Paulo Fernando Pinheiro Machado

<blockquote class="jota-article__quote">“We are often told that the gold standard will shackle us to the United States. I will deal with that in a moment. I will tell you what it will shackle us to. It will shackle us to reality. For good or for ill, it will shackle us to reality. That is the only basis upon which we shall be standing, and I believe it to be the only basis which offers any permanent security for our affairs. That is my first broad reason. The foundation of Great Britain’s economic policy must be, as far as possible, based upon reality“.
- Sir Winston Churchill, em discurso na Câmara dos Comuns para defender o retorno do Reino Unido ao padrão-ouro. 4/5/1925.</blockquote>
Nem tudo o que reluz é ouro, mas todo o ouro é reluzente. Alguns etimologistas ligam a origem da palavra ouro em inglês, gold, ao radical da palavra Deus, God. O ouro simbolizaria originalmente, para essa interpretação, o dinheiro divino. Si non è vero, è ben trovato. O ouro – e os metais preciosos em geral – serviram historicamente de lastro monetário internacional, exceto pelo período que compreende desde os anos 1970 até os dias atuais, quando o lastro se tornou fictício. Uma nova forma de ouro, um ouro digital, vem agora a desafiar abertamente esse encanto da floresta, iniciando uma verdadeira batalha contra as moedas tradicionais pelo controle do sistema monetário internacional.
As últimas semanas viram uma derrocada no preço das criptomoedas, seguida de intensa oscilação. A moeda digital mais popular, a bitcoin, por exemplo, iniciou o ano de 2021 em trajetória de alta, disparando de USD 29 mil em janeiro para impressionantes USD 65 mil em abril. Prego que se destaca leva martelada. Uma série de ações coordenadas ao redor do globo, contrárias à universalização das criptomoedas, fizeram a bitcoin despencar para USD 30,2 mil no último dia 19 de maio, praticamente eliminando os ganhos do ano, configurando mesmo, naquele momento, uma perda real de valor, quando computada a inflação. No good deed goes unpunished.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>
Há cheiro de pólvora no ar. A queda livre dos ativos digitais foi precedida do anúncio, em 16 de maio, por Elon Musk, de que a Tesla não mais aceitaria pagamentos em criptomoedas, devido aos custos ambientais que as minerações digitais teriam, por utilizarem combustíveis fósseis no processo. Em seguida, autoridades da China alertaram as instituições do país para não operarem com criptoativos, gerando pânico no mercado por suspeita de uma possível regulação internacional a restringir o uso das moedas. Ao mesmo tempo, os bancos centrais ao redor do mundo avançam nos projetos de migrarem suas moedas soberanas totalmente para o meio digital. O Federal Reserve (Fed), por exemplo, vem mesmo alertando para o risco de fragmentação do sistema internacional de pagamentos, pela utilização de diferentes criptomoedas privadas. Em tempo de guerra, todo buraco é trincheira.
O movimento atual foi antecipado por <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/politica-monetaria-moeda-internacional-24042021">nossa análise</a> neste espaço no dia 24 de abril.<a href="applewebdata://391F4A1E-A8EF-4AF2-8358-4E2EF0763F24#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> A questão das criptomoedas é simplesmente o tema mais importante do sistema financeiro internacional, cuja solução determinará, em grande medida, o modelo de sociedade em que iremos viver nas próximas décadas. Trata-se, cara leitora, de uma guerra por poder. O poder de controlar a quantidade, a circulação e o valor de uma moeda em um espaço nacional, que é um dos instrumentos mais poderosos nas mãos dos Estados e dos seus bancos centrais. Esse poder está sendo amplamente desafiado pelas novas tecnologias, como, no item em questão, a blockchain, que permite a instituição de uma moeda digital privada, como a bitcoin, que escapa do controle dos bancos centrais. A guerra é pela centralização ou descentralização do sistema financeiro internacional. E nenhum dos lados parece disposto a fazer prisioneiros.
A briga, na verdade, é mais antiga e mais profunda. Durante a quase totalidade da história da humanidade, as moedas constituíam-se de elementos reais, como o sal, o ouro ou a prata. Eram feitas de elementos verdadeiros, normalmente encontrados na tabela periódica e cujo preço era definido de forma descentralizada pelo mercado – pelos velhos mecanismos de oferta e demanda. O outro vale o que o ouro vale. Em qualquer lugar e, dizem os sábios, a qualquer tempo.
<blockquote class="jota-article__eye">Reza a lenda, por outro lado, que o dinheiro de papel fora inventado na China no século VII A.D. como forma de facilitar a vida de caixeiros-viajantes, que não precisariam carregar mais o peso das moedas metálicas, pois poderiam deixá-las depositadas com um fiduciário e apresentar notas em garantia.</blockquote>
A idéia foi descoberta por Marco Polo no século XIII A.D. e trazida para a Europa. Essas “notas bancárias” – que nada mais eram do que notas promissórias, foram se popularizando a partir do século XVIII, mas somente se tornaram de aceitação obrigatória no século XIX, principalmente a partir da edição, no Reino Unido, do Bank Charter Act de 1844, que restringia o direito de emissão de notas por bancos outros que não o Banco da Inglaterra. Ou seja, ao longo de quase toda história da humanidade, o sistema monetário internacional foi descentralizado. Bingo.
Entre os séculos XIX e XX, então, o papel-moeda passa a ser de aceitação obrigatória e de emissão centralizada pelos bancos centrais, notadamente a partir da década de 1920. O ponto central é que esse papel-moeda nada mais era do que uma promessa de pagamento, pelos bancos centrais, de uma certa quantia em ouro, uma vez que a emissão dos papéis era lastreada em reservas do metal. As notas continuavam sendo notas promissórias. Era o velho e glorioso sistema monetário internacional baseado no padrão-ouro. Bons tempos aqueles. O seu dinheiro, cara leitora, valia ouro. Imagine só.
E esse mesmo padrão-ouro foi a base do sistema monetário internacional contemporâneo, erigido ao final da Segunda Guerra Mundial, na Conferência de Bretton Woods, ocasião em que as potências aliadas optaram por construir um sistema baseado na paridade entre o ouro e o dólar. Essa paridade, contudo, foi unilateralmente eliminada pelo Presidente Richard Nixon, em 1971, quando os EUA anunciaram que a partir de então não mais converteriam o dólar em ouro, inaugurando, na prática, um novo sistema monetário internacional batizado de fiat money, isto é, dinheiro fictício, igualzinho àquele do banco imobiliário. Segundo Matthew MacConaughey, o dólar, a partir de 1971, vale apenas “fugazis”, isto é, um elemento que não existe na tabela periódica. Vivemos, em suma, em um sistema de prestidigitação. Quem tem o ouro ditas as regras. Quem tem os fugazis...
O sistema do fiat money é como um encanto de história da carochinha: um dia a princesa acorda e descobre que o sapo é mesmo um sapo. A atual pandemia funcionou exatamente como o antídoto para quebrar esse feitiço. Para evitar os efeitos catastróficos que a pandemia de Covid-19 potencialmente teria sobre a economia mundial, os governos adotaram uma política monetária expansionista, literalmente injetando um dilúvio de dinheiro do banco imobiliário na economia global, esperando que ninguém percebesse. O efeito tem de ser necessariamente inflacionário, como já se verifica nas altas históricas das bolsas de valores e dos ativos imobiliários. E o salário, óh: estagnado, em termos reais, desde a década de 1970.
A tecnologia, e as criptomoedas, criaram a possibilidade das pessoas optarem por não participar da política inflacionária dos governos ao redor do globo, mantendo suas reservas em ativos digitais – que exercem a mesma função que os metais preciosos exerceram ao longo da história, isto é, de reserva de valor. O efeito mais imediato disso é uma dificuldade maior de controle governamental dos fluxos financeiros e da base monetária real da economia, com perda de receita tributária e maiores dificuldades de financiamento por parte dos governos (leia-se alta dos juros e contração de ciclos de expansão). Os títulos do tesouro norte-americano, de fato, tem vistos seus juros subirem, arriscando não apenas uma possível recuperação da economia global, mas a própria sobrevivência de um sistema fantasioso, baseado em um constante endividamento inflacionário.
Quem com ferro fere, com ferro será ferido. O sistema monetário internacional, baseado na livre flutuação do dólar norte-americano como moeda de referência, corre o risco iminente de sofrer o mesmo destino de seu antecessor, ancorado na libra esterlina: o de morrer de velho. Na praia. E nesse particular a ironia da história é mordaz. Sir Winston Churchill, quando Chancelor of the Exchequer (equivalente a Ministro da Fazenda), fez o Reino Unido retornar ao padrão-ouro. No discurso que ele proferiu na Câmara dos Comuns, para defender a aprovação da medida, em 4 de maio de 1925 – e que serve de epígrafe para este artigo, Churchill alertava para o risco de que, mantendo um sistema de livre flutuação da libra esterlina corria-se o risco de perder a hegemonia internacional para uma moeda real, o dólar norte-americano, ainda ancorada no ouro:
“The same is true of foreign countries with which we deal. We have immense dealings with them, and we must have greater dealings with them if our prosperity is to revive. If the English pound sterling is not to be anchored to the standard which everyone knows and can trust, and which everyone in every country understands, and can rely upon, the business, not only of the British Empire, but of Europe as well, might easily have come to be transacted in dollars instead of in pounds sterling. I think that would be a great misfortune, a misfortune which, if once incurred, might continue. Those are the three great reasons, economic, social and Imperial, which convinced me that we should return without delay to an international gold standard”.
E foi exatamente isso o que aconteceu e muito possivelmente voltará a ocorrer. Se o dólar – ou qualquer outro papel-bancário – não estiver ancorado em um padrão que todo o mundo, em qualquer país, pode entender e, principalmente, confiar, os negócios fatalmente rumarão para uma outra moeda, mais real e segura, como o podem ser as criptomoedas. Aqui se faz, aqui se paga.
As lições da história raramente são lembradas. A história é, muitas vezes, a história do esquecimento. Abraham Lincoln dizia que “se pode enganar algumas pessoas o tempo todo, todas as pessoas por algum tempo, mas não se pode enganar todo o mundo o tempo todo”. O sistema dos fugazis pretendia enganar todo o mundo indefinidamente. Pois vieram as criptomoedas e, sobre elas, a pandemia de Covid-19. Inicia-se, agora, uma batalha por mais centralização ou por mais descentralização do real poder monetário. Quem vencer, decidirá o tom do futuro. Ao vencedor, as batatas.
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