Ulisses Levy Silvério dos Reis

O governo de Jair Bolsonaro (sem partido) não esconde - aliás, nunca o fez<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> - seu desejo de se imiscuir nas administrações das instituições federais de ensino superior (IES), sejam as universidades ou os institutos. Do início de 2018 até hoje, é alto o percentual de ocasiões nas quais houve desrespeito presidencial às escolhas das comunidades acadêmicas em favor dos candidatos mais bem votados nas listas tríplices internas<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Esse tipo de comportamento revela mais uma das facetas das práticas autoritárias estampadas por sua gestão, acusada diariamente pela imprensa - e mesmo por ex-ministros - de interferir na autonomia e na independência que deve existir em certos órgãos essenciais ao funcionamento do Estado brasileiro.
Apesar disso tudo, ao menos aparentemente, o governo Bolsonaro praticou um ato que pode fazer cair por terra sua pretensão de interferência nas escolhas dos reitores, desde que os interessados na autonomia universitária saibam fazer uso das suas possibilidades políticas e legislativas. Digo isso porque, embora o art. 207 da Constituição Federal de 1988 assegure às universidades autonomia didático-científica e de gestão financeira e patrimonial, o texto constitucional não desce às minúcias sobre o procedimento adequado para garantir-se a autonomia em face da escolha dos dirigentes das IFES.
<a href="https://conteudo.jota.info/risco-politico" target="_blank" rel="noopener noreferrer"><img class="aligncenter wp-image-244336 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/04/cta-risco-politico.png" alt="" width="1080" height="1080" /></a>
Para uniformizar o assunto, o governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB) editou o Decreto n. 1.916, de 23 de maio de 1996, que deu aos Presidentes a prerrogativa de escolher um dos nomes indicados em lista tríplice pelos conselhos universitários (art. 1º). Os governos Lula (PT), Dilma (PT) e Temer (MDB) continuaram a utilizar o decreto.
O governo atual, após utilizar o decreto por todo o ano de 2019, resolveu mudar de atitude e editou a Medida Provisória n. 914, de 24 de dezembro de 2019 (MP 914/2019), que “dispõe sobre o processo de escolha dos dirigentes das universidades federais, dos institutos federais e do Colégio Pedro II”. No ponto que ora interessa, a normativa instituiu a votação direta para reitores - sem atuação dos conselhos universitários -, embora tenha mantido a listra tríplice e a discricionariedade da nomeação, pelo Presidente, de quaisquer dos que figurem na lista (art. 3º).
Além disso, a medida provisória instituiu, no art. 3º, § 1º, os pesos relativos no procedimento de votação a cada uma das categorias que compõe as estruturas universitárias (corpo docente, técnicos-administrativos e corpo discente). Ou seja, se transformada em lei (embora já tenha força similar, enquanto não caducar ou foi aprovada), a pretensão do Executivo: i) alijará a participação dos conselhos universitários; ii) manterá no Presidente a prerrogativa de não escolher necessariamente o docente mais votado das listas tríplices; e iii) retirará das universidades a possibilidade de realizar o procedimento de indicação dos seus reitores de forma paritária entre as categorias, algo que já era comum em diversas IFES.
Desde fevereiro último, a norma já foi objeto de ataque perante o Supremo Tribunal Federal (STF). O partido Rede Sustentabilidade ajuizou a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6.315/DF arguindo que as determinações da MP 914/2019 violam a autonomia universitária. No âmbito acadêmico, várias associações representativas de classe já apontaram os perigos da possível consolidação legal da possibilidade de o Presidente nomear qualquer um dos três figurantes nas listas tríplices. Essas preocupações são todas oportunas, mas elas deixam de lado o timing ideal para se tentar, no campo Legislativo, fortalecer a autonomia universitária.
<blockquote class="jota-article__eye">A importância do dispositivo constitucional da autonomia universitária é inegável, mas ele sozinho, sem regulamentação de base, fica à mercê da existência de presidentes mais ou menos respeitadores das escolhas realizadas pelas comunidades acadêmicas.</blockquote>
Assim como vários dos direitos fundamentais precisam ser regulamentados para que sejam usufruídos pela população (em especial os de natureza social), a utilidade de uma categoria semanticamente genérica como “autonomia universitária” imprescinde de uma elaboração normativa/textual maior em nível legal para que possa sair da folha constitucional para a vida real. Sem isso, jamais cessarão os embates entre as IFES e eventuais políticos com características autoritárias que cheguem ao gabinete presidencial, dando margem à judicialização dos pleitos Brasil afora<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. Se o interesse realmente é resolver a questão, a postura mais adequada consiste na somatória de forças junto ao Congresso Nacional.
A MP 914/2019, cujo prazo deliberativo termina em 01/06/2020 e já se encontra em regime de urgência, recebeu nada menos que 204 requerimentos de emenda e 658.535 opiniões populares no sentido de sua aprovação ou reprovação<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>. Vê-se que, no campo político, esse é um tema que encontra ressonância nas preocupações dos congressistas e da sociedade civil.
Cabe às entidades representativas de classe, baseadas em seu interesse pela preservação da autonomia na gestão universitária, pressionar os agentes políticos a modificarem o texto de medida de forma a assegurar a nomeação, pelo Presidente, do candidato mais votado (mantendo-se a lista para a hipótese de eventual desistência ou impedimento superveniente) e permitir que cada IFES possa determinar internamente como se dará o procedimento eleitoral, em especial no que diz respeito ao peso proporcional dos votos de cada segmento acadêmico.
Conseguir a transformação da medida provisória em lei nos termos definidos no parágrafo anterior não é prejudicar a autonomia universitária, mas fortalecê-la a partir de uma regulamentação que traga significado às determinações do art. 207 da Constituição Federal de 1988.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Ainda antes da posse presidencial mais recente, a equipe de transição já aconselhava o Presidente eleito a deixar de nomear o candidato mais votado a Reitor dentro das instituições federais de ensino superior. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/deterioracao-constitucional-e-o-caso-da-escolha-de-reitores-02112018. Acesso em: 02 mai. 2020.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Levantamento disponível em: https://noticias.uol.com.br/colunas/plinio-fraga/2019/12/26/bolsonaro-contrariou-lista-triplice-para-reitor-em-43-das-nomeacoes.htm. Acesso em: 02 mai. 2020.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Um dos casos mais recentes de deu no Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN), no qual o Presidente nomeou para Reitor, em 17/04/2020, um docente que sequer foi candidato na lista tríplice: https://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-norte/noticia/2020/04/20/mec-nomeia-reitor-do-ifrn-professor-que-nao-concorreu-a-eleicao.ghtml. Acesso em: 02 mai. 2020. Em 01/05/2020, a 4ª Vara da Seção Judiciária do Rio Grande do Norte determinou a anulação do ato e determinou a nomeação, pelo Executivo, do candidato mais votado no último pleito, ocorrido em 2019. Disponível em: https://portal.ifrn.edu.br/campus/reitoria/noticias/justica-determina-que-reitor-eleito-pela-comunidade-do-ifrn-seja-empossado. Acesso em: 02 mai. 2020.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Disponível em: https://www.congressonacional.leg.br/materias/medidas-provisorias/-/mpv/140379. Acesso em: 02 mai. 2020.

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