Allan Paiotti

O mercado brasileiro de cannabis medicinal cravou marcos relevantes em 2023. Em janeiro, o <a href="https://www.al.sp.gov.br/propositura/?id=1000290593">PL 1180/2019</a> foi sancionado pelo Governo de São Paulo incluindo a medicação em caráter excepcional na lista do Sistema Único de Saúde (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/sus">SUS</a>), movimento seguido por outras regiões do país. Tramita no Congresso desde então o <a href="https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/155747">PL 89/2023</a>, que prevê a criação de uma política nacional de fornecimento gratuito de medicamentos à base de canabidiol no SUS. Em maio, o tema passou a compor o Conselho de Desenvolvimento Econômico Social Sustentável — o famoso Conselhão — do governo federal, ampliando a visibilidade sobre a terapêutica. 
Nos últimos dias, o tema voltou à pauta com a discussão sobre a importação e a venda do princípio ativo em formato de flores. Embora tenhamos avançado no entendimento dos benefícios da cannabis medicinal para a saúde, há muitas barreiras a serem transpostas. A começar pelo entendimento, de toda a sociedade, de que a cannabis medicinal, incluindo suas flores, não é uma panaceia e nem pode ser indicada para tudo. 
A cannabis medicinal é potente para minimizar efeitos colaterais de tratamentos de doenças crônicas, como fibromialgia e câncer, transtornos causados por doenças raras, como a Síndrome de Dravet, além de sintomas de depressão e síndrome do pânico, por exemplo. Nesse contexto, é importante levar para a frente o debate com base nas evidências científicas e clínicas, educando a comunidade médica e ampliando a oferta de medicamentos, em sua pluralidade de formulações e formas de administração, com segurança para os pacientes. 
A via vaporizada das flores é altamente eficaz em promover uma resposta rápida dos sintomas e reduzindo, quase que de forma imediata, crises de epilepsia, dores agudas, picos de ansiedade e espasmos musculares. No mundo, são inúmeras as aplicações concretas desta via de tratamento para controle de danos ao indivíduo, inclusive para redução de dependência de outras substâncias químicas como os opioides, por exemplo. A via vaporizada não vem sem riscos, e por isso é crítico o acompanhamento médico para a correta indicação de uso. 
A prescrição da flor para uso não medicinal, entretanto, é ilegal no Brasil, e médicos e indivíduos que adotam essa prática devem estar atentos aos riscos a que estão se submetendo. Além disso, essas iniciativas colaboram para confundir o mercado, fortalecem o preconceito em relação à planta e burlam as rigorosas, e necessárias, regras estabelecidas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/anvisa">Anvisa</a>) para garantir segurança a os pacientes e permitir o crescimento sustentável do setor medicinal. 
A questão do uso indevido das normativas em vigor para fins não medicinais colocou a agência reguladora em saia justa e, no dia 20 de julho, a Anvisa se viu obrigada a revogar a importação de cannabis in natura ou partes da planta, o que inclui as flores, um passo importante para coibir desarranjos. Apesar da proibição atual, o órgão adota uma postura corajosa e de vanguarda com rigor nas regulações e tem sido reconhecida internacionalmente pela criação de um ambiente que permite um melhor entendimento das demandas desse novo setor no país. Mais de 190 mil pessoas estão em tratamento com cannabis medicinal no Brasil, segundo dados da Kaya Mind. 
O grande impasse dessa proibição é que, sem regulação, os pacientes passam a depender do poder judiciário para viabilizar seu tratamento, o que não garante que os critérios adequados sejam respeitados, além de privar a agência reguladora da coleta das informações relevantes e necessárias para avaliar as demandas do mercado. E isso é crítico para que o marco regulatório evolua de forma consistente. É impossível lutar contra a revolução que a cannabis medicinal tem representado em todo o mundo. Só no Brasil, existem mais de 130 milhões de pessoas que podem ser beneficiadas com a terapêutica, mas ainda não a utilizam. 
Pergunte a um cuidador ou cuidadora de uma criança com Transtorno do Espectro Autista (TEA) ou com epilepsia, que utiliza a terapêutica, os impactos de não poder contar com o medicamento para o controle dos sintomas. Presencie uma pessoa em crise convulsiva que, ao se debater no chão, o que poderia causar um traumatismo craniano, consegue interromper o surto em poucos segundos com o uso adequado da cannabis medicinal pela via aspirada. Certamente você se verá refletindo de forma diferente sobre a terapêutica. 
Não há dúvidas de que o tema da descriminalização das drogas, extremamente relevante para a sociedade, precisa ser amplamente discutido. Mas, desconsiderar avanços e confundir o uso medicinal da cannabis com o recreativo é um retrocesso que coloca a saúde e qualidade de vida dos pacientes em segundo plano. 
Nosso desafio, como sociedade, é evoluir no grau de maturidade em relação aos benefícios da terapêutica, apoiar iniciativas científicas, pensar coletivamente para romper a barreira do preconceito e dar ouvidos às necessidades de pacientes, sociedades médicas e multidisciplinares, associações e demais agentes envolvidos. Às empresas do setor, cabe criar processos e ferramentas que preservem as regulações existentes, estabelecendo um canal ativo de comunicação com a Anvisa para evolução contínua das normativas em vigor, sempre com foco na segurança do paciente. Esses movimentos garantirão que os pacientes, que tanto precisam de seu tratamento, continuem assistidos.

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JOTA

Confundir uso medicinal com recreativo coloca saúde e qualidade de vida dos pacientes em segundo plano

Aumento do uso de cannabis medicinal esquenta debate sobre indicações

Desconsiderar avanços e confundir o uso medicinal da cannabis com o recreativo é um retrocesso e põe a saúde dos pacientes em segundo plano