Estefânia Maria de Queiroz Barboza

Giovanna Ribas Zandoná

Marcus Vinícius Passos Rosa

Oscar Vilhena Vieira<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> nos alertou que a onda de hostilidade inflamada com as eleições de 2018 exigiria um desempenho incisivo do Supremo Tribunal Federal no sentido de defender os pressupostos democráticos de nosso Estado de Direito frente às ameaças que se erguiam no horizonte. Infelizmente, sua previsão estava certa.
Cotidianamente os demais poderes têm apreciado inconstitucionalidades cometidas pelo Executivo Federal, a exemplo da ocultação e maquiagem dos dados sobre Covid-19 no site do Ministério da Saúde; do veto da lei que exigia o uso de máscaras em locais públicos fechados; e, mais recentemente, da edição da Medida Provisória nº 979/2020, cujo teor conferia ao Ministro da Educação a competência para a designação de dirigentes pro tempore para as instituições federais de ensino durante o período de emergência sanitária.
<a href="https://conteudo.jota.info/poder-contato"><img class="aligncenter wp-image-244336 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/04/cta-risco-politico.png" alt="" width="1080" height="1080" /></a>
A MP, claramente contrária à Constituição, felizmente encontrou resistência no Legislativo, de tal sorte que seu presidente, o senador Davi Alcolumbre, a devolveu ao Executivo por considerar que afronta os dispositivos dos art. 206, inciso VI, e art. 207 do texto constitucional.
Este episódio, além de sublinhar a relevância dos checks and balances para o Estado democrático e expor o esgarçamento do diálogo institucional, gerou inquietações dentro das comunidades acadêmicas, que se viram reféns da melhor sorte do presidente.
A leitura deste fato em cotejo com outras atitudes de Bolsonaro e de sua equipe, tais como a MP nº 914/2019 (que dispunha sobre o processo de escolha dos dirigentes das universidades federais, e caducou em junho deste ano), e o projeto “Future-se” (cujo objetivo era a possibilidade de captação de recursos privados pelas instituições de ensino federais, e não chegou a vingar), evidenciam a intenção do governo em restringir a autonomia dos centros universitários, ou ao menos influir ideologicamente nela.
Ocorre que, inobstante não ter prosperado a referida medida provisória, o Chefe do Executivo encontrou outros meios de intervir na escolha dos dirigentes das Universidades e Institutos Federais: a nomeação de reitores ignorando a tradição de indicar o primeiro nome das listas tríplices (o candidato mais votado), escolhendo aqueles que mais compactuam com sua vertente de pensamento.
Há quase vinte anos, a tradição republicana de nomeação do dirigente mais votado na consulta realizada à comunidade acadêmica externaliza o respeito à autodeterminação das instituições. É dizer, ao nomear aquele que encabeça a lista, o presidente da República legitimaria o processo duplamente: primeiramente, ao prestigiar a autonomia universitária, e por segundo, respeitaria a vontade da maior parcela da comunidade acadêmica, manifestada por meio da referida consulta.
Ocorre que, à despeito da previsão constitucional do instituto da autonomia das universidades, ao menos até setembro de 2019, 43% das listas tríplices foram contrariadas pelo presidente<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, fato que assusta, causa descrédito e desesperança aos centros de ensino.
Na UFPR, vivemos um cenário parecido: nos dias 1 e 2 de setembro ocorreu a consulta acadêmica para o novo mandato da reitoria. Na ocasião, disputaram o pleito duas chapas, sendo uma delas composta pelos atuais reitor e vice-reitora da universidade, o professor Ricardo Marcelo Fonseca e a professora Graciela Bolzón, que dispararam com 85% dos votos válidos em um universo com a maior participação democrática da história da universidade paranaense.
<blockquote class="jota-article__eye">O que se revela curioso acerca deste caso é que a chapa adversária parece apostar todas as fichas na sua nomeação pelo presidente. A UFPR conta com uma tradição de respeito democrático há pelo menos trinta e cinco anos e, desde 1986, dez reitores foram nomeados por sete presidentes distintos, sendo honrada a consulta que refletia os anseios da comunidade acadêmica.</blockquote>
Interessante meditar, neste sentido, como a quebra desta republicana e boa prática reflete sobremaneira no processo democrático: não há uma disputa real; há, sim, uma aposta (que tememos que se concretize). Este temor advém do perfil de nosso governante, marcado pelo que a professora da Princeton University, Kim Lane Scheppele, consagra como legalismo autocrático, no sentido de que líderes como este, ao ambicionarem a monopolização do poder, justificam suas ações por meio do resultado das eleições, e utilizam-se de métodos legais para remover o conteúdo próprio da Constituição, que lhe dá significado<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
Como se nota, um legalista autocrata se utiliza dos instrumentos postos pela ordem jurídica de modo subverter seus propósitos, implicando na erosão democrática. Bolsonaro se veste desta roupagem, além de se aproximar do populismo, na medida em que crê ser o representante legítimo do povo, colocando todos aqueles que de alguma maneira discordam de seu posicionamento como inimigos da população que lhe elegeu.
Podemos chamá-lo, portanto, de populista autocrático. As valiosas palavras do professor da Johns Hopkins School, Yascha Mounk, bem retratam este cenário, no sentido de que tais líderes “trabalham com afinco para desacreditar de tais instituições [imprensa, universidades, sindicatos, organizações não governamentais etc.] como instrumentos das velhas elites ou dos interesses externos”<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
Governantes com este perfil travam uma guerra contra os referidos organismos, que representam uma ameaça à fictícia concepção de que são os “arautos da moralidade e a salvação da pátria”, e de que todas estas instituições atuam em sentido contrário aos interesses nacionais. Trata-se de um fenômeno notado internacionalmente<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>: na Hungria uma influente universidade com professores e recursos estrangeiros foi forçada a deixar o país; na Polônia, ações civis e criminais têm sido movidas contra docentes e acadêmicos críticos do sistema; na Turquia o corpo docente das universidades têm sofrido com perseguições e demissões.
O mais preocupante, relativamente aos populistas autocratas, é justamente a sua atuação conforme os textos legais, dentro do que se chama de discricionariedade, que é o que se denomina de uma margem de liberalidade essencial a qualquer boa Administração para a promoção de políticas públicas eficientes. Assim, sob os umbrais deste poder, Bolsonaro age para o desmantelamento das instituições.
O uso da ideia de que pode haver discricionariedade para violar a autonomia universitária e, principalmente, para promover perseguição contra determinados grupos que promovem discussões críticas contrárias aos interesses e políticas governamentais, denota prática de constitucionalismo abusivo e de evidente cunho autocrático.
Oportuno lembrar, no entanto, dos ensinamentos de Celso Antônio Bandeira de Mello, segundo os quais a discricionariedade constituiria um poder instrumentalizado por um dever, impondo-se, portanto, limites de exercício na estreita medida do desenvolvimento da função pública.
É dizer: o dever-poder discricionário não deve ser invocado a fim de solapar princípios constitucionalmente consagrados, sendo necessário considerar que “o plexo de circunstâncias fáticas vai compor balizas suplementares à discrição”<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>, impondo-se, portanto, um comportamento ótimo.
Neste feixe de circunstâncias, interessante mencionar o entendimento esposado por Steven Levitsky e Daniel Ziblatt que, ao descreverem que a manutenção de democracia forte não se dá apenas em razão das regras formais da Constituição, asseveram o relevante papel das regras não escritas do jogo democrático (guardrails), dentre as quais destacam-se duas: a tolerância mútua e a reserva institucional (forbearance). Eles acertadamente compreendem, nesta lógica, que “as democracias funcionam melhor – e sobrevivem mais tempo – onde as constituições são reforçadas por normas democráticas não escritas"<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>.
Deve, neste sentido, haver respeito às regras institucionais – consenso mínimo da democracia –, haja vista que atuar de outra maneira para o fim de perseguir os opositores políticos é caminhar para o autoritarismo. Desta forma, evidencia-se imprescindível que a regra não escrita de respeito ao resultado da consulta à comunidade seja respeitada.
Por óbvio, não se espera do Executivo Federal uma ação iluminada por sensatez, tendo em vista que o presidente deixou evidente em suas manifestações – desde a exaltação explícita de torturadores do regime militar até a reprodução da napoleônica afirmação “Eu sou a Constituição” – seu desrespeito pelas instituições e pelo garbo da cadeira que ocupa. A defesa da democracia e da autonomia universitária deve emergir da própria população, sobretudo, da comunidade acadêmica, cujos interesses primários estão sendo baqueados.
É assombroso, no entanto, perceber que dentro das próprias instituições de ensino crescem os números de defensores de um identitário adverso a estes valores indispensáveis à sociedade sob o aspecto democrático. O que nos cabe, agora, é contar com um apelo à consciência daqueles que, por meios legais, detêm o infeliz poder de destruir as instituições por dentro; além da incessante mobilização da sociedade em defesa da Constituição – parte que nos compete, pois, como cidadãos.
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SEM PRECEDENTES analisa coerência entre discurso de posse e o histórico de Fux. E o que o discurso aponta para os dois anos de gestão do novo presidente do STF:
https://www.youtube.com/watch?v=beVL41uZhk4&amp;feature=emb_title
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> VIEIRA, Oscar Vilhena. A Batalha dos Poderes: da transição democrática ao mal-estar constitucional. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. p. 218.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> FRAGA, Plínio. Bolsonaro contrariou lista tríplice para reitor em 43% das nomeações. UOL, [S. l.], [S. p]. 26 dez. 2019. Disponível em: &lt;https://noticias.uol.com.br/colunas/plinio-fraga/2019/12/26/bolsonaro-contrariou-lista-triplice-para-reitor-em-43-das-nomeacoes.htm&gt;. Acesso em: 31 ago. 2020.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> SCHEPPELE, Kim Lane. Autocratic Legalism. The University of Chicago Law Review. Vol. 85, n. 2, 2018. p. 563-556.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> MOUNK, Yascha. O povo contra a democracia: por que nossa liberdade corre perigo e como salvá-la. Tradução: Cássio de Arantes Leite e Débora Landsberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. p. 65.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> JACKSON, Vicki C. Knowledge Institutions in Constitutional Democracies: of Objectivity and Decentralization. Harvard Law Review Blog, Cambridge, EUA, [S/p], 29 ago. 2019. Disponível em: &lt;https://blog.harvardlawreview.org/knowledge-institutions-in-constitutional-democracies-of-objectivity-and-decentralization/&gt;. Acesso em: 1 ago. 2020.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Discricionariedade e controle jurisdicional – 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2017. p. 52.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018. p. 103.

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JOTA

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Autonomia universitária em xeque

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