Paulo Fernando Pinheiro Machado

<blockquote class="jota-article__quote">"Esta história o pai contará a seu filho; 
E Crispim e Crispiniano não há de passar, 
Desde este dia até o fim do mundo, 
Sem que nele sejamos nós lembrados; 
Nós poucos, felizes poucos, bando de irmãos."
<footer class="jota-article__quote-cite">William Shakespeare, Henrique V <a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> </footer>
</blockquote>
Santo Agostinho dizia que para nós, seres mortais, onde vamos morrer é de pouca importância. O que realmente importa é para onde vamos depois de morrermos. À parte qualquer metafísica, a ideia aqui é a de transcendência, a de que podemos almejar a algum tipo de imortalidade mesmo depois de termos passado deste mundo. E isso somente é possível se, ao longo da sequência inesgotável de batalhas que constitui uma vida humana, nos portemos sempre com bravura, isto é, se agirmos da maneira mais honrosa possível, com base no desejo de materializar o mais alto bem em nossa pequeneza concreta, apesar de nossa finitude e independente dos resultados. Somente a coragem é imortal.
A imortalidade pode ser atingida quando a coragem pessoal transcende os limites da existência de um só indivíduo e passa a inspirar todo um povo e uma época. Dessa bravura de buscar o mais alto bem, em que pese todas as dificuldades e baixezas momentâneas, nascem os heróis. Assim foi com Henrique V, que na Batalha de Agincourt (1415), pela coragem de seu pequeno exército, destroçou as forças francesas imensamente superiores, em um dos maiores feitos de bravura militar da história. Coragem é a Graça sob pressão, dizia Hemingway.
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Assim foi também com o nosso Barão do Rio Branco que, na arbitragem contra a França (1900), pela coragem de sua reduzidíssima equipe diplomático-jurídica de apenas três pessoas, destroçou a muito mais vasta e bem equipada equipe francesa, em um dos maiores feitos jurídicos internacionais da história. Como bem ressaltou o embaixador Maurício E. Cortes Costa, na sua nota à edição dos Cadernos do Barão do Rio Branco, organizada pelo embaixador Affonso José Santos, o contraste entre os registros privados do Barão e o arquivo da delegação francesa “permite vislumbrar o embate entre o ativo corpo de funcionários públicos da grande potência mundial e o pesquisador e patriota exemplar, que devota todo o seu cabedal à causa” <a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Há 121 anos, em 1º de dezembro de 1900, o Conselho Federal Suíço emitia o seu Laudo Arbitral totalmente favorável à posição brasileira. Fora o fechamento glorioso de uma longa litigância, na qual Rio Branco se portou da maneira mais nobre, corajosa e correta, fazendo do Brasil um exemplo ímpar de bravura e respeito ao Direito Internacional perante os olhos do mundo. Como bem lembra o embaixador Rubens Ricupero, na época “a França ostentava sobre o Brasil superioridade indiscutível em qualquer dimensão do poder” <a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. Berna foi a nossa Agincourt.
A questão não era simples. Em disputa estava a delimitação da fronteira entre o Brasil e a Guiana Francesa, território ultramarino gálico, objeto de discussão desde pelos menos 1688, quando Lisboa e Paris pleiteavam a área que vai de Cabo Norte, na costa atlântica, até o rio Oiapoque <a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
A questão central era a de determinar a exata localização do rio Oiapoque, reconhecido pela França como o limite da Guiana Francesa no Artigo VIII do Tratado de Utrecht (1713) <a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>. Em 1872, os dois países firmaram um compromisso arbitral para submeter a questão ao Conselho Federal Suíço, em Berna, motivados pela eclosão de conflitos armados na região do rio Calçoene, em cujas cabeceiras haviam sido encontradas jazidas de ouro <a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>.
O advogado brasileiro foi ninguém menos do que José Maria da Silva Paranhos Júnior, o próprio Barão do Rio Branco. O Barão, além de ter recebido uma sólida formação jurídica nas Faculdades de Direito de São Paulo e do Recife, também contava com vasta experiência prática na advocacia. Começara sua carreira profissional como promotor público em Nova Friburgo e já havia se destacado como advogado do Brasil na arbitragem com a Argentina pela Questão de Palmas, cujo árbitro fora o presidente dos EUA, Grover Cleveland, que em 1895 dera ganho de causa para o Brasil.
Tínhamos, sem sombra de dúvida, o melhor advogado. Mas as dificuldades que se lhe impunham eram imensas. A começar pelo desnecessário fogo amigo <a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>. Desde o início, já nas negociações do tratado de arbitragem, Rio Branco, que havia sido designado como advogado brasileiro, fora excluído das negociações do compromisso <a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>. E isso em um momento em que a França negava autorização ao Brasil para circular os títulos da sua dívida na Bolsa de Paris e ameaçava com uma incursão militar no Amapá <a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>. Também durante o curso do processo, Rio Branco teve auxílio somente de dois diplomatas, Domício da Gama e Hippolyto de Araújo, os quais o então chanceler, Olyntho de Magalhães, tentava de todo o modo retirar da legação em Berna, para deixar Paranhos totalmente sozinho a defender o Brasil no campo da batalha jurídica <a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>.
Rio Branco, contudo, não se deixara abater. Como Henrique V em Agincourt, partiu para a luta com os recursos que tinha, dando sempre o melhor de si. Como bem lembrou o embaixador José Affonso Santos, “praticamente solitário em seu trabalho, Rio Branco utilizava seu impressionante bom senso, aliado a seus profundos conhecimentos de história, geografia e direito, para conduzir a defesa brasileira. Acompanhou pessoalmente a impressão da primeira memória na gráfica Lahure, e, durante todo o período que antecedeu a sua entrega ao presidente da Confederação suíça, passou noites sem dormir” <a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a>. Rio Branco trazia a mesma garra tupiniquim demonstrada um século mais tarde por Ayrton Senna, que venceu o GP do Brasil de 1991 com apenas uma marcha, terminando a corrida em total exaustão física. O Brasil foi construído por esse tipo de gente.
O outro lado tampouco aliviava, jogando pesado e sujo. Os franceses buscavam mesmo intimidar o governo suíço, com toda a sorte de irritantes, em especial buscando alterar a precedência diplomática da capital suíça <a href="#_ftn12" name="_ftnref12">[12]</a>. Rio Branco não entrou no jogo, mantendo sempre atitude discreta, buscando, pela sua postura social, “angariar o respeito e a admiração da sociedade bernense” <a href="#_ftn13" name="_ftnref13">[13]</a>.
Os golpes baixos não se limitavam a manobras de gabinete. A delegação francesa usava de toda a sorte de artifícios para tentar prejudicar o Brasil. Os franceses chegaram mesmo ao ponto de propor a substituição dos seus mapas por uma outra carta com um espaço em branco sobre o local onde ficava o rio Araguari, escrito “região insuficientemente conhecida”, a despeito de ter sido reconhecida anteriormente pela França <a href="#_ftn14" name="_ftnref14">[14]</a>. Como bem salientou o embaixador Affonso José Santos, “se tratava de apresentar mapa falsificado, com acréscimos, supressões e outras alterações destinadas a ludibriar o árbitro. Além de violar as determinações do tratado assinado pela França em 10 de abril de 1897 (introdução de documento, fora do prazo legal), colocava em risco a credibilidade francesa, com consequências imprevisíveis sobre outros aspectos da Réplica” <a href="#_ftn15" name="_ftnref15">[15]</a>.
Rio Branco ficou sabendo do ardil em uma ocasião social, informalmente, três meses depois de o mapa retificador ter sido oficialmente submetido pela delegação francesa <a href="#_ftn16" name="_ftnref16">[16]</a>. Rio Branco, sem perder a compostura, foi ter com o diretor político da Chancelaria suíça, Gustavo Graffina. Este havia estado em licença-médica, e seu substituto, Alphonse Dunant, não dera conhecimento da nota francesa à parte brasileira, em total afronta ao princípio do contraditório <a href="#_ftn17" name="_ftnref17">[17]</a>. O embaixador Santos ressalta que não se sabe se Dunant omitira a questão por “inexperiência ou conluio com os franceses”, mas o fato é que a descortesia causou forte embaraço ao governo suíço, levando Graffina a pedir que Rio Branco não formalizasse a questão e assegurando-lhe que daria encaminhamento ao assunto <a href="#_ftn18" name="_ftnref18">[18]</a>. Paranhos, como o gentleman que era, não formalizou a queixa.
Em que pesem todas as dificuldades e trapaças, Rio Branco, acompanhando de seu bando de irmãos, que eram poucos, mas felizes, receberam a 1º de dezembro de 1900 o Laudo Arbitral do governo suíço dando ganho de causa ao Brasil. Como lembrou o embaixador Santos, “Rio Branco fechou com chave de ouro seu papel de defensor dos interesses brasileiros, ao garantir a consolidação definitiva para o Brasil de território de, aproximadamente, 240 mil quilômetros quadrados, objeto de disputa quase tricentenária, herdada de Portugal e resolvida pelo Brasil” <a href="#_ftn19" name="_ftnref19">[19]</a>.
Rio Branco teve a coragem de, sob intensa pressão de todos os lados, manter a condução do caso brasileiro de maneira altiva e honesta, sempre em atenção e respeito aos ditames do Direito e almejando o maior bem para a sua pátria, a despeito dos inúmeros desconfortos pessoais. Quis a Graça dar-lhe o prêmio maior, a imortalidade de ser sido um exemplo de advogado, de diplomata, de estadista e de homem público da mais alta competência para todos nós brasileiros. Essa história deve ser contata de pai para filho. Berna foi a nossa Agincourt.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Ato IV, Cena III. Tradução de Beatriz Becker. Disponível em: <a href="https://beatrizbecker.com/2020/10/25/traducao-o-discurso-de-henrique-v/">https://beatrizbecker.com/2020/10/25/traducao-o-discurso-de-henrique-v/</a>
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Cortes Costa, Maurício E. “Nota do Editor”, in Santos, Affonso José. Barão do Rio-Branco: cadernos de notas: a questão entre o Brasil e a França (maio de 1895 a abril de 1901), Vol I. Brasília: FUNAG, 2017. p. 17. Disponível em: <a href="https://funag.gov.br/biblioteca-nova/produto/16-1-barao_do_rio_branco_cadernos_de_notas_a_questao_entre_o_brasil_e_a_franca">https://funag.gov.br/biblioteca-nova/produto/16-1-barao_do_rio_branco_cadernos_de_notas_a_questao_entre_o_brasil_e_a_franca</a>
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Ricupero, Rubens. “Prefácio – Monumento Sem Paralelos de Pesquisa e Erudição”, in Santos, Affonso José. Barão do Rio-Branco: cadernos de notas: a questão entre o Brasil e a França (maio de 1895 a abril de 1901), Vol I. Brasília: FUNAG, 2017. p. 26.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Pinheiro Machado, Paulo Fernando. “French Guyana - Brazil v France in a Public International Law Arbitration”, E-Solver, Chartered Institute of Arbitrators, 05 set. 2009. Disponível em: <a href="https://www.ciarb.org/resources/features/french-guyana-brazil-v-france-in-a-public-international-law-arbitration/">https://www.ciarb.org/resources/features/french-guyana-brazil-v-france-in-a-public-international-law-arbitration/</a>
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Ibid.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Ricupero, Rubens. “Prefácio – Monumento Sem Paralelos de Pesquisa e Erudição”, in Santos, Affonso José. Barão do Rio-Branco: cadernos de notas: a questão entre o Brasil e a França (maio de 1895 a abril de 1901), Vol I. Brasília: FUNAG, 2017. p. 28.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Santos, Affonso José. Barão do Rio-Branco: cadernos de notas: a questão entre o Brasil e a França (maio de 1895 a abril de 1901), Vol V. Brasília: FUNAG, 2017. p. 2045.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Ibid, p. 29.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> Ibid.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> Santos, Affonso José. Barão do Rio-Branco: cadernos de notas: a questão entre o Brasil e a França (maio de 1895 a abril de 1901), Vol V. Brasília: FUNAG, 2017. pp. 2043-4.
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> Santos, Affonso José. Barão do Rio-Branco: cadernos de notas: a questão entre o Brasil e a França (maio de 1895 a abril de 1901), Vol I. Brasília: FUNAG, 2017. pp. 36-7.
<a href="#_ftnref12" name="_ftn12">[12]</a> Ibid. p.2046.
<a href="#_ftnref13" name="_ftn13">[13]</a> Ibid.
<a href="#_ftnref14" name="_ftn14">[14]</a> Ibid. p. 2048.
<a href="#_ftnref15" name="_ftn15">[15]</a> Ibid. p. 2051.
<a href="#_ftnref16" name="_ftn16">[16]</a> Ibid. p. 2053.
<a href="#_ftnref17" name="_ftn17">[17]</a> Ibid. p. 2054.
<a href="#_ftnref18" name="_ftn18">[18]</a> Ibid.
<a href="#_ftnref19" name="_ftn19">[19]</a> Ibid. p. 2056.

Barão_do_Rio_Branco_(fotografia)

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JOTA

Sobre a coragem brasileira na diplomacia e nas arbitragens internacionais

A bravura do barão do Rio Branco em Berna

Sobre a coragem brasileira na diplomacia e nas arbitragens internacionais com o Barão do Rio Branco em disputa contra a França em 1900