Thaís Kleinsorge Mendes

A Lei n° 12.865, publicada em 2013, inaugurou a regulamentação dos meios de pagamento no Brasil e trouxe conceitos ultramodernos que até então não haviam sido regulados pelo legislativo.
Os arranjos de pagamento foram definidos enquanto um conjunto de regras acordadas entre pagador e recebedor, priorizando o valor envolvido na transação independentemente da tecnologia utilizada para processá-la.
Além disso, a Lei trouxe a figura da instituição de pagamento e previu um rol de atividades por ela executadas, como gerir contas de pagamento e oferecer serviços de saque, que só eram uma realidade no ambiente das instituições financeiras tradicionais.
<a href="http://conteudo.jota.info/jota-pro-tributos"><img class="aligncenter wp-image-259015 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/07/cta-jota-pro-tributos.jpeg" alt="" width="1080" height="1080" /></a>
Sete anos depois dessa iniciativa de vanguarda do Banco Central, houve uma série de avanços impulsionados, principalmente, pelo boom da tecnologia no mercado de pagamentos brasileiro, mas os desafios que se impõem ao regulador parecem ter crescido em igual ou maior proporção.
Pode-se dizer que 2020 tem sido um ano agitado para a inovação no sistema de pagamentos brasileiro: dentre as principais novidades, vale destacar a regulamentação do denominado open banking, um sistema de compartilhamento de dados entre as plataformas de tecnologia para possibilitar aos clientes bancários o acesso a melhores serviços financeiros, a publicação do Edital de Consulta Pública do Banco Central n° 77/20 para alterar as regras das instituições de pagamento, criando o serviço de inicialização de transações de pagamento inspirado na figura do payment initiation service provider (Pisp), proveniente da regulamentação do open banking no Reino Unido<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, e o recente lançamento do PIX, o sistema que promete viabilizar os pagamentos instantâneos 24 horas por dia, inclusive aos sábados, domingos e feriados.
Não há dúvidas de que a tecnologia quebra barreiras e elimina grande parte da assimetria de informação existente entre os grandes players e seus clientes finais, mas quais devem ser as preocupações do Banco Central e das autoridades concorrenciais para impor limites a esse mercado sem dificultar a inovação?
Dentre os pontos que dificultam a atuação do regulador, está o fato de que as empresas aliadas à tecnologia e aos serviços de pagamento não costumam oferecer apenas um tipo de serviço, sendo caracterizadas como empresas de DNA (data network activities). Esse modelo de negócios consiste em armazenar o maior volume possível de dados dos usuários e utilizá-los como ferramenta para oferecer uma miríade de serviços, coletando ainda mais dados daqueles que mantêm uma atividade na rede<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
A regulação concorrencial sempre se baseou na premissa de “um mercado”, até então definido pela comercialização de um produto específico, pelo que assegurar a competitividade em um mercado de dados representa per se um desafio. Hoje, o conceito de “preço” não se amolda mais com tanta perfeição às plataformas de tecnologia, visto que nesse mercado o ativo mais valioso muitas das vezes são os dados.
Ao mesmo tempo em que os dados são ativos não-rivaissua ampla utilização pode acarretar enormes ganhos para os usuários, o poder de usar vários dados pode causar um fechamento do mercado digital e impedir a competição. Essa é uma preocupação relevante das autoridades, que vêm discutindo sobre o uso de dados como uma questão estritamente consumerista ou se também deve estar sujeita à análise concorrencial.
<blockquote class="jota-article__eye">Nesse cenário, não há dúvidas de que as empresas do mercado de pagamentos precisam estar bem preparadas e assessoradas para manter políticas robustas envolvendo o uso de dados dos seus clientes.</blockquote>
Uma outra preocupação relevante quanto aos limites da tecnologia é no âmbito da regulação prudencial, relativa à solidez do sistema para garantir que os recursos sejam suficientes até mesmo em casos extraordinários como as chamadas “corridas bancárias”. O Banco Central endereçou essa questão na Circular n° 3.681/2013, que contém regras de governança aplicáveis às instituições de pagamento.
Por meio dela, as instituições emissoras de moeda eletrônica têm que reservar 100% dos recursos mantidos em suas contas de pagamento, alocando tais valores em uma conta específica junto à autarquia<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. Ao mesmo tempo em que evidencia uma enorme precaução da autoridade quanto à solvabilidade do sistema financeiro, esse tipo de exigência pode aumentar os custos de transação para os novos entrantes do mercado de pagamentos que, muitas vezes, são players menos capazes de fazer frente a modelos já consolidados como o das big techs.
Os desafios concorrenciais não anulam os avanços já conquistados. O Banco Central possui uma extensa regulamentação envolvendo as obrigações de compliance das instituições sob sua supervisão, a exemplo da Circular n° 3.978/20 que trata sobre prevenção à lavagem de dinheiro e da Resolução n° 4.658/18 que contém as políticas de segurança contra ataques cibernéticos.
Uma outra preocupação de compliance do regulador é com o atendimento ao cliente, que envolve a prestação contínua de informações sobre os recursos mantidos nas contas de pagamento e as transações realizadas por meio das empresas de pagamentos eletrônicos.
A Resolução n° 4.433, por exemplo, obriga todas as instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central a constituir e manter um canal de ouvidoria, cujas atribuições envolvem o atendimento, registro e instrução adequada das demandas dos clientes e usuários de produtos e serviços financeiros. Ainda é incerto, contudo, se essas normas poderão regular a atuação de novos entrantes ou se será necessário conceber um novo arcabouço regulatório.
Em 2013, para além das iniciativas já citadas, o Banco Central inovou ao trazer e regular os conceitos de conta de pagamento, instrumento de pagamento e moeda eletrônica, dando uma sinalização clara ao mercado de que a inovação é sempre bem-vinda. O setor financeiro foi um dos que tomou vantagem sobre o fato de que os brasileiros são ferozes consumidores de tecnologia.
Conforme pesquisa feita pela Febraban em 2020, as transações bancárias feitas por pessoas físicas pelos canais digitais – internet e mobile – foram responsáveis por 74% de todas as operações analisadas no mês de abril. Só os celulares representaram 67% das transações analisadas no mesmo período<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
O Banco Central e as demais autoridades reguladoras estão atentos ao fato de que o consumidor se torna cada vez mais digital em suas transações do dia a dia, acarretando a expansão dos setores de fintechs e outras empresas de DNA. Em razão da diversidade de serviços oferecida por esses players, um dos maiores desafios das autoridades é garantir a competição justa entre eles por meio de um ambiente regulatório isonômico.
Ao fazermos uma retrospectiva sobre o funcionamento do sistema de pagamentos brasileiro desde a edição da Lei n° 12.865, observamos que o regulador tem buscado favorecer a abertura do mercado e fomentar o surgimento de novos participantes.
Um conceito que reflete essa postura é o de interoperabilidade entre todos os arranjos de pagamento do sistema, garantindo que os recursos transitem com a maior fluidez possível independentemente das preferências do consumidor por um arranjo ou outro.
O Banco Central parece ter largado na frente nesse processo, mas não há respostas prontas para endereçar as preocupações que já existem e que ainda vão surgir. Estamos diante de uma complexificação cada vez maior do ambiente de serviços de pagamento, o que demanda a atuação conjunta de autoridades bancárias, iniciativas de defesa do consumidor, academia e mercado para garantir que a regulamentação seja uma propulsora da inovação no mercado de pagamentos (e não o seu algoz).
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Disponível em: &lt;https://www.bcb.gov.br/detalhenoticia/467/noticia&gt;.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> The business model of big techs rests on enabling direct interactions among a large number of users. An essential by-product of their business is the stock of user data. The data are then utilized as input to offer a range od services that exploit natural network effects, generating further user activity. Increased user activity then completes the circle, as it generates yet more data. We dub this the “data-network-activities loop – or the “DNA” loop. Big tech in finance: opportunities and risks. Disponível em: &lt;https://pdfs.semanticscholar.org/e4a5/26a5bf441f0411de0ef9136fc9ab4e2dd8ff.pdf&gt;.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Circular n° 3.681, de 4 de novembro de 2013. “Art. 12. As instituições emissoras de moeda eletrônica devem manter recursos líquidos correspondentes aos saldos de moedas eletrônicas mantidas em contas de pagamento, acrescido dos saldos de moedas eletrônicas em trânsito entre contas de pagamento na mesma instituição de pagamento. § 1º Até o encerramento do horário estabelecido para o funcionamento do Sistema de Transferência de Reservas (STR) do Banco Central do Brasil, os recursos apurados na forma do caput devem ser alocados exclusivamente em: I - espécie, mediante transferência a crédito em conta específica no Banco Central do Brasil;”
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Disponível em: &lt;https://portal.febraban.org.br/noticia/3474/pt-br/&gt;.

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Complexificação cada vez maior do ambiente de serviços de pagamento demanda a atuação conjunta de autoridades

Avanços e desafios na regulamentação do sistema de pagamentos brasileiro

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