Douglas Elmauer

Pior do que a inflação, só a guerra civil – trata-se de uma frase muito comum e informalmente utilizada nos departamentos de economia das universidades dos grandes centros de ensino do mundo para refletir o consenso científico acerca do quão essencial é o controle da inflação na preservação de uma sociedade civilizada. Do ponto de vista jurídico, não há equívoco em pensar a estabilidade da moeda como um direito fundamental, algo que é amplamente reconhecido em diversos países da Europa, tal como a Alemanha, um país que fora assolado pela hiperinflação ao longo dos anos 20 do século passado.
Hoje, sob égide da unificação monetária estabelecida na zona do euro, a União Europeia conta com um dos bancos centrais mais independentes do mundo. Nos EUA houve também um movimento no sentido de dar ao Fed (1913) cada vez mais autonomia, notadamente a partir de 1951, quando o órgão alcançou independência para estabelecer a política monetária nacional.
Em meados do século 20, enquanto bancos centrais já eram organizações frequentes em grande parte dos países ao redor do mundo, especialmente ao tempo dos Acordos de Bretton Woods (1944), o Brasil ainda se encontrava sem um. Para o economista Gustavo Franco, em sentido stricto, talvez o nosso país tenha sido um dos últimos do mundo a criar essa organização. Tal situação apenas se alterou com a Lei 4.595/1964, quando o <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/banco-central">Banco Central</a> do Brasil foi efetivamente criado – ocasião na qual foi criado com autonomia, perdendo-a ao longo da própria ditadura militar quando Costa e Silva afirmou: “O guardião da moeda sou eu”.
Em 1988, a Constituição Federal (art. 164) consolidou o estabelecimento e as funções do Banco Central, ao mesmo tempo em que vedou o uso desse órgão como financiador direto ou indireto do Tesouro Nacional (art. 164, § 1º, CF/88). Todavia, isso não ocorreu sem resistência, já que influxos políticos de “grupos de pressão” possuíam interesse em manter a organização instrumentalizada e capturada no contexto do descontrole inflacionário brasileiro, notadamente entre os anos de 1980 e 1994. Com a vinda do Plano Real (a partir de 1994) e a implementação do “tripé macroeconômico” (metas de inflação, responsabilidade fiscal e câmbio flutuante), sob a gestão de Armínio Fraga em 1999, avanços significativos foram feitos no sentido do ganho de maior autonomia do Banco Central, e consequentemente no combate à inflação.
Para Bruce Ackerman, poderes administrativos, como bancos centrais independentes, podem figurar como uma espécie de “quarto poder” na “nova separação de Poderes” dos Estados contemporâneos – trata-se de uma das muitas tendências emergentes na organização moderna dos Estados nacionais que tem levado à criação de novos centros de poder independentes.
Em sua obra “Direitos Fundamentais como Instituição”, Niklas Luhmann coloca que a autonomia do Banco Central pode ser comparada à independência dos tribunais. Luhmann inclusive destaca que o problema da preservação do dinheiro (e de sua neutralidade, para falarmos numa linguagem mais próxima da economia) abre a possibilidade da discussão de um direito fundamental em potencial. Nesse diapasão, não há qualquer exagero em tal comparação, já que a inflação é nada mais nada menos do que um imposto indireto estabelecido fora do marco da legalidade para expropriar a população em geral, notadamente a camada mais pobre da população, via de regra, incapaz de se proteger dos efeitos da inflação e para a qual qualquer aumento nos preços relativos leva a perdas irreparáveis no poder aquisitivo de bens e serviços essenciais para a sobrevivência, tal como alimentação e moradia.
Ademais, o imposto inflacionário é um dos maiores responsáveis pelo aumento das desigualdades em países como o Brasil, já que graças a esse imposto indireto, o Estado faz transferências dos estratos mais carentes da população para elites que desfrutam de privilégios que vão desde acesso ao crédito farto e barato até proteções de todos os tipos. Trata-se aqui do equilíbrio perverso da economia política de nosso país, marcado por clientelismo, corrupção e rent-seeking. Essa dinâmica institucional extrativista resiste em desaparecer na forma de uma “Lei de Ferro das Oligarquias”.
A autonomia do Banco Central arrefece os “ciclos político-econômicos” de abusos da política monetária com objetivos populistas e eleitorais. Intervenções de tal tipo não são admissíveis dentro de um Estado democrático de Direito, já que o Banco Central é um órgão de Estado, não de governo ou mero instrumento de partidos políticos.
A <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp179.htm">Lei Complementar 179/2021</a> trouxe avanços para dar ao Banco Central um maior grau de autonomia, já que prevê competência privativa ao órgão para que conduza a política monetária necessária para o cumprimento das metas estabelecidas. A mesma lei também estabelece que os mandatos do presidente e dos diretores do Banco Central se encerrem no meio do mandato do presidente da República subsequente. No entanto, como colocaram Marcos Lisboa e Marcos Mendes ao tempo da discussão do projeto que deu origem à mencionada lei, isso ainda não seria o suficiente para assegurar plena autonomia ao Banco Central. Objetivos previstos na lei, tal como “fomentar o pleno emprego”, podem atuar negativamente gerando constante pressão política e questionamento judicial com relação às deliberações tomadas por experts na gestão macroeconômica.
A título de exemplo, vemos o quanto a classe política e o senso comum dos leigos em economia (inclusive juristas), resistem em aceitar a tecnicidade da decisão da manutenção da taxa Selic em 13,75%. Evidências empíricas demonstram que a taxa básica de juros ideal da economia de um país deve se orientar por algo que no campo da macroeconomia é denominado de “Regra de Taylor”. Segundo Blanchard, ela “indica uma forma útil de refletir sobre a escolha da taxa de juros nominal. A regra afirma que o Banco Central deve alterar a taxa de juros em resposta a dois fatores principais: o desvio da taxa de inflação em relação à meta para essa taxa e o desvio da taxa de desemprego em relação à sua taxa natural. Um Banco Central que seguir essa regra estabilizará a atividade e atingirá sua meta para a taxa de inflação no médio prazo”.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
Em complementação, afirmam Lisboa e Mendes que a regra de Taylor, adotada na prática pelos bancos centrais dos principais países, inclusive no Brasil, ajusta a taxa de juros para garantir a convergência da taxa de inflação à meta fixada pelo governo, minimizando o custo social. Em suma, trata-se de uma tecnicalidade, não da vontade arbitrária de experts ou burocratas para favorecer banqueiros e especuladores.
Do ponto de vista de nossa economia política, a autonomia do Banco Central e seu sucesso no combate à inflação podem ser prejudicados tanto devido à ausência de reformas institucionais mais abrangentes no campo político, quanto por influxos extrativistas promovidos pelo clientelismo e pelo populismo. A título de exemplo, a política fiscal o Brasil precisa de reformas profundas para além do teto de gastos (Emenda Constitucional 95), sem as quais a trajetória da dívida pública pode alcançar níveis que façam com que a política monetária comandada pelo Banco Central deixe de ser capaz de controlar a inflação a partir da taxa de juros. Tal cenário se denomina “dominância fiscal”, a qual pode culminar em medidas extremas como a temida “repressão financeira”. Como coloca Samuel Pessôa, o ideal é que o país construa uma política fiscal estruturalmente estável, com regra de gasto anticíclico, para contrabalançar a economia quando está muito aquecida ou deprimida.
No contexto atual da política nacional, é necessário que não se dê ouvidos a clamores populistas por ingerência política no Banco Central. O populismo, seja ele de direita ou de esquerda, é danoso à manutenção do Estado democrático de Direito, pois contribui diretamente para o desmantelamento da separação de Poderes (especialmente quando assumimos o Banco Central como parte de um quarto poder). Populistas se nutrem de teorias da conspiração e falácias para arrebanhar a simpatia de atores públicos e privados na esfera pública. No entanto, é necessário que se tenha cuidado. Nem todas as instâncias decisórias podem ser conduzidas a partir de uma democratização trivial, pois nem sempre a vontade da maioria (na forma de um plebiscitarismo vulgar) deve prevalecer. Ataques desse tipo foram feitos recentemente à independência do STF e de seus ministros experts com “notável saber jurídico” (art. 101, CF/88) em nome de uma suposta “vontade do povo”. Guardadas as devidas proporções, do mesmo modo que o STF atua como “guardião da Constituição”, o Banco Central também deve atuar como “guardião da moeda”.
Com o Banco Central não pode ser diferente daquilo que se faz nos tribunais: experts independentes devem participar dos processos decisórios seguindo os melhores standards, práticas internacionais e consensos científicos no campo da ciência econômica e da política monetária.
Por fim, é necessário que se pontue para a opinião pública que, quando organizada dentro de um “cluster institucional” adequado, a autonomia (ou independência)<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> de um banco central é efetiva no controle da estabilidade da moeda. Conforme a evidência econométrica esboçada abaixo, existe uma correlação entre níveis de inflação e grau de independência de um banco central. Sendo mais específico, quanto mais independente um banco central, menores tendem a ser suas taxas de inflação.
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Um banco central autônomo não é a solução para todos os problemas econômicos de um país, mas é condição de possibilidade para uma maior estabilidade macroeconômica, a partir da qual se persiga a neutralidade da moeda e não se faça expropriação ilícita da população (destacadamente dos mais pobres) com uma inflação que custeia gastos estatais e concentra recursos em elites extrativistas. Assim, um banco central autônomo auxilia na salvaguarda dos direitos fundamentais dos cidadãos comuns contra o risco da expropriação estatal, e consequentemente ajuda na manutenção de uma sociedade civilizada e efetivamente mais democrática.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> BLANCHARD (2017). Macroeconomia, São Paulo: Pearson, p. 548.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Independência e autonomia não devem ser confudidas, já que a primeira é um grau mais avançado da segunda.

Banco Central

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JOTA

Do mesmo modo que o STF atua como 'guardião da Constituição', BC deve atuar como 'guardião da moeda'

Autonomia do Banco Central como conquista civilizatória

Do mesmo modo que o STF atua como 'guardião da Constituição', BC deve atuar como 'guardião da moeda'