Ana Cláudia Cifali

Pedro Mendes da Silva

A trajetória de adolescentes a quem se atribui a prática de ato infracional no sistema de justiça juvenil e no atendimento socioeducativo é atravessada pela violações de direitos de diversas naturezas: <a href="https://congressoemfoco.uol.com.br/temas/direitos-humanos/privados-de-banheiro-adolescentes-defecam-em-marmita-em-unidade-de-internacao/">a ausência de um ambiente adequado para o cumprimento de medidas socioeducativas e privações indevidas</a>, assim como um cenário de superlotação em unidades de internação que tendem a agravar tais situações, como apontam <a href="https://www.cnmp.mp.br/portal/todas-as-noticias/12528-levantamento-do-cnmp-indica-que-ha-superlotacao-em-unidades-de-atendimento-socioeducativo-no-brasil">dados mais recentes</a>.
Desde 2020, com o início da pandemia da Covid-19, os problemas se tornaram mais evidentes e se acentuaram:<a href="https://www.ajd.org.br/decisoes/covid-19/2868-decisao-pandemia-e-violacao-ao-direito-a-educacao-rs"> o direito à educação não foi garantido de forma adequada em alguns estados</a>, <a href="https://mnpctbrasil.files.wordpress.com/2020/07/informe-de-monitoramento_temc3a1tico-socioeducativo_mnpct.pdf">as condições sanitárias se mostraram propícias à propagação do vírus</a> e o sistema de justiça deixou de atender esses adolescentes de forma presencial em audiências de apuração de atos infracionais e execução de medidas socioeducativas, tendo sido adotadas as audiências por videoconferência.
A imposição de medidas sanitárias que assegurassem a saúde de funcionários do sistema de justiça e dos adolescentes e seus familiares no período pandêmico fez com que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicasse a <a href="https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3435">Resolução nº 330 de 2020</a>, na qual há previsão de realização de audiências por videoconferência, optando por estas como uma solução para um cenário excepcional. A instauração desse novo modelo de audiências suscitou<a href="https://prioridadeabsoluta.org.br/acessojustica/justica-juvenil/videoconferencia-socioeducativo-cnj/"> diversas dúvidas de profissionais e setores da sociedade civil:</a> como transpor os ritos da audiência, o contato humano, conferir a participação efetiva dos adolescentes e seus familiares e garantir direitos em um novo modelo, muitas vezes sem preparo e precaução com relação aos dados e equipamentos tecnológicos e acesso à internet adequados?
Com o objetivo de compreender se essas dúvidas eram fundamentadas e se a nova modalidade poderia garantir os direitos relacionados ao devido processo e ao contraditório no atendimento de adolescentes a quem se atribui a prática de atos infracionais, o Coletivo NEIDE - Educação em Direitos Humanos, da Universidade de São Paulo, realizou a pesquisa <a href="https://prioridadeabsoluta.org.br/wp-content/uploads/2016/05/audiencias-por-videoconferencia_final.pdf">“Audiências por videoconferência no Sistema de Justiça Juvenil: reflexões sobre o modelo, seus limites e potencialidades”.</a>
Os resultados da pesquisa demonstraram que a adoção das audiências virtuais ou híbridas - quando parte dos atores envolvidos participam presencialmente e o restante de forma remota – trouxeram prejuízos, mas também apontam alguns benefícios para o funcionamento das audiências na justiça juvenil.
No âmbito dos ganhos promovidos pelas audiências virtuais, o estudo destaca que há maior possibilidade de participação de familiares dos adolescentes e de oitiva de testemunhas, especialmente daquelas que não residem na mesma comarca dos juízos, o que não ocorreria na mesma escala quando as audiências eram realizadas de forma presencial.
Se alguns poucos benefícios são destacados, a pesquisa aponta que muitos dos questionamentos da sociedade civil e problemas estruturais do sistema de juvenil foram confirmados ou acentuados pelo modelo das videoconferências.
Um dos principais achados expressa a falta de estrutura digital presente no Brasil. Em diversos estados, verificou-se a falta de estrutura suficiente nas unidades de atendimento socioeducativo para se adequar a esse novo modelo de audiências, isto é, os recursos materiais e a preparação dos funcionários do sistema de justiça juvenil e do sistema socioeducativo se mostraram insuficientes no que diz respeito à disponibilidade de equipamentos tecnológicos, letramento digital e acesso adequado à internet.
No campo dos direitos processuais e fundamentais, foi constatado que o direito à privacidade e à informação, de conhecer e compreender todos os procedimentos aos quais são submetidos, a incomunicabilidade das testemunhas, as dificuldades de compreensão entre todas as partes envolvidas e o contato de adolescentes com seus representantes legais foram muitas vezes prejudicados.
A pesquisa também revela que alguns atores entrevistados apontam a perda de interação humana como um fator de descaracterização do procedimento das audiências, podendo ocasionar prejuízos aos adolescentes e a forma como são percebidos no processo, reforçando uma “insensibilidade” já percebida nas audiências presenciais pelos atores entrevistados.
Esses achados demonstram total descompasso entre as normas que regem os direitos de adolescentes a quem se atribui a prática de atos infracionais, como artigo 227, parágrafo 3º da Constituição Federal — direito de adolescentes à igualdade na relação processual, pleno e formal conhecimento da atribuição de ato infracional e direito à defesa técnica por profissional habilitado —; os artigos 110 — nenhum adolescente será privado de liberdade sem o devido processo legal — e 111, inciso V — assegura a todo adolescente tem o direito de ser ouvido presencialmente pela autoridade competente — do Estatuto da Criança e do Adolescente.
No âmbito internacional, destaca-se o Comentário Geral nº 25 do Comitê de Direitos da Criança da ONU — segundo o qual a transposição dos processos judiciais para o ambiente virtual pode impactar negativamente os direitos de crianças e adolescentes e, portanto, principalmente quando crianças e adolescentes são privados de liberdade, os estados partes devem garantir o contato presencial para que haja a escuta efetiva de adolescentes no processo; e o Comentário Geral nº 24 — que estabelece a necessidade de participação de adolescentes em todas as fases de um processo no qual estão envolvidos, reforçando a necessidade de atendimento ao direito à assistência jurídica adequada, assim como o direito à privacidade durante os processos.
A comparação entre essas normas e os achados da pesquisa demonstram que, apesar de seus benefícios, as audiências por videoconferência têm falhado em compor um sistema de justiça amigável, acessível e sensível e garantidor de direitos para adolescentes a quem se atribui a prática de atos infracionais. Importante a constatação de que muitas audiências são finalizadas ainda que com inúmeras falhas de comunicação, impossibilidade de escuta e compreensão. Nesse sentido, vale destacar, que “as audiências não podem seguir enquanto rito pelo rito” (NEIDE, 2022, p. 204). É dizer, a formalidade jurídica não pode se sobrepor ao direito fundamental de acesso à justiça e às garantias do devido processo legal, sobretudo, deve-se garantir que os adolescentes compreendam as dinâmicas que irão afetar suas vidas, inclusive para conferir legitimidade a essa prestação jurisdicional.
A situação sanitária da pandemia vem mudando e o cenário atual impõe que todos os atores responsáveis por assegurar os direitos de adolescentes com absoluta prioridade — família, Estado e sociedade, como dispõe o artigo 227 da Constituição Federal — ajam no sentido de reformular políticas e regulamentações que não funcionaram durante a pandemia da Covid-19, ou que eram falhas até mesmo antes dela.
Para avançar na garantia dos direitos dos adolescentes a quem se atribui a prática de atos infracionais, é necessário pensar em um modelo de audiências presenciais que garanta a efetiva participação desses adolescentes e a seus familiares — tendo o uso digital apenas como apoio em casos excepcionais e de extrema necessidade, sendo assegurado, nesses casos, as garantias processuais e os direitos fundamentais — bem como em todos os mecanismos necessários para tenham um processo justo, com respeito ao contraditório e à ampla defesa.

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JOTA

É necessário pensar em formato que garanta efetiva participação desses adolescentes e seus familiares

Audiências por videoconferência na justiça juvenil: modelo a ser superado

É necessário pensar em um modelo de audiências presenciais que garanta a efetiva participação desses adolescentes e seus familiares