogado brilhante, professor renomado. O que interessa nas poucas linhas seguintes é percorrer alguns tópicos levantados pelo autor na terceira seção de seu livro. Como o ministro enxerga o papel do Supremo Tribunal Federal, atuando na tênue fronteira entre o direito e a política?
Quais são as razões e as formas de se enfrentar a corrupção<a style="font-family: inherit; font-style: inherit; font-variant-ligatures: inherit; font-variant-caps: inherit; text-align: center;" href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> no Estado Brasileiro? Por que nós, brasileiros, somos como somos? Estas três questões são respondidas em capítulos específicos do livro. As duas últimas nos mostram como a leitura de Raymundo Faoro marcou o pensamento do autor: a famosa tese do patrimonialismo.
<blockquote class="jota-article__eye">Segundo Barroso, “a corrupção no Brasil tem origens e causas remotas<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.</blockquote>
Aponto sumariamente três. A primeira é o patrimonialismo, decorrente da colonização ibérica, marcada pela má separação entre a esfera pública e a esfera privada. A segunda causa é o oficialismo, uma onipresença do Estado em todos os setores da vida social, que produz uma “mentalidade cartorária e uma cultura da dependência, paternalismo e compadrio, acima do mérito e da virtude”.
A terceira, a cultura da desigualdade, de raízes aristocráticas e escravocratas, que produz um país onde não há uma real igualdade formal, muito menos de condições entre os indivíduos. Onde isso vai dar já sabemos: uma ampla e grave crítica ao Estado, que deve dar lugar à iniciativa privada, “expressão da ideia geral de liberdade”(p. 241), para diminuir a dependência da sociedade desse oficialismo desigualador. É claro que isso não deve produzir um sumiço do Estado.
Ele se ocupará de outras questões, como a garantia de uma educação de qualidade, em especial no período da educação infantil, e outras pautas sociais e de costumes, fazendo avançar a sociedade em direção à garantia dos direitos fundamentais. Uma postura de Centro-esquerda. E como se combate a corrupção? “Seu enfrentamento exige incentivos adequados, instituições sólidas - e não comprometidas - e um sentido de ética pessoal”(p. 98).
<blockquote class="jota-article__eye">A noção de patrimonialismo, segundo o ministro, também explica uma das características de nossa gente: o famoso jeitinho brasileiro.</blockquote>
Como os ocupantes das funções públicas em nossos primeiros tempos não compreendiam a distinção entre as esferas públicas e privadas do poder, incorporou-se no gesto típico do funcionário do Estado uma forma pessoal e sem formalidade de conduzir os negócios públicos<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>. O jeitinho, no fundo, “é colocar o sentimento pessoal ou as relações pessoais acima do dever para com o próximo e a sociedade”(p. 151).
A complexidade da vida contemporânea, “com seu pluralismo, diversidade e velocidade das transformações”(p.198), faz com que, mesmo sendo distintos os campos do Direito e Política<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>, para muitas situações da vida não exista uma clara e prévia decisão política do constituinte ou legislador definindo a solução a ser adotada pelo poder judiciário. É o caso daquilo que Dworkin denominou Hard Cases. E nessas situações é o próprio juiz “que tem que elaborá-la, o que o torna um coparticipante do processo da criação do direito”, onde a “pré-compreensão do juiz - seus valores, seu nível de conhecimento, suas experiência de vida - fará grande diferença”(p. 198-201).
Daí, os três grandes papéis das Supremas cortes: o papel contramajoritário(onde juízes não eleitos podem invalidar decisões do Congresso ou do Presidente, eleitos pelo povo), o papel representativo( “o papel que as cortes exercem quando atendem a demandas sociais que tinham amparo na constituição, mas não foram satisfeitas a tempo e a hora pela política majoritária”) e o mais polêmico papel iluminista (“que excepcionalmente as cortes constitucionais exercem, independentemente da vontade do Congresso e mesmo contra a maioria popular, para proteger minorias e avançar a história”).
Há limites para essa atuação política e iluminista? Segundo o ministro, o tribunal deve ter uma postura mais proativa quando houver ameaça a direito fundamental ou à democracia, enquanto, como regra geral, decisões políticas devem ser tomadas por quem tem voto.
Luís Roberto Barroso, em seu livro recém-publicado, faz chegar corajosamente a um público mais amplo a sua voz iluminista, eivada de ciência<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>. Ele nos diz quem é, o que pensa, e o porquê age como age. Nossa tarefa agora, enquanto juristas, é compreender e debater os méritos e deméritos da forma como o autor lê o nosso mundo compartilhado.
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O episódio 49 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre o que o Supremo Tribunal Federal precisa dizer sobre a prisão de deputados. Ouça:
https://youtu.be/9Tv7gNDT4Rw
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<h3>Bibliografia:</h3>
BARROSO, Luís Roberto. Sem Data Vênia:um olhar sobre o Brasil e o mundo. Rio de Janeiro: História Real, 2020.
HOLLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 2015
LYNCH, Christian Edward Cyril; MENDONÇA, José Vicente Santos de.  Por  uma história constitucional brasileira: uma crítica pontual à doutrina da efetividade. Rev. Direito e Práxis., Rio de Janeiro, Vol. 08, N. 2, 2017, 974-1007
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> O que não significa necessariamente uma adesão às suas teses.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Apesar de hoje frequentar uma instituição de espiritualidade chamada Brahma Kumaris.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> “Corrupção significa levar vantagem indevida para fazer ou deixar de fazer alguma coisa que era do seu dever. Ou, na definição da Transparência Internacional, corrupção é o abuso de poder para ganho pessoal”.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> E também causas imediatas: o sistema político atual, com eleições caras e baixa representatividade, e a impunidade, que decorre em certa medida das causas mediatas.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Cf. HOLLANDA, 2015.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> O direito pertence ao reino da razão, e a política como composta de vontade, conforme o Ministro.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Basta observar a recorrente utilização de autores como Yuval Harari e Steven Pinker para apoiar as suas teses mais gerais.

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JOTA

Em livro recém-publicado, ministro faz chegar corajosamente a um público mais amplo a sua voz iluminista

Data vênia, ministro Barroso

Ministro Barroso, em seu livro recém-publicado, faz chegar corajosamente a um público mais amplo a sua voz iluminista, eivada de ciência