Marcelo Azevedo

A promulgação da Política Estadual de Segurança de Barragens, em Minas Gerais (PESB-MG)<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, bem como as alterações promovidas na Política Nacional de Segurança de Barragens (PNSB),<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> introduziram novas regras de proteção às comunidades presentes na Zona de Autossalvamento (ZAS)<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> de barragens de mineração.
As novas regras são consequências das reações sociais às perdas de vidas humanas nos acidentes ocorridos em Mariana e Brumadinho. A partir das novas regras, inaugura-se uma fase de incompatibilidade entre a existência de barragens de mineração e comunidades na ZAS, exigindo dos empreendedores que reorganizem a inserção de suas atividades no território.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>A PNSB foi alterada em outubro de 2020, após intenso debate no Congresso Nacional sobre a necessidade de alteração normativa dos critérios de segurança específicos para barragens de mineração.
Entre as alterações, foi inserido o artigo 18-A, que vedou a implantação de barragens de mineração para áreas “cujos estudos de cenários de ruptura identifiquem a existência de comunidade na ZAS”.
O parágrafo primeiro<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> do novo artigo indicou três opções normativas em caso de barragens em instalação ou operação para as quais se identifique existência de comunidade na ZAS, cuja decisão pela escolha compete ao poder público, ouvido o empreendedor: “a descaracterização da estrutura, ou o reassentamento da população e o resgate do patrimônio cultural, ou obras de reforço que garantam a estabilidade efetiva da estrutura”.
Por sua vez, a PESB-MG entrou em vigência em fevereiro de 2019, antes da alteração promovida na Política Nacional, e após se completar um mês do acidente ocorrido em Brumadinho. A norma estadual vedou, em seu artigo 12, a concessão de licença ambiental para a “construção, instalação, ampliação ou alteamento de barragem em cujos estudos de cenários de rupturas seja identificada comunidade na zona de Autossalvamento”.
Ao contrário da Política Nacional, a lei estadual não alcança as estruturas em implantação ou em operação ao tempo da publicação da norma, mas se aplica apenas às situações jurídicas futuras, ou seja, para a construção de novas estruturas ou ampliações e alteamentos nas barragens existentes.
<blockquote class="jota-article__eye">Os enunciados normativos, nos dois casos, possuem o mesmo objetivo de proteção às comunidades. Para as leis federal e estadual, a existência de comunidade na ZAS exige a aplicação de comandos jurídicos, de modo a minimizar o risco a que a população estaria submetida.</blockquote>
Nesse sentido, para ambas as normas, a construção de uma nova barragem de mineração no local onde possa existir comunidade na ZAS é restringida.
Entretanto, para as barragens existentes – em operação e licenciadas –, a norma estadual não estabelece qualquer comando, em respeito ao ato jurídico perfeito – licença concedida –, enquanto a norma federal determina que o poder público decida, após a oitiva do empreendedor, sobre a efetivação das medidas indicadas pela lei federal.
As normas, à primeira vista, parecem tratar de relações fáticas idênticas, com comandos jurídicos diferentes para as hipóteses lançadas em cada norma. Fosse essa leitura verdadeira, estar-se-ia diante de antinomia<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> a ser resolvida por meio da aplicação de critérios específicos de eliminação de conflitos normativos<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>, com a finalidade de manter a coerência entre as normas no sistema jurídico<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>.
No caso em particular, caso esteja diante de antinomia, a resolução de conflito entre a norma federal e a norma estadual, deverá ser resolvida por critérios de competência<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a> no âmbito do federalismo cooperativo<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>.
O olhar mais aprofundado sobre o conteúdo das normas, contudo, indica que – no mais das vezes – não se trata de antinomia, pois, ao contrário do que indica à correspondência do tema “comunidade na ZAS”, são normas que regulamentam situações fáticas distintas, cada qual com a solução jurídica correspondente, de modo que o destinatário da norma não ficará em “posição insustentável”<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>.
Veja-se, assim, um primeiro conjunto de fatos. Imagine-se um novo empreendimento de mineração que apresente, no Plano de Aproveitamento Econômico, a previsão de instalação de barragem em local no qual possa existir comunidade na Zona de Autossalvamento.
Nessa hipótese, a ANM deverá adotar os atos pertinentes, por meio das formas adequadas, para atender a PNSB, que restringe a construção de barragens. O projeto de construção da barragem como originalmente planejada, portanto, uma vez restringida, não seria levada ao licenciamento ambiental, afastando qualquer ocorrência, nessa hipótese, de antinomia entre a PNSB e a PESB-MG, visto que a hipótese fática do licenciamento da barragem que atrairia a aplicação da lei estadual nem se concretizará.
Sobre um segundo conjunto de fatos, novas reflexões podem surgir para a barragem que esteja construída e em operação (com a respectiva licença ambiental), na qual se constata a existência de comunidade na Zona de Autossalvamento.
Nesse caso, não haveria que se falar em restrição da PESB-MG e repercussão no licenciamento ambiental, uma vez que a lei estadual não oferece qualquer comando jurídico à presença de comunidade na ZAS para a barragem contemporânea à promulgação da lei.
Contudo, a PNSB surtirá efeito, por força do § 1º do artigo 18-A, e exigirá a adoção de uma decisão do poder público para que seja executada qualquer das hipóteses dadas pela lei – desativação da barragem, reassentamento da população ou realização de obras de reforço.
Vale indicar, como nota, que a execução de qualquer das três alternativas e suas obras correspondentes poderá se sujeitar ao licenciamento ambiental, mas não encontrará resistência no artigo 12 da PESB-MG, por não se tratar de ampliação ou alteamento da barragem.
Em uma terceira hipótese, haverá maior dificuldade de análise. Nesse cenário, considera-se que a barragem licenciada e em operação precisa ser ampliada ou alteada, e que, igualmente, sujeita-se à situação da presença comunidade na ZAS. A dificuldade nesse cenário envolve indicar qual das situações terá precedência na aplicação das normas, considerando a decisão do agente responsável pela segurança e a possibilidade de se emitir licença ambiental.
Entendemos que a avaliação da condição de segurança tem precedência lógico-temporal sobre o licenciamento ambiental. Semelhante ao que ocorre na segunda hipótese descrita anteriormente, caberá ao agente de segurança decidir sobre a situação presente – solucionar a existência de comunidade na ZAS para a barragem em operação – e, assim, indicar ao empreendedor, após a oitiva deste e considerando os critérios da norma, qual medida deve ser adotada entre as três hipóteses da norma federal.
A decisão adotada pelo agente público responsável pela segurança resolverá a questão sobre o cenário de segurança para a estrutura da forma existente e para a ampliação ou alteamento pretendido.
Entretanto, nessa hipótese, a escolha do agente público poderá gerar consequências no licenciamento ambiental. Pois, caso o agente de segurança se valha da opção por obras de reforço que “garantam a estabilidade efetiva da estrutura”, o cenário de presença de comunidade na ZAS permanecerá e impedirá o licenciamento ambiental da ampliação ou alteamento, por força da vedação contida na PESB-MG.
Nesse caso, não vislumbramos, igualmente, a hipótese de antinomia. Isso porque para que haja antinomia as normas devem estar situadas no mesmo âmbito de validade<a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a> – temporal, espacial, pessoal e material – o que não parece ser o caso.
Considerando a repartição de competências federativas, ainda que uma atividade possa ser realizada segundo regras regulatórias, ela pode sofrer restrições para o licenciamento ambiental<a href="#_ftn12" name="_ftnref12">[12]</a>, divergindo, dessa forma, o âmbito de validade material. Para superar a restrição estadual, caberá ao empreendedor buscar as alternativas que superem o quadro fático, para além da resolução regulatória feita pela ANM.
No caso da adoção de outra decisão possível<a href="#_ftn13" name="_ftnref13">[13]</a> pelo agente de segurança – ou seja, reassentamento da população –, o problema da presença da comunidade na ZAS deixaria de existir e não encontraria resistência ao licenciamento ambiental, desde que a ação de reassentamento seja anterior à concessão da licença de instalação<a href="#_ftn14" name="_ftnref14">[14]</a>.
Portanto, os cenários descritos, se colocados em temporalidade adequada das sucessões dos fatos, demonstram inexistir qualquer incompatibilidade entre as normas.
Não havendo conflito, não há que se falar na utilização de qualquer critério de resolução de antinomia, inclusive decorrentes de conflitos federativos, nem em critérios poucos ortodoxos, como a aplicação “da norma mais restritiva”.
A aplicação em conjunto das normas, contudo, exigirá interlocução do empreendedor com os órgãos públicos – em especial, pela exigência da participação deste na tomada de decisão pelo agente público de segurança federal – e com a comunidade.
A manutenção da estrutura, considerando o conjunto das normas, parece, na maioria das vezes, conduzir à hipótese de reassentamento da comunidade, o que repercutirá em outros direitos, que deverão ser equacionados entre poder público, comunidade e empreendedor.
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<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Lei Estadual nº 23.291, de 25 de fevereiro de 2019. Institui a política estadual de segurança de barragens.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> As alterações na Lei Federal nº 12.334, de 20 de setembro de 2010, que estabelece a Política Nacional de Segurança de Barragens, foram inseridas pela Lei Federal nº 14.066, de 30 de setembro de 2020.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> A Zona de Autossalvamento, de acordo com a PNSB, é “o trecho do vale a jusante da barragem em que não haja tempo suficiente para intervenção da autoridade competente em situação de emergência, conforme mapa de inundação” (art. 2º, IX). A PESB prevê a que a ZAS será de dez quilômetros ou a porção do vale passível de ser atingida pela onda de inundação num prazo de 30 minutos, o que for maior entre as duas distâncias (art. 12, §2º), bem como a possibilidade da distância ser majorada em 25 quilômetros (art. 12, §3º).
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Prevê o dispositivo: “Art. 18-A. [...] § 1º No caso de barragem em instalação ou em operação em que seja identificada comunidade na ZAS, deverá ser feita a descaracterização da estrutura, ou o reassentamento da população e o resgate do patrimônio cultural, ou obras de reforço que garantam a estabilidade efetiva da estrutura, em decisão do poder público, ouvido o empreendedor e consideradas a anterioridade da barragem em relação à ocupação e a viabilidade técnico-financeira das alternativas”.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Valemo-nos aqui da lição de Noberto Bobbio, que define a antinomia jurídica como “a situação que se verifica entre duas normas incompatíveis, pertencentes ao mesmo ordenamento e com o mesmo âmbito de validade” (BOBBIO, Noberto. Teoria do ordenamento jurídico. 2 ed. São Paulo: Edipro, 2014, p. 91. No mesmo sentido do professor italiano, entre nós, Tércio Sampaio Ferraz Junior define a antinomia jurídica como “a oposição que ocorre entre duas normas contraditórias (total ou parcialmente), emanadas de autoridades competentes num mesmo âmbito normativo, que colocam o sujeito numa posição insustentável pela ausência ou inconsistência de critérios aptos a permitir-lhe uma saída nos quadros de um ordenamento dado” (FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 11 ed. São Paulo: Atlas, 2019, p. 170).
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Para Bobbio, as regras de soluções são três: critério cronológico, hierárquico e temporal. (BOBBIO, op. cit. p. 94)
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> “[...] é inexato falar, como se faz frequentemente, de coerência do ordenamento jurídico no seu conjunto: pode-se falar de exigência de coerência somente entre duas partes singulares. [...] em um sistema jurídico, a admissão do princípio que exclui a incompatibilidade tem por consequência, no caso de incompatibilidade de duas normas, a queda não de todo o sistema, mas somente de uma das duas normas ou, no máximo, de ambas”. (BOBBIO, op. cit. p. 84).
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Entendemos que o tema “segurança de barragens”, que consiste o conjunto de fatos regulados pela lei, se insere no âmbito das competências legislativas implícitas ou secundárias, visto que inexiste competência específica no rol do art. 24, da CR/1988, bem como as competências parciais do art. 22 – água, energia e minas – não dão suporte específico ao tema. Fernanda Dias Menezes de Almeida ensina que: “Podem-se identificar no texto constitucional de 1988 competências legislativas concorrentes que chamaríamos de primárias, por encontrarem assento na própria Constituição, e competências legislativas concorrentes secundárias, não previstas de modo expresso na Constituição, mas decorrentes da necessidade de atuar competências materiais comuns”. (ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. Competências na Constituição de 1988. 6 ed. São Paulo: Atlas, p. 124).
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> A inexistência de hierarquia entre os estatutos jurídicos federais e estaduais impendem a resolução de antinomias pelos critérios usuais. Ingo Wolfgang Sarlet, Luiz Guilherme Marinoni, Daniel Mitidiero explicam: “Como não existe hierarquia entre leis federais e as leis editadas pelos outros entes federativos, eventual conflito, representado pela invasão da esfera de competência legislativa privativa da União, resolve-se pela inconstitucionalidade da legislação que usurpa a competência, a ser declarada pelo STF.” (SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional. 10 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2021, p. 425) A inexistência de hierarquia entre as normas federais e estaduais é defendida por quase toda a teoria jurídica nacional. Nesse sentido, Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco: “O critério de repartição de competências adotado pela Constituição não permite que se fale em superioridade hierárquica das leis federais sobre as leis estadu‐ais. Há, antes, divisão de competências entre esses entes. Há inconstitucionalidade tanto na invasão da competência da União pelo Estado‐membro como na hipótese inversa”. (MENDES, Gilmar Ferreira;
BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 13 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 912)
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> FERRAZ JUNIOR, op. cit., p. 170
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> Conforme Bobbio: “Definimos antinomia como a situação na qual são positivadas duas normas, das quais uma obriga e outra proíbe, ou uma obriga e outra permite, ou uma proíbe e outra permite o mesmo comportamento. Mas a definição não é completa. Para que ocorra antinomia, são necessárias duas condições que, porquanto óbvias, devem, contudo, ser explicitadas: [...]. As duas normas devem ter o mesmo âmbito de validade. Distinguem-se quatro âmbitos de uma norma: temporal, espacial, pessoal e material.” (BOBBIO, op. cit. p. 90)
<a href="#_ftnref12" name="_ftn12">[12]</a> Inúmeros exemplos podem ser lançados para ilustrar o que se defende. Ainda que a viabilidade da exploração de uma jazida mineral seja reconhecida pela ANM, no âmbito do processo administrativo de outorga, restrições ambientais poderão incidir sobre o local de explotação, resultando na impossibilidade do licenciamento ambiental. É o que ocorre com as restrições legais à supressão de floresta de Mata Atlântica, ao uso da área de influência de cavidade natural subterrânea de relevância máxima ou à localização da jazida no interior de Unidade de Conservação de Proteção Integral.
<a href="#_ftnref13" name="_ftn13">[13]</a> Anota-se que a decisão pela descaracterização da estrutura afastará a possibilidade de licenciar a ampliação ou o alteamento da barragem.
<a href="#_ftnref14" name="_ftn14">[14]</a> Defende-se aqui a concessão da licença de instalação com fundamento na literalidade do dispositivo do artigo 12, da PESB-MG. Isso porque a vedação é para emitir licença ambiental para a “construção da barragem” ou “ampliação e alteamento”, sendo que a licença de instalação é o ato imediatamente anterior ao início da obra para construção, ampliação ou alteamento. Contudo, eventual novo regulamento da PESB-MG, não publicado na data de publicação desse estudo, poderá estabelecer restrições mesmo à licença prévia.

fotos do local onde aconteceu a tragédia pelos os rezidos de menerios das barragens de Santarem e Fundão,na cidade de Bento Rodrigues distrito de Mariana.

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JOTA

Novas regras de proteção às comunidades na Zona de Autossalvamento de barragens em MG

Barragens de mineração e comunidades

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