Paulo Fernando Pinheiro Machado

<blockquote>"Dai, pois, ao vosso servo um coração sábio, capaz de julgar o vosso povo e discernir entre o bem e o mal. Pois sem isso quem poderia julgar o vosso povo tão numeroso?”. O Senhor agradou-se dessa oração e disse a Salomão: “Pois que me fizeste esse pedido e não pediste nem longa vida, nem riqueza, nem a morte de teus inimigos, mas sim inteligência para praticar a justiça. Vou satisfazer o teu desejo. Eu te dou um coração tão sábio e inteligente como nunca houve outro igual antes de ti e nem haverá depois de ti." 
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</blockquote>
A diplomacia, antes de mais nada, é a arte da prudência. Prudência entendida aqui não no seu sentido moderno, de cautela e precaução, mas no sentido clássico-medieval de sabedoria prática, de capacidade de ver adiante e ao redor com vistas a tomar a decisão justa no caso concreto. São Tomás de Aquino dizia que a prudência é a mãe de todas as virtudes, cujo modelo mais perfeito é o do rei Salomão, que pediu a Deus não poder ou riquezas, mas a sabedoria prática de discernir entre o bem e o mal para administrar e julgar da maneira justa. A prudência do rei Salomão na busca da equidade é um arquétipo universal do sofrimento intrínseco a todo o ato de julgar. A decisão, seja do juiz ou do administrador, não pode ser apenas tecnicamente correta. Ela precisa, além disso, ser justa também.
No último dia 12 de outubro, a Corte Internacional de Justiça (CIJ) publicou sua sentença no caso <a href="https://www.icj-cij.org/en/case/161">“Delimitação marítima no oceano Índico (Somália v. Quênia)"</a>. A decisão foi em grande parte, mas não totalmente, favorável à pretensão da Somália. O Quênia, por sua vez, recusou-se a participar das audiências, questionando a legitimidade da corte e lançando dúvidas acerca da real implementação da decisão, com muitos analistas falando mesmo em possibilidade de eclosão de um conflito armado entre os dois países. Os próximos episódios do caso serão, cara leitora, sem dúvida alguma, um importante teste para a eficácia do sistema de adjudicação internacional e para a própria manutenção do regime do Direito do Mar.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>
Herança do período colonial, os dois países têm um histórico de conflitos desde, pelo menos, as respectivas independências na década de 1960. Com relação especificamente à disputa pela delimitação da fronteira marítima, contesta-se uma área de cerca de 162.580 km2, que, acredita-se, seja rica em hidrocarbonetos e recursos pesqueiros. A Somália defende que a fronteira marítima seja uma continuação da fronteira terrestre, em linha reta, até o limite das 200 milhas náuticas a partir da costa. O Quênia, por sua vez, defende que a fronteira terrestre deveria fazer um ângulo de 45º para nordeste a partir da costa, seguindo a linha do paralelo de latitude a 1º39'43.2'' S.
Disputas marítimas, cara leitora, constituem um dos pontos mais interessantes e apaixonantes do Direito Internacional Público. Isso se dá pelo fato de que não existe um único método de se calcular a linha de fronteira marítima e cada caso deve ser apreciado por seus próprios méritos. Com relação ao mar territorial, área que compreende as primeiras 12 milhas náuticas a partir da costa, a Convenção das Nações Unidas sobre Direito do Mar (CNUDM), em sua Parte II, Art. 15 estabelece que o método-padrão para a delimitação da fronteira seja o do cálculo de uma linha mediana a partir de pontos equidistantes da costa.
A convenção, contudo, não estabelece um método-padrão de cálculo para a delimitação da continuidade da fronteira marítima pela Zona Econômica Exclusiva (ZEE) e pela plataforma continental, que, segundo os Arts. 74 (1) e 83 (1) da CNUDM, “deve ser efetuada por acordo com base no Direito Internacional”. Abre-se assim, cara leitora, uma vasta gama de possibilidades e métodos de cálculos para se resolver disputas marítimas de uma maneira justa e equânime.
A questão objeto do caso em tela escalou após o Quênia haver concedido licenças de exploração de óleo e gás para empresas comerciais na área contestada. Os dois países haviam firmado um Memorando de Entendimento (ME), em 2009, intermediado pela Noruega, para buscar uma solução negociada para a controvérsia, cujos esforços não prosperaram. Mogadíscio, então, iniciou procedimentos junto à CIJ, em 2014, solicitando a delimitação da fronteira marítima entre os dois países e uma declaração da corte de que o Quênia havia desrespeitado a soberania da Somália ao conceder licenças de exploração em suas águas jurisdicionais.
O processo junto à CIJ fora assaz conturbado. O Quênia, preliminarmente, questionou a jurisdição da corte, com base, entre outros argumentos, na compreensão de que o Memorando de Entendimento de 2009 estipulava para as partes o recurso a uma forma de solução alternativa para a controvérsia, o que deveria ser intentado antes de se atrair a jurisdição da CIJ. A corte, em sua decisão preliminar de 2017, rejeitou as objeções do Quênia, concluindo, entre outros pontos, que o ME de 2009 não prescrevia um método específico de solução alternativa de disputas e, portanto, não afastava o consentimento do Quênia à jurisdição da CIJ, qualificado por reservas anteriores. O caso, assim, prosseguiu para julgamento. O procedimento foi objeto de sucessivos adiamentos e prorrogações. O Quênia, ao fim, decidiu não participar das audiências, que ocorreram entre os dias 15 e 18 de março deste ano.
A CIJ, dessa maneira, prosseguiu para a publicação da sua sentença no último dia 12 de outubro. A corte reconheceu que a CNUDM não estipula uma metodologia para a delimitação de fronteiras marítimas ao longo da ZEE e da plataforma continental, mas ressaltou que a convenção determina que se atinja uma solução equânime. Nesse sentido, a CIJ decidiu seguir a metodologia estabelecida pela jurisprudência da corte no caso “Delimitação marítima no mar Negro (Romênia v. Ucrânia)”, que estabelecia um procedimento em três fases, baseado na aplicação de um “teste de proporcionalidade” a partir de linhas equidistantes ajustáveis.
O objetivo desse teste, segundo a CIJ, é garantir “que não há desproporção marcada entre a razão dos comprimentos das costas relevantes das partes e a razão das respectivas participações na área relevante a ser delimitada pela linha prevista, e, assim, confirmar que a delimitação atinge uma solução equitativa, conforme exigido pela Convenção.” Ou seja, a metodologia do caso Romênia v. Ucrânia pretende ser neutra, porém flexível, baseando-se “em critérios objetivos e geográficos, levando ao mesmo tempo em consideração quaisquer circunstâncias relevantes relacionadas com a equidade da fronteira marítima".
A CIJ, contudo, resguardou-se o direito de se abster de usar essa metodologia em três fases “se houver fatores que tornem inadequada a aplicação do método da equidistância, por exemplo, se a construção de uma linha de equidistância a partir da costa não for viável". A Corte, contudo, ressaltou que “este não é o caso nas presentes circunstâncias, no entanto, na qual tal linha pode ser construída".
A CIJ, cara leitora, procurou proferir uma decisão salomônica para encerrar a questão: dividiu a área contestada praticamente ao meio, procurando respeitar a proporção da relação entre a extensão das costas dos Estados envolvidos e o seu quinhão da área disputada. O resultado prático da decisão foi mais próximo, mas não totalmente, do pleito da Somália. A ratio decidendi, contudo, foi sólida e apoiada na jurisprudência anterior da corte.
Por outro lado, com relação à submissão da Somália de que, por um ato unilateral, o Quênia teria violado a sua soberania nas águas sob disputa, a CIJ determinou que não poderia haver ofensa à soberania de uma parte por uma ação de boa-fé da outra parte sobre uma área contestada. A Corte declarou que “quando as reivindicações marítimas dos Estados se sobrepõem, as atividades marítimas realizadas por um Estado em uma área que é posteriormente atribuída a outro Estado por uma sentença não podem ser consideradas como uma violação dos direitos soberanos deste último se essas atividades foram realizadas antes da sentença ser proferida e se a área em questão foi objeto de reclamações feitas de boa-fé por ambos os Estados". Essa parte do pedido da Somália foi, portanto, negada. Vale sempre lembrar, cara leitora, que a CIJ é uma corte de última instância, isto é, não é possível apelar de suas decisões.
O Quênia, entretanto, rejeitou a sentença da CIJ “na sua totalidade”, lançando dúvidas acerca dos próximos passos para a efetivação da decisão da corte. O Quênia é um ator importante para a manutenção da estabilidade da região e do regime do Direito do Mar. Mesmo no nível simbólico, o próprio conceito de Zona Econômica Exclusiva, que compõe o cerne do regime da CNUDM, foi um desenvolvimento original da diplomacia queniana, apresentado pela primeira vez à Comissão das Nações Unidas sobre Fundos Marinhos em 1977. A preocupação da diplomacia do Quênia, ao desenvolver o conceito, foi equilibrar o interesse dos Estados costeiros com o princípio do mare liberum, isto é, do compartilhamento dos recursos marinhos entre todos os Estados do globo. Uma contribuição histórica para o desenvolvimento do Direito Internacional, cara leitora.
Conforme já tivemos a oportunidade de analisar <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/descumprimento-de-sentenca-da-corte-internacional-de-justica-17092021">nesta coluna</a>, a CIJ vem desenvolvendo formas alternativas de monitorar o cumprimento de suas decisões, com base na jurisdição inerente da corte. A possibilidade tradicional, em caso de descumprimento da sentença, seria buscar sua implementação pelo Conselho de Segurança da ONU – coincidentemente presidido pelo Quênia neste mês de outubro –, de acordo com o procedimento previsto no art. 94 (2) da Carta da ONU. As tensões são altas e há risco real de escalada para um conflito armado na região do Chifre da África, ainda que isso não seja do interesse de ninguém. As relações internacionais, muitas vezes, adquirem dinâmica própria e incontrolável.
Vale lembrar, cara leitora, que a delimitação de fronteiras marítimas está no cerne de algumas das principais disputas geopolíticas da atualidade. A tensão entre Grécia e Turquia sobre áreas no leste do Mediterrâneo, bem como a intricada questão da área marítima ao sul da China, disputada por Vietnã, Filipinas, Taiwan, Malásia, Brunei e a própria China podem, eventualmente, vir a ser apreciadas pela CIJ em um futuro próximo. A implementação da sentença no caso Somália v. Quênia, assim, é um teste crucial para a manutenção da legitimidade do regime da CNUDM, do sistema de adjudicação global e para a preservação mesma da paz e da segurança internacionais.
Uma decisão judicial, contudo, ainda que de última instância, não é jamais o fim da história. Ela se insere, sempre, no contexto das relações mais amplas das partes e da sociedade como um todo. Os próximos passos, muito provavelmente, levarão as partes novamente à mesa de negociações, para discussões diplomáticas com um novo carteado. Uma das possibilidades seria a de se seguir o exemplo da diplomacia do Barão do Rio Branco que, em nome da paz e da estabilidade regionais, concedeu, em um ato de magnanimidade, o condomínio das águas da Lagoa Mirim ao Uruguai em 1909.
O embaixador Rubens Ricupero lembra que Rio Branco "no último de seus atos sobre limites, a retificação da fronteira com o Uruguai (1909), tomou a iniciativa de abandonar um tabu que favorecia o Brasil: o da perpetuidade dos tratados de fronteira e dos atos jurídicos 'perfeitos'".<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[1]</a> Países vizinhos e nações irmãs podem sempre, na visão de Rio Branco, compartilhar o uso sustentável dos seus recursos fronteiriços, com vistas ao desenvolvimento pacífico de seus povos. O arquétipo da sabedoria do rei Salomão encontrou no Barão do Rio Branco um administrador prudente, capaz de conduzir o difícil balanço de equalizar, no caso concreto, a correção técnica com os ditames da Justiça.
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<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[1]</a> RICUPERO, R. A Diplomacia na Construção do Brasil. 1750-2016. Rio de Janeiro: Versal Editores, 2017. p. 302

barão do rio branco somália quênia

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JOTA

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