Rafael Muneratti

A Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, seguindo voto de relatoria do ministro Celso de Mello, por unanimidade, concedeu a ordem em habeas corpus coletivo impetrado pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo no sentido de garantir banho de sol, por no mínimo duas horas diárias, para todos os presos em cumprimento de pena nos chamados seguros ou castigos, em qualquer penitenciária onde houver essa prática.
O acórdão é de importância ímpar, não somente pelo seu mérito, que garante um mínimo de dignidade humana aos presos que cumpriam pena em locais escuros e insalubres 24 horas por dia, 7 dias por semana, mas também por consolidar no âmbito do STF a possibilidade de conhecimento e concessão de habeas corpus coletivos.
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Porém, até chegarmos no acórdão ora em análise, foram necessários três habeas corpus, sete anos de tramitação entre o STJ e o STF, e nove anos desde o pedido inicial. O primeiro habeas corpus foi impetrado no STJ em abril de 2013 (HC 269.265/SP) e se voltava contra acórdão coator do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que manteve decisão de primeiro grau negando o direito ao banho de sol para os detentos da Penitenciária “Tacyan Menezes de Lucena” na cidade de Martinópolis, interior de SP.
O pedido inicial teve como fundamento uma visita ao presídio realizada pela Defensoria Pública em 2011, no qual o Defensor Público constatou que os sentenciados que se encontravam nos pavilhões de medida preventiva de segurança pessoal e disciplinar não tinham assegurado o seu direito ao banho de sol.<a class="sdendnoteanc" href="#sdendnote1sym" name="sdendnote1anc">i</a> As celas disciplinares são aquelas reservadas para sancionar os presos que praticam faltas graves, normalmente, em isolamento.
Os pavilhões de segurança ou “seguro” são aqueles reservados para presos ameaçados de morte, em razão de dívidas, brigas entre facções ou tipo de crime cometido. Locais em que os presos eram mantidos trancados dia e noite, sem saírem das celas.
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Após o insucesso dos pedidos formulados em primeiro e segundo grau no sentido de ser garantido aos referidos sentenciados o banho de sol diário foi impetrado o habeas corpus no STJ. Os motivos alegados pela diretoria presídio, e chancelados pela Justiça Paulista para negar o banho de sol, eram a inexistência de espaço físico no local e riscos à segurança e à ordem da penitenciária.
De acordo com as razões apresentadas pela Defensoria Pública, o banho de sol é um direito expresso e essencial que, além de trazer benefícios à saúde física e beneficiar os ossos e o sistema imunológico (metabolização da vitamina "D"), regula a pressão arterial e previne inúmeras doenças, a exemplo do diabetes tipo 2 e até alguns tipos de câncer (como as de mama, próstata, pulmão, intestino etc.).
<blockquote class="jota-article__eye">A privação de luz do sol e a manutenção de presos em cela escura constitui evidente tratamento cruel e desumano, bem como punição física que pode levar à morte.</blockquote>
As consequências desse tipo de tratamento, e de sua incompatibilidade absoluta com um mínimo de dignidade humana, são o surgimento de doenças e complicações que decorrem diretamente da ausência de contato regular com a luz solar. Como, por exemplo, osteoporose, artrite reumatoide, doenças autoimunes, decréscimo na produção de testosterona, cáries, rejeição de implantes ósseos, facilidade de fraturas, perda óssea, hipertereodismo, perda de massa muscular, miopia; hipertensão, câncer de intestino, esclerose múltipla, depressão e agravamento de quadros psiquiátricos.
Trata-se, portanto, de verdadeira prática de tortura que inflige intenso sofrimento físico e mental com consequências trágicas aos presos a ela submetidos. É tirar deles, além da liberdade, a saúde física e a saúde mental. É fazê-los apodrecerem vivos em celas escuras, úmidas, sujas e totalmente insalubres.
O HC 269.265/SP<a class="sdendnoteanc" href="#sdendnote2sym" name="sdendnote2anc">ii</a>, com a argumentação acima, foi um dos primeiros habeas corpus levados à apreciação do STJ em que foi afirmada a inadmissibilidade da impetração coletiva.<a class="sdendnoteanc" href="#sdendnote3sym" name="sdendnote3anc">iii</a> A primeira decisão de não conhecimento foi monocrática, proferida pela relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura. Após interposição de agravo regimental foi editado acórdão no mesmo sentido pela Sexta Turma. Conforme o acórdão seria “descabida a roupagem "coletiva" dada ao habeas corpus, até porque a competência para o julgamento do writ neste Superior Tribunal de Justiça deve ser firmada em razão da execução de cada preso e não pela situação ou local onde um grupo de presos se encontra no momento da impetração.”<a class="sdendnoteanc" href="#sdendnote4sym" name="sdendnote4anc">iv</a>
O caso, então, foi levado ao STF em novo habeas corpus impetrado pelos mesmos Defensores Públicos, substitutivo de recurso ordinário, que recebeu a autuação HC 118.536 e foi distribuído ao Ministro Dias Toffoli. Apesar do indeferimento do pedido de liminar, em 27.8.2013, o Ministro Toffoli determinou a requisição de informações à autoridade coatora. Dessa forma, deu prosseguimento à impetração e indicou a viabilidade da ação e a possibilidade de sua concessão, antes mesmo da decisão no HC 143.641, o qual viria a ser considerado o primeiro habeas corpus coletivo concedido pelo STF. Não seria demais afirmar, assim, no que se refere à admissibilidade do habeas corpus coletivo no STF, que o HC 118.536 foi o pioneiro. O Ministério Público Federal ofereceu parecer no sentido da concessão da ordem. A Defensoria Pública do Estado da Bahia e a Defensoria Pública da União ingressaram com pedidos e foram admitidas como amici curiae.
Finalmente, em 15.06.2018, por decisão monocrática, o Min. Toffoli concedeu a ordem, com base na jurisprudência que se formava com a decisão no HC 143.641, e determinou que o Superior Tribunal de Justiça desse seguimento ao HC 269.265/SP e analisasse a questão de fundo objeto daquele habeas corpus coletivo.<a class="sdendnoteanc" href="#sdendnote5sym" name="sdendnote5anc">v</a>
Recebida a decisão no STJ, foi novamente levado a julgamento o HC 269.265/SP, agora, sob relatoria da Ministra Laurita Vaz, que sucedeu a relatora original. Em nova decisão monocrática, já em 18.12.2018, a Ministra não conheceu da impetração. Em sua decisão alegou a inexistência de ilegalidade a ser sanada pela via do habeas corpus. Afirmou que seriam necessárias obras e reformas para permitir o direito de banho de sol, mas que não poderiam ser realizadas sem risco à ordem, à disciplina e à integridade física de todos os detentos. No seu entender, ainda, essa questão fática seria inviável de ser reexaminada na via do remédio heroico. Concluiu, assim, pela “inadequação da via do habeas corpus para fazer com que o poder executivo cumpra a sua missão de "prover os meios" necessários à boa execução das leis.”
Mais uma vez, foi preciso recorrer ao STF por meio de habeas corpus substitutivo de recurso ordinário, autuado como HC 172.136<a class="sdendnoteanc" href="#sdendnote6sym" name="sdendnote6anc">vi</a> e distribuído ao Ministro Celso de Mello. Após receber e ouvir a Defensoria Pública em despacho no seu gabinete, o Ministro entendeu por bem deferir a liminar pleiteada e garantir, desde então, o direito ao banho de sol por pelo menos duas horas diárias aos presos da Penitenciária de Martinópolis, em decisão de 04.07.2019.
Após a decisão concessiva da liminar, a Defensoria Pública formulou mais dois pedidos incidentais. O primeiro para a extensão da liminar para os demais presídios do Estado de São Paulo que também mantinham presos sem banho de sol. E em seguida, um último pedido ressaltando a importância da concessão definitiva da ordem.
O Ministro Celso de Mello, então, determinou a apresentação em mesa do habeas corpus para julgamento virtual em 02.10.2020, na Segunda Turma do STF, possibilitando a realização de sustentação oral da Defensoria Pública paulista.<a class="sdendnoteanc" href="#sdendnote7sym" name="sdendnote7anc">vii</a> Após o prazo regimental de julgamento em 09.10.2020, houve a concessão final da ordem por unanimidade. Seguiram o voto do relator os Ministros Gilmar Mendes (com declaração de voto), Ricardo Lewandowski, Edson Fachin e a Ministra Cármen Lúcia.
Além de reafirmar a importância e o cabimento do habeas corpus de natureza coletiva, o Ministro relator concedeu a ordem de ofício, mesmo diante de decisão monocrática de Tribunal Superior, ressaltando a necessidade de tal procedimento quando diante de constrangimentos ilegais patentes.
Em seu voto, um de seus últimos e mais um para entrar para a história do Supremo Tribunal Federal, o Ministro Celso de Mello afastou argumentos contrários ao pedido de caráter economicista como reserva do possível e ausência de recursos, ou de caráter operacional e de gestão, como dificuldade de realização de obras nos presídios. Nenhum deles capaz de justificar a grave violação de direitos humanos que ocorria nos estabelecimentos penais.
<blockquote class="jota-article__eye">Celso de Mello produziu um voto de exaltação à dignidade humana, aos direitos humanos e contra o tratamento cruel e degradante dispensado aos presos, não apenas do Estado de São Paulo, mas de todo o nosso país.</blockquote>
Nas palavras do Ministro Celso de Mello:
“No caso , a lesiva (e inadmissível) privação de banho de sol, que afeta os presos recolhidos aos pavilhões de medida preventiva de segurança pessoal e disciplinar, revela o crônico estado de inércia (e indiferença) do Poder Público em relação aos direitos e garantias das pessoas privadas de liberdade, esvaziando, em consequência , o elevado significado que representa, no contexto de nosso ordenamento positivo , o postulado da dignidade da pessoa humana.”
Diante da importância e da relevância da questão tratada, o Ministro não apenas acolheu o pedido de extensão da Defensoria Pública, como o estendeu efetivamente todos os detentos, independentemente do presídio em que se encontrem, concedendo a ordem coletiva para qualquer estabelecimento penal:
“Estendo, finalmente, de ofício , nos mesmos termos e observados os mesmos limites ora delineados neste acórdão, o benefício do banho de sol , por pelo menos 2 (duas) horas diárias, ora concedido nesta sede processual, a todos os internos que, independentemente do estabelecimento penitenciário a que se achem recolhidos, estejam expostos, objetivamente a situação idêntica ou assemelhada à que motivou a concessão do presente “writ ” constitucional.”
Como escreveu Jorge Amado: “a liberdade é como o sol, o bem maior do mundo.”<a class="sdendnoteanc" href="#sdendnote8sym" name="sdendnote8anc">viii</a> Enquanto esses presos aguardam a almejada liberdade, pelo menos lhes foi concedido um pouco de luz do sol em suas vidas, durante a espera.
O encerramento da carreira do Ministro Celso de Mello não poderia ser mais emblemático do que com o julgamento do presente habeas corpus, o qual tratou de levar um mínimo de dignidade humana para pessoas presas em celas escuras 24 horas por dia sete dias por semana.
Dignidade humana que foi sua preocupação incessante durante todo seu tempo no Supremo Tribunal Federal.
Nos seus 31 anos como Ministro da Suprema Corte, Celso de Mello iluminou o STF e a Justiça desse país forte como o brilho do sol, que ao final trouxe de volta para essas pessoas outrora esquecidas.
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<div id="sdendnote1">
<a class="sdendnotesym" href="#sdendnote1anc" name="sdendnote1sym">i</a> Visita realizada em 6 de dezembro de 2011 pelo Defensor Público Orivaldo de Souza Ginel Júnior.
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<div id="sdendnote2">
<a class="sdendnotesym" href="#sdendnote2anc" name="sdendnote2sym">ii</a> Habeas corpus impetrado pelos Defensores Públicos Paulistas Patrick Cacicedo e Bruno Shimizu.
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<div id="sdendnote3">
<a class="sdendnotesym" href="#sdendnote3anc" name="sdendnote3sym">iii</a> PEDRINA, Gustavo Mascarenhas Lacerda [et al.] Organizadores. Habeas Corpus no Supremo Tribunal Federal. São Paulo: Thomas Reuters – Revista dos Tribunais, 2019. P. 98.
</div>
<div id="sdendnote4">
<a class="sdendnotesym" href="#sdendnote4anc" name="sdendnote4sym">iv</a> STJ – Sexta Turma – HC 269.265/SP – Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura – DJe 07.06.2013.
</div>
<div id="sdendnote5">
<a class="sdendnotesym" href="#sdendnote5anc" name="sdendnote5sym">v</a> STF – HC 118.536/SP – Rel. Min. Dias Toffoli – Dje 20.06.2018.
</div>
<div id="sdendnote6">
<a class="sdendnotesym" href="#sdendnote6anc" name="sdendnote6sym">vi</a> Habeas corpus impetrado e demais pedidos formulados pelos Defensores Públicos Thiago da Luna Cury, Leonardo Biagioni de Lima e Mateus Oliveira Moro, do Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.
</div>
<div id="sdendnote7">
<a class="sdendnotesym" href="#sdendnote7anc" name="sdendnote7sym">vii</a> Sustentação oral e despachos realizados pelos Defensores Públicos Rafael Munerati e Fernanda Bussinger integrantes do Núcleo de Segunda Instância e Tribunais Superiores da DPSP.
</div>
<div id="sdendnote8">
<a class="sdendnotesym" href="#sdendnote8anc" name="sdendnote8sym">viii</a> AMADO, Jorge. Capitães da Areia. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
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JOTA

Supremo Tribunal Federal garante direito a banho de sol diário para presos em celas de castigo e de seguro

O sol nasce para todos

A 2ª Turma do STF garantiu banho de sol, por no mínimo duas horas diárias, para todos os presos em cumprimento de pena nos chamados seguros ou castigos